Pintar o mal

1.
Todas as cidades são parecidas às segundas-feiras. Principalmente às sete da manhã. Pressa. Trânsito. Pessoas buscando forças com uma xícara de café, irremediavelmente forçadas a voltar à rotina. Eu não. Hoje não estou em casa. Hoje estou atravessando a Cidade da Guatemala em um carro japonês atarracado. Estamos procurando uma saída. Toda a rodovia que leva a San Juan Comalapa é a luta de um motorista contra as curvas e solavancos. É assim que chamam aqui os muros que tentam nos atrasar e arrancar algumas entranhas de sua máquina.
Viajo com Moisés, um fotógrafo nascido em Antígua que conhece bem a região. Suas primeiras tarefas foram capturar a devastação do Conflito Armado Interno. Conhecemos os números oficiais. 36 anos de guerra. Mais de 200.000 vítimas, entre mortos e desaparecidos. Segundo o relatório da Comissão de Esclarecimento Histórico (CEH), um dos municípios de Chimaltenango mais afetados pela violência estatal durante aqueles anos de guerra era justamente o nosso destino: Comalapa.
Viemos porque nos disseram que Ester Miza morava aqui. Uma pintora kaqchikel nascida no início da década de 1980, o período mais sangrento do conflito. De certa forma, essa mulher personifica a resistência política de sua comunidade à barbárie e ao abandono. Esta cidade aninhada entre as colinas é conhecida não apenas pela qualidade de seus artistas — Andrés Curruchich, Paula Nicho, Edgar Kalel — mas também pelo papel de liderança que as mulheres desempenham há décadas na luta pela verdade, justiça e memória.
Foi aqui, sem ir mais longe, que nasceu a fundadora da Coordenação Nacional de Viúvas da Guatemala (Conavigua). Uma organização de vítimas que denunciou — com inabalável persistência — casos de desaparecimento forçado, tortura, estupro e execuções cometidos por forças estatais durante o Conflito Armado Interno.
2.
Ester nos recebe na porta de sua casa. Subimos para o segundo andar. Cheira a pão fresco. Ali, ela cresceu com os irmãos, observando a mãe e o pai pintarem. Não demorou muito para que ela seguisse os passos deles. Aos doze anos, começou a ajudar o pai a pintar o arco de Antígua e uma série de cenas do cotidiano que venderam bem na cidade. Foram anos de aprendizado. Também de silêncio. A jovem maia achou estranho que em sua família — profundamente evangélica — ninguém falasse sobre o que havia acontecido durante os anos do Conflito Armado Interno.
Ela queria ouvir. Ela queria saber. Essa mistura de curiosidade e rebeldia — que sempre a acompanhou — levou-a a se envolver com o Comitê de Coordenação da Juventude de Comalapa, após a assinatura dos Acordos de Paz. Em 2002 e 2006, ela participou da criação dos murais que ainda adornam as paredes do cemitério e da escola da cidade. Eles contam a história de Comalapa pela perspectiva das vítimas; da resistência maia aos conquistadores espanhóis à morte e destruição causadas pelo terremoto de 1976 e aos massacres cometidos pelo Exército durante o genocídio.

Foi nessa época que essa jovem conheceu sua história e tomou consciência das queixas e demandas sociais de uma comunidade profundamente ferida. Mas ela também descobriu, então, que a memória é um território contestado. Muitas pessoas na cidade não gostavam do que aqueles murais retratavam. Ester se lembra de como árvores foram plantadas durante a noite na calçada da escola para bloquear a visão delas ou como parte da obra de arte foi apagada para desenhar um Ursinho Pooh.
Gestos como este revelam como é complicado viver num lugar onde famílias de vítimas e perpetradores partilham ruas, escolas, igrejas e parques. Os vizinhos conhecem bem a relação entre si. Conhecem o seu passado. São cautelosos com o que dizem. Compreende-se como é difícil restaurar o tecido social de um povo dilacerado por uma política de terror que contagiou esta terra com ausências e mortes horríveis.
3.
Ao ouvir Ester, fica claro que sua juventude cruzou com os anos mais intensos da luta pela recuperação da memória e pelo exercício do direito ao luto em Comalapa. Em 2003, um evento abalou a comunidade e todo o país. A Conavigua garantiu à Fundação Guatemalteca de Antropologia Forense (FAFG) a oportunidade de escavar e realizar exumações no terreno de um antigo Destacamento Militar, bem como de elaborar um laudo pericial sobre o caso.
Várias sepulturas foram encontradas naquela área, nos arredores de Comalapa. Ester estava presente no início das exumações, acompanhando as vítimas. Ela se lembra do choro coletivo ao descobrir aquelas sepulturas e ossos. Havia crânios pequenos; pescoços e mãos amarrados com arame farpado; bocas escancaradas, um grito constante que provava que aquelas pessoas haviam sido enterradas vivas.
Houve.
Houve.
Houve.
Moisés e eu visitamos este local, transformado em memorial, acompanhados por Ester e sua vizinha Ch'umilkaj. Foi uma experiência avassaladora. Caminhei e parei em frente aos túmulos que eles haviam deixado descobertos entre os pinheiros e ciprestes. Ouvi pássaros cantando. O dia estava lindo. A paisagem era linda. Toda essa contradição era estonteante. Me dava arrepios. De repente, percebi que aqueles corpos estavam humilhados e destruídos sob aquele ar saudável e transparente. Pensei em todos aqueles restos mortais ainda esperando para serem recuperados e identificados por seus parentes neste país.
4.
Testemunhar as exumações fez com que Ester quisesse se envolver ainda mais nessa luta coletiva para descobrir a verdade. Ela não sabia como. Foi então que uma amiga órfã lhe pediu para ajudar em um projeto da Conavigua. O projeto envolvia visitar várias comunidades para homenagear as vítimas dos militares durante o Conflito Armado. Ela não demorou um minuto para aceitar.
Ester saiu de casa cedo com um gravador, fitas cassete, um guia de perguntas e seu filho — que tinha um ano na época — pronto para ouvir os depoimentos. Centenas de sobreviventes e familiares lhe contaram como o exército incendiou suas casas; como entraram na aldeia com listas de nomes e levaram seus maridos e irmãos; e como foram estuprados por um pelotão de fuzilamento.
Ninguém a preparou para isso. Ouvir aqueles depoimentos a afetou profundamente. Ela acordava à noite com medo. Sonhava repetidamente com o que aqueles homens e mulheres lhe haviam dito. Incapaz de discutir o assunto ou desabafar com uma família que condenava seu ativismo, ela não conseguia tirar aqueles rostos, aquela tristeza profunda, aquele clamor por justiça da cabeça. Toda aquela violência e crueldade contra pessoas que não tinham feito nada.

Quase instintivamente, Ester começou a desenhar com giz de cera as cenas que não conseguia apagar da mente. Não demorou muito para que ela transferisse esses desenhos para pinturas a óleo. Ela pintava à noite ou quando o pai saía de casa. Havia algo em extrair e transferir essas cenas para a tela que a fazia se sentir um pouco mais tranquila. No total, ela criou doze pinturas e intitulou a série: Nunca Mais. Não se tratava de uma encomenda. Nem era uma obra coletiva e pública como os murais. Ela não pretendia exibi-los. Simplesmente queria fazê-lo.
Ester embrulhou os quadros em papel kraft e os escondeu na cozinha da avó por anos. Naquele canto escuro — não muito longe do fogo e da fumaça —, eles permaneceram escondidos da família e do mundo. Chegou o dia em que seu pai descobriu o que ela havia pintado. Ele lhe disse que eram assustadores, que não venderiam, por que ela fez aquilo se não tinha passado por isso, que não tinha pensado em todas as consequências que os bandidos trariam. Contou a ela quantas vezes o exército o tirou do ônibus e como ele quase foi enviado para o destacamento.
Após anos de silêncio, Ester ouviu o profundo medo que seu pai sentira durante o conflito armado. Logo soube que os restos mortais de dois parentes haviam sido encontrados e identificados durante as exumações do antigo Destacamento Militar. No Nimajay, construído pela Conavigua em memória das vítimas do genocídio na década de 1980, há duas cruzes azul-claras com seu nome.
5.
Ester pintou a série "Nunca Más" entre 2007 e 2008. Desde então, expôs apenas algumas de suas pinturas separadamente e por um breve período. Só há alguns meses sentiu que era hora de continuar e expor essa série na La Nueva Fábrica, um centro de arte contemporânea em Antígua que se interessou por seu trabalho.
No caminho de volta para a Cidade da Guatemala, fazemos uma parada. Entro na exposição. Finalmente, me encontro diante das pinturas de Ester Miza. Há horror e aquela tensão perturbadora com a beleza. Todo o poder da arte para representar o mal, para nos aproximar da dor alheia.
Dezoito anos depois, esta pintora Kaqchikel superou o medo e nos confronta com testemunhos de violência que sobreviveram apesar de tudo. Ela o faz em tempos de negação, esquecimento e um racismo profundo que busca nos fazer ver que existem vidas desnecessárias e indignas de luto.
EL PAÍS