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“No apagão, as rádios trabalharam muito bem. E não apenas auxiliaram os ouvintes e foram úteis para a população – fizeram-no de uma forma tão intensa quanto afetiva”

“No apagão, as rádios trabalharam muito bem. E não apenas auxiliaram os ouvintes e foram úteis para a população – fizeram-no de uma forma tão intensa quanto afetiva”

Aos 74 anos, António Macedo tem atrás de si dois terços da sua vida a conduzir programas da manhã radiofónicos, na TSF, na Rádio Nacional, na Rádio Nostalgia e na Antena 1. Iniciou-se neste segmento que acorda o País em 1982, na Rádio Comercial, numa equipa liderada por Luís Paixão Martins. Ninguém melhor, dir-se-ia, para comentar a redescoberta da importância da rádio, durante o apagão do passado dia 28. Diz, nesta entrevista à VISÃO, que se confirmou uma tese que sempre defendeu: “Numa emergência, só a rádio pode responder com utilidade para ajudar as autoridades e as pessoas a fazer-lhe face.” Confirmou-se. “E quanto mais vezes acontecerem, mais vezes se confirmará, independentemente de todas as evoluções, das novas tecnologias, de tudo – a rádio é a mais ágil”, acrescenta. Sendo uma verdade factual, nem se pode alegar aqui a parcialidade de alguém que, no seu ranking afetivo pessoal, apenas põe a família acima da rádio. Uma entrevista também feita de confidências. Como esta: no início de cada uma das muitas centenas de emissões que conduziu, esteve sempre tenso e com borboletas a voarem-lhe por dentro. Se assim não fosse, “alguma coisa não estava bem”.

Apesar dos pesares, nas dez horas do apagão sentiu-se reconfortado por ver a rádio como salvação informativa de um povo desorientado?A primeira coisa que tive foi peneiras. E há uma tese que sempre defendi: numa emergência, só a rádio pode responder com utilidade para ajudar as autoridades e as pessoas a fazer-lhe face.

O que se confirmou…Confirmou-se uma vez mais. E quanto mais vezes acontecerem, mais vezes se confirmará, independentemente de todas as evoluções, das novas tecnologias, de tudo. A rádio é a mais ágil. Desde que haja a preocupação de acautelar as bases principais do funcionamento daquela geringonça, não tenho dúvidas nenhumas de que a rádio responderá sempre e de que será, em muitas circunstâncias, a única a fazê-lo. Como aconteceu no apagão: respondeu às exigências que se colocavam quando o País viveu essa emergência.

E o trabalho noticioso também o deixou com “peneiras”?Tive o conforto de perceber que as rádios, no seu conjunto, estavam a trabalhar muito bem, muito melhor do que no dia a dia, o que também não me surpreende nada. Mostraram capacidade para ir aos sítios, contar o que se passava. De certa maneira, até, não foi apenas auxiliar os ouvintes e ser útil para a população, foi fazê-lo de uma forma tão intensa quanto afetiva. O que a rádio tem, e é única a tê-lo, é a afetividade, a capacidade de dizer: “Eu estou presente, também estou aqui, estou contigo. E estou cá precisamente para ajudar.” É uma característica decisiva para distinguir a rádio de tudo o mais.

Ouviu muita rádio naquelas horas?Tenho montes de rádios em casa, mas são todos elétricos e, portanto, não funcionavam. Mas tenho um rádio que, além de ser elétrico, é também de pilhas. E não tinha pilhas em casa para aquele rádio. Pelo que, no princípio, tive de ir ao carro, como muita gente. Entretanto, a minha mulher conseguiu comprar pilhas numa loja dos 300. E então passei a ter rádio em casa, com o aparelho a pilhas. Tenho mais dois rádios de pilhas, pequeninos, mas não sei onde estão. Fizeram-me sempre muita companhia, um é National, um rádio que tenho há mais de 40 anos – está numa gaveta que, de momento, não sei qual será.

Referiu há pouco que não o surpreendeu o facto de as rádios nas respetivas emissões do apagão terem trabalhado melhor do que no dia a dia. Porque diz isso?Quando há operações especiais ou emergências, sabemos de antemão que a rádio pode responder, e que responde sempre bem. O problema da rádio é o dia a dia. São as conferências de imprensa da Fenprof. Não estou a menorizar a Fenprof, nem as conferências de imprensa. É um exemplo. O dia a dia da nossa vida é isto. E esta gestão do quotidiano é muito complicada de fazer. É muito difícil. Porque é a rotina. No fundo, nesta atividade, a rotina mata. Porque relaxamos e adormecemos em cima daquilo. E as coisas passam a não saber tão bem.

