Como o sistema de saúde e o atendimento ao paciente mudarão com o novo modelo decretado pelo governo?

O Decreto 0858 de 2025, emitido esta semana pelo Governo Nacional, redefine substancialmente a forma como a saúde será organizada e prestada na Colômbia. O modelo, conhecido como "Preventivo, Preditivo e Resoluto", busca implementar grande parte da reforma da saúde que não foi aprovada no Congresso, deslocando o foco do sistema para a prevenção, a atenção primária e a gestão territorial. No entanto, diversos especialistas e organizações de pacientes alertaram que os riscos de improvisação, falta de coordenação e falta de recursos podem acabar prejudicando os usuários.

Milhões de pacientes na Colômbia verão seu acesso à assistência médica mudar. Foto: Néstor Gómez - EL TIEMPO
Uma das principais mudanças para os pacientes é que, no novo modelo, os usuários serão obrigatoriamente alocados aos Centros de Atenção Primária à Saúde (CAPS), localizados em cada "sub-região funcional" definida pelo Ministério da Saúde. A partir daí, seu atendimento será coordenado. No entanto, essa mudança gerou profundas preocupações. "A redefinição dos papéis dos EPS e a criação de novas redes de atenção podem afetar a continuidade do tratamento dos pacientes", alertou Luis Jorge Hernández, médico sanitarista e professor da Universidade dos Andes. Segundo ele, o decreto não especifica como essa transição ocorrerá nem como será garantido que pacientes com doenças crônicas mantenham seu tratamento sem interrupções.
Basicamente, a pessoa não será mais atendida pela rota definida pela sua EPS, que antes cuidava dos encaminhamentos para clínicas, da coordenação de exames e da gestão administrativa. Agora, com o novo modelo, seu atendimento dependerá de diferentes atores, alguns públicos e outros privados. Os CAPS, por exemplo, seriam clínicas ou hospitais, mas estes também dependem dos Ministérios da Saúde e, da mesma forma, das Entidades de Promoção da Saúde (EPS), que, embora não possam ser transformadas por decreto, veem suas funções alteradas com a nova regulamentação.
Nesse sentido, as críticas dos especialistas também apontam para a falta de coordenação clara entre os diferentes níveis do sistema. Se um paciente precisar ser transferido do CAPS para um atendimento de média ou alta complexidade, não há certeza sobre como esse encaminhamento será coordenado. A Associação Colombiana de Empresas de Medicina Integral (ACEMI), que representa as EPSs do sistema contributivo, tem sido enfática quanto aos riscos que isso acarretaria.
“Persiste a confusão sobre qual ator será responsável por redirecionar os pacientes quando precisarem de cuidados especializados ou mais complexos”, explicou sua presidente, Ana María Vesga. Ela também observou que o modelo não estabelece um caminho claro para o cuidado e “desnaturaliza o papel dos EPS sem uma reformulação institucional que garanta a continuidade”.

O novo modelo propõe mudanças profundas na forma como a saúde é acessada. Foto:
Para Andrés Vecino, analista da Universidade Johns Hopkins, o decreto ecoa os erros da reforma da saúde que não avançou no Congresso. "Ele subordina os IPSs a pertencerem a uma rede autorizada pelo Ministério da Saúde", afirmou, e "dilui a governança do sistema; ninguém é responsável pelos pacientes". Em sua opinião, os riscos são altos: um sistema desarticulado pode acabar gerando mais burocracia, mais barreiras de acesso e menos clareza sobre quem é o responsável quando algo dá errado.
Além da incerteza organizacional, a questão dos recursos é outro alerta crítico. O modelo aponta a necessidade de investimentos em infraestrutura, contratação de novos equipamentos de saúde, transporte para áreas remotas e fortalecimento da rede pública. No entanto, o decreto não cria uma nova fonte de financiamento. Segundo Vecino, sua implementação custaria "uma reforma tributária inteira". Apesar disso, o Ministério sustenta que será financiado com recursos já existentes, oriundos do Regime Geral da Previdência Social na Saúde, do Orçamento Geral da União, de royalties e da cooperação internacional.
Um dos pontos que se destacam no decreto é a chamada "rentabilidade social", conceito estabelecido no texto que deixa claro que o Estado deve financiar a expansão da rede hospitalar pública (construindo mais hospitais e postos de saúde públicos), mesmo que estes não sejam rentáveis. Ou seja, em meio a uma crise de financiamento, o Governo não teria problema em aumentar o déficit fiscal gerado pelo sistema.

Guillermo Alfonso Jaramillo, Ministro da Saúde. Foto: Ministério da Saúde
A Sociedade Colombiana de Anestesiologia e Ressuscitação (SCARE) foi uma das organizações que se manifestou sobre a gravidade do agravamento da crise financeira. "O financiamento continua a recair sobre os mesmos recursos do sistema, que o Tribunal Constitucional e a Controladoria Geral da União identificaram como insuficientes", afirmaram em um comunicado. Acrescentaram que o decreto atribui novas funções a entidades locais sem antes fortalecer sua capacidade administrativa ou técnica, o que pode agravar os gargalos na gestão local da saúde.
O movimento Pacientes Colômbia rejeita veementemente o decreto. "Ele impõe um modelo de saúde sem garantias nem clareza", disse o porta-voz Denis Silva. Segundo ele, milhões de cidadãos não sabem em que consiste o CAPS em que devem se inscrever, onde ficará localizado ou quem os atenderá. "Isso não resolve a crise do sistema; pelo contrário, politiza recursos, aumenta as mortes evitáveis e condena milhares de pacientes a pagar do próprio bolso", disse ele.
Pacientes com doenças crônicas, raras ou de alto custo seriam os mais afetados se os caminhos de cuidado não fossem esclarecidos. Os EPSs não seriam mais responsáveis por coordenar todos os cuidados, mas funcionariam como atores articulados com redes regionais. No entanto, as implicações exatas dessa mudança e como a continuidade do tratamento será implementada em cada caso ainda não foram definidas.

Organizações médicas, pacientes e analistas alertam sobre a falta de recursos e os riscos do modelo. Foto: Gabinete do Governador do Valle del Cauca
No entanto, nem todas as opiniões são críticas. Francisco Castellanos, diretor da Organização de Defesa do Paciente, oferece uma perspectiva diferente. Para ele, o decreto "é, sem dúvida, um avanço na política de saúde pública na Colômbia, que busca reorganizar o sistema de saúde a partir do nível local para garantir um acesso mais equitativo, contínuo e eficaz aos serviços nas regiões". Castellanos enfatiza que esse modelo reconhece as desigualdades regionais e busca abordá-las com uma abordagem diferenciada, por meio de iniciativas como as Equipes Básicas de Saúde, que visitariam a casa de cada pessoa em áreas remotas.
Mesmo assim, ele admite que há obstáculos a serem superados. "Há desafios, claro, e o principal é que pode haver barreiras à coordenação entre os diferentes atores do sistema", reconhece. Mas insiste que, se houver vontade política e técnica, o modelo pode ser consolidado. "A saúde é um direito da população; é um bem público. É obrigação do Estado garantir o acesso aos serviços de saúde em todo o país, não apenas nas principais cidades", conclui.
Poucos dias após sua publicação, o Decreto 0858 continua gerando profundas divisões entre os atores do setor da saúde. Enquanto alguns o veem como uma tentativa de reorganizar e territorializar o sistema, outros temem que, sem recursos, um cronograma claro e uma coordenação eficaz, as mudanças acabem agravando a crise e afetando o atendimento a milhões de pessoas . Trata-se de um sistema de saúde que já sofre com a falta de recursos e que, segundo especialistas, só agravaria seus problemas com a nova regulamentação.
Jornalista de Meio Ambiente e Saúde
eltiempo