Benzeno: 200 anos da molécula que moldou o século XXI

Exatamente dois séculos atrás, em 1825, o cientista britânico Michael Faraday identificou um líquido estranho ao aquecer o resíduo de gás usado para iluminar as ruas de Londres. Era incolor, tinha um cheiro adocicado e peculiar e se comportava de maneira tão misteriosa que nem mesmo os químicos da época sabiam exatamente como classificá-lo. Ele o chamou de bicarbonato de hidrogênio. Ninguém imaginava então que essa substância, mais conhecida hoje como benzeno, mudaria a história da ciência e de nossas vidas.
Hoje, a pequena molécula de benzeno está presente em quase tudo ao nosso redor: plásticos, corantes, detergentes, têxteis, perfumes, medicamentos , adesivos, combustíveis, inseticidas e até mesmo dispositivos eletrônicos como smartphones. Mas sua influência vai além dos produtos do dia a dia. A estrutura molecular única do benzeno tornou-se a base de milhares de compostos orgânicos, com aplicações que vão da medicina à nanotecnologia. O mais impressionante é que a arquitetura de seus átomos levou ao desenvolvimento de materiais revolucionários como o grafeno, que promete transformar o futuro da energia, da computação e da biomedicina.
O fascinante sobre o benzeno não é apenas a sua composição, mas como ele é feito. Sua molécula é composta por seis átomos de carbono e seis átomos de hidrogênio, dispostos em um anel. Esse pequeno hexágono perfeito esconde uma peculiaridade química: seus elétrons não estão fixos em ligações simples ou duplas — como em outras moléculas orgânicas —, mas se movem continuamente dentro do anel. Esse fenômeno é chamado de ressonância eletrônica e confere ao benzeno uma estabilidade surpreendente.
Não reage facilmente, resiste a ataques químicos e também é capaz de formar novas estruturas com grande facilidade. Essa combinação de reatividade e estabilidade é o que o torna tão valioso. Em química, essas propriedades são conhecidas como aromaticidade , um termo que originalmente se referia ao cheiro de certas substâncias, mas que hoje descreve seu comportamento eletrônico único.
O símbolo da química modernaA compreensão desses tipos de estruturas levou décadas de estudo. Foi em meados do século XIX que o químico alemão August Kekulé propôs o modelo do anel hexagonal com ligações móveis, inspirado — segundo ele — por um sonho em que uma cobra mordia a própria cauda. Esse evento representou um dos grandes marcos científicos no desenvolvimento da chamada teoria estrutural. Desde então, o benzeno tornou-se o símbolo da química orgânica moderna e uma porta de entrada para a explicação de conceitos complexos mais recentes , como orbitais moleculares, deslocalização de elétrons e estabilidade molecular.
Mas seu impacto não se limitou aos livros didáticos. À medida que o século XX avançava, os cientistas começaram a unir vários anéis de benzeno. Isso deu origem aos hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs), compostos que fazem parte de combustíveis, óleos lubrificantes, corantes e plásticos, mas também são objeto de pesquisas científicas de ponta. Alguns HAPs têm propriedades fluorescentes, outros funcionam como semicondutores e muitos serviram como ponto de partida para o desenvolvimento de novas moléculas com aplicações médicas, eletrônicas e energéticas. Essas estruturas também deram origem ao que hoje conhecemos como nanografenos moleculares, fragmentos de grafeno projetados com precisão atômica para funcionar como sensores, transistores ou sistemas de armazenamento de energia.
O grafeno é, em última análise, o ápice dessa evolução. É uma camada bidimensional, com apenas um átomo de espessura, formada por uma rede contínua de hexágonos de carbono. É como uma folha infinita feita de anéis de benzeno. Caracterizado em 2004 por Andre Geim e Konstantin Novoselov — que receberam o Prêmio Nobel de Física em 2010 —, o grafeno é extraordinário: é o material mais fino já criado, mais forte que o aço, flexível, transparente e com condutividade elétrica e térmica excepcional. Seu uso já está sendo explorado em baterias ultrarrápidas, telas sensíveis ao toque dobráveis, dispositivos biomédicos, sistemas de filtragem de água, implantes neurais e tecnologias quânticas. Embora pareça algo saído de ficção científica, o grafeno é uma realidade, e tudo começou com aquela minúscula molécula por trás da substância misteriosa descoberta por Faraday há 200 anos.
Mas o benzeno e seus derivados não são encontrados apenas em laboratórios ou fábricas: eles também flutuam no espaço. Nas últimas décadas, astrônomos detectaram compostos aromáticos em nuvens interestelares, cometas e nos discos de poeira que cercam estrelas jovens. Essas moléculas complexas, constituídas por anéis de carbono semelhantes ao benzeno, parecem ser comuns no universo e podem ter chegado à Terra primitiva a bordo de meteoritos. Sua presença abre uma possibilidade fascinante: a de que os blocos químicos de construção da vida — moléculas orgânicas complexas — podem ter tido uma origem cósmica, com o benzeno como um de seus primeiros protagonistas.
Um aroma de revolução científicaÉ curioso como uma estrutura tão simples pode ter tantas facetas. O benzeno também é uma molécula-chave no ensino de química. Gerações de estudantes aprenderam com ele conceitos como aromaticidade, ressonância e teoria dos orbitais moleculares. Apesar de sua presença silenciosa , é uma molécula que inspira admiração: por sua simetria perfeita, sua estabilidade quase mágica e sua capacidade de formar compostos complexos. E embora também se saiba que em altas concentrações pode ser tóxico — razão pela qual seu uso em produtos domésticos tem sido limitado e sua presença no meio ambiente é controlada — seu legado científico e tecnológico é inquestionável.
Para celebrar este bicentenário, a Royal Society of Chemistry (RSC) — uma das instituições científicas mais prestigiadas do mundo — lançará uma edição temática especial com vinte de seus periódicos, com artigos dedicados à história, evolução e futuro do benzeno e seus derivados. A edição será coordenada por duas figuras de destaque na área: o ganhador do Prêmio Nobel Ben Feringa e o autor deste texto. Esta edição especial abordará desde os fascinantes compostos aromáticos e antiaromáticos até máquinas moleculares baseadas em benzeno, nanotubos de carbono, fulerenos e as novas fronteiras do grafeno e seus derivados.
Em tempos em que a inovação tecnológica parece avançar a uma velocidade vertiginosa, num mundo onde falamos de inteligência artificial, vacinas de RNA mensageiro ou satélites do tamanho de uma caixa de sapatos, vale lembrar que muitas dessas maravilhas atuais têm suas raízes em descobertas do passado. O benzeno, com sua pequena molécula de seis átomos de carbono em forma de anel hexagonal, é uma dessas descobertas silenciosas que transformaram nossa maneira de viver, produzir, curar e criar. Às vezes, grandes revoluções não chegam com um estrondo, mas com um leve aroma e um som perfeito. E o benzeno, sem dúvida, é uma delas, uma molécula cujo aroma foi sinônimo de revolução desde o seu início.
Nazario Martín León é professor de Química Orgânica na Universidade Complutense, vencedor do Prêmio Nacional de Pesquisa e membro da Real Academia de Ciências.
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