O que, supõe-se, nunca aconteceu na equipa fundadora da TSF, a que pertenceu, nos anos 1980…Essa era uma equipa absolutamente fantástica. A TSF começou no dia 29 de fevereiro de 1988 e a 1 de março houve uma greve geral. Aí mostrou-se logo, sob a liderança do Emídio Rangel, e atropelou tudo o que era gente da rádio em Portugal. O treino que a rapaziada tinha… Sabíamos perfeitamente que, a partir do momento em que fôssemos desafiados, esse atropelamento ia acontecer. E a cobertura do incêndio do Chiado, em agosto seguinte, foi a confirmação absoluta de que não havia, naquela altura, quem se equiparasse à TSF, àquela equipa, àqueles miúdos, ao voluntarismo, à competência e ao talento daquela rapaziada.

Depois, em junho de 1994, há outra emissão histórica da TSF – a da cobertura do bloqueio da Ponte 25 de Abril, por causa do aumento nas portagens, e que representou o princípio do fim do cavaquismo…A rádio passou a ser tão importante que as fontes iam bater à nossa porta, tocavam à campainha. Alguém se dirigiu à TSF e contou o que ia passar-se no dia seguinte, a partir das sete da manhã. E preparámos tudo para atacar no buzinão/bloqueio da ponte. Além de a redação estar toda preparada, tínhamos, desde as cinco, cinco e meia da manhã, pessoas posicionadas no acesso sul da ponte, onde o bloqueio dos camionistas ia concretizar-se. O David Borges era uma dessas pessoas – morava na Margem Sul e ficou logo lá. Estávamos absolutamente preparados para uma maratona. Lembro-me de que me sentei no estúdio – com muitas sandes à disposição – às seis, seis e meia da manhã, e de que só me levantei ao meio-dia e meia para ir à casa de banho. Já o Francisco Sena Santos esteve até às quatro da tarde, permanentemente, sem se levantar. Na altura, era à TSF que as pessoas recorriam quando precisavam de fazer avisos desta natureza, ou de outra. E, neste sentido, é um símbolo da rádio à qual as pessoas se dirigiam – não era aos jornais nem às televisões.

Recuando até ao início da sua vida profissional de radialista, no princípio dos anos 1970, depois de uma passagem pela rádio da Universidade de Lisboa, encontramo-lo em Luanda. Ao que se conta, tinha ido de férias visitar familiares e, de repente, foi chamado para fazer uma substituição na Rádio Comercial de Angola…Exato.

E pouco depois estava a fazer relatos de futebol.Sim.

Como foi essa experiência?Acho que o exercício mais difícil que há em rádio é fazer relatos de futebol. É preciso um fôlego enorme para silabar àquela velocidade vertiginosa. Há aquele território “enorme” de um hectare para descrever, com 22 almas a discutir a posse de uma bola, para a meter em duas balizas. É muito complicado: há que relatar o que se está a passar e mostrar onde é que se está a passar. Não há mais modalidade nenhuma que tenha uma exigência desta natureza.

Teve alguma “tremedeira” na sua estreia nos relatos de futebol?Não, não. Tinha uma lata muito grande e uma desvergonha total. Ia a todas. A coisa tinha mesmo de funcionar, nem que fosse à força.

O 25 de Abril de 1974 ainda o apanhou em Luanda?Sim, estava na Emissora Oficial de Angola.

O que se passou então por lá?O meu 25 de Abril foi muito fraco, para não dizer outra coisa, embora, tirando os dias de nascimento dos meus filhos e das minhas netas, seja a data mais feliz da minha vida. Passei todo o dia 25 de Abril a dormir, em Luanda, porque na véspera tinha-me deitado às quinhentas. Tinha combinado com dois amigos, um dos quais o escritor e jornalista João Aguiar, que às seis da tarde me tocassem à campainha, para irmos à cerimónia do lançamento de um livro do Bobela-Motta, grande escritor e cronista, um senhor fantástico do reviralho. Estava eu todo ensonado, e o João Aguiar diz-me: “Parece que está a acontecer alguma coisa em Lisboa, mas ainda não sabemos bem o quê.” Tomei banho, fui ao lançamento do livro do Bobela, jantei e fui fazer o relato de um jogo de basquetebol.

O que a rádio tem, e é única a tê-lo, é a afetividade, a capacidade de dizer: ‘Eu estou presente, também estou aqui, estou contigo. E estou cá precisamente para ajudar.’ É uma característica decisiva para distinguir a rádio de tudo o mais

Sobre o golpe militar que derrubou a ditadura, nada…Só na madrugada de 25 para 26 se começou a perceber o que se estava a passar, pela escuta, em onda curta, da Emissora Nacional. Quando, na manhã seguinte, houve a certeza do que se tinha passado, a direção da Emissora Oficial de Angola, presidida pelo dr. Oliveira Pires – que depois trabalhou na Rádio Renascença –, tentou por todos os meios travar a difusão das notícias.

Como contrariaram isso?Constituiu-se de repente uma comissão ad hoc, que destituiu a direção e tomou conta da emissora. Portanto, o meu 25 de Abril foi a 26. Daquela comissão faziam parte, além de mim, dois técnicos de estúdio e um técnico de emissores, e dois jornalