Meliterapia: lubrificando o cérebro para curar doenças neurológicas complexas

E se a chave para tratar Alzheimer , epilepsia ou depressão não estivesse nos genes ou proteínas, mas nas gorduras que cobrem os neurônios?
Durante décadas, a pesquisa se concentrou principalmente no estudo de proteínas e genes defeituosos como causadores de doenças. Apesar dos avanços científicos dos últimos anos, ainda carecemos de tratamentos verdadeiramente eficazes para muitas patologias neurológicas.
A terapia lipídica por membrana ( MLT ) é um novo campo da biomedicina que busca tratar doenças modificando os lipídios nas membranas das células cerebrais.
Os lipídios não são todos iguais: alguns, como os ácidos graxos poli-insaturados (incluindo os famosos ômega-3), podem modificar a estrutura da membrana e, portanto, alterar o comportamento das proteínas. Isso significa que, ajustando o tipo de lipídios presentes na membrana, poderíamos restaurar funções cerebrais alteradas em diversas doenças. E os resultados iniciais são promissores.
Lipídios sintéticos capazes de se integrar à membrana neuronal e modificar sua organização já estão sendo desenvolvidos. Um desses compostos demonstrou restaurar a função de proteínas alteradas em modelos experimentais da doença de Alzheimer , abrindo a possibilidade de recuperar circuitos neuronais danificados sem alterar o DNA ou manipular diretamente o sistema nervoso com medicamentos invasivos.
Mas como isso é alcançado? Devemos ter em mente que as membranas neuronais não são simples envelopes, mas estruturas dinâmicas repletas de colesterol, fosfolipídios e ácidos graxos que influenciam a comunicação entre os neurônios (sinapses), a resistência ao estresse oxidativo, a sobrevivência celular e muitos outros aspectos essenciais da vida celular.
Quando esses lipídios se desequilibram, os neurônios funcionam mal e diversas doenças surgem. A meliterapia busca corrigir esses desequilíbrios por meio de modificações lipídicas ou reajustes da membrana plasmática da célula.
Aqui estão alguns exemplos de meliterapia em ação:
Alzheimer: Recuperando Conexões
Nesse distúrbio, os neurônios perdem colesterol e certos fosfolipídios, o que prejudica a formação de sinapses, as conexões fundamentais para a comunicação neuronal e, portanto, para o funcionamento do sistema nervoso. Um estudo recente mostrou que o aumento dos níveis de ômega-3 melhora a memória em camundongos. Ainda não há resultados conclusivos em humanos, mas medicamentos que estabilizam as membranas neuronais e podem retardar o declínio cognitivo que caracteriza essa doença já estão sendo testados.
Epilepsia: Equilibrando os lipídios para reduzir as convulsões
Ao reparar membranas neuronais danificadas, convulsões resistentes a medicamentos podem ser reduzidas. Estudos mostram que o ajuste dos lipídios cerebrais com ômega-3, como DHA e EPA, diminui a hiperexcitabilidade neuronal, o estado em que os neurônios se tornam mais propensos a gerar impulsos elétricos. Os testes em humanos são preliminares, mas a combinação com a nanotecnologia promete tratamentos mais precisos. Essa abordagem inovadora pode complementar, e até mesmo substituir, os tratamentos atuais em casos de epilepsia refratária, onde os medicamentos falham.
Glioblastoma: Avanços promissores na luta contra o câncer cerebral mais agressivo
Um ensaio clínico acaba de apresentar resultados encorajadores para um medicamento à base de lipídios combinado com radiação e quimioterapia para tratar glioblastoma recém-diagnosticado, um dos tumores cerebrais mais agressivos.
Dados iniciais apontam para uma melhor sobrevida dos pacientes, especialmente naqueles com uma característica genética chamada metilação do gene MGMT, que atua como um mecanismo de reparo para DNA danificado. Na maioria dos casos, isso é benéfico, mas no glioblastoma, pode ajudar o tumor a resistir à temozolomida . Este é um dos tratamentos mais utilizados para esse tipo de câncer e atua danificando o DNA das células tumorais. Se o MGMT estiver ativo, ele as repara, e a quimioterapia perde seu efeito. No entanto, quando o gene é metilado — ou seja, desativado — o tumor não consegue se defender contra os tratamentos.
No estudo, o medicamento meliterapêutico foi bem tolerado e nenhum novo efeito colateral foi observado, sugerindo um possível benefício para esse grupo de pacientes.
Embora esse tratamento pareça muito promissor, há obstáculos que devem ser superados:
A barreira hematoencefálica: Muitos lipídios podem chegar ao cérebro a partir do sangue, mas alguns precisam estar ligados a transportadores ou veículos especiais, como nanopartículas.
Efeitos colaterais: Para evitar efeitos indesejados, é essencial projetar moléculas lipídicas que atuem especificamente no órgão ou tecido a ser tratado, sem interferir nas funções normais do resto do corpo.
Personalização: Nem todos os cérebros respondem da mesma forma. Terapias individualizadas são necessárias para cada paciente.
E por que essa terapia é apresentada como uma mudança de paradigma? Porque nos convida a olhar para o cérebro de uma perspectiva diferente. Em vez de continuarmos buscando a "molécula mágica" que explica a origem de tantas patologias neurológicas, talvez devêssemos aceitar que a saúde cerebral também depende da harmonia entre gorduras e proteínas em um lugar aparentemente tão modesto quanto a membrana celular. Exatamente nessa fronteira entre o mundo externo e o interior do neurônio pode estar uma das chaves para a compreensão e o tratamento de alguns dos distúrbios mais complexos da nossa época.
Artigo publicado anteriormente em The Conversation
Enrico Castroflorio: Neurocientista especialista em função sináptica e lipídios, Universidade das Ilhas Baleares
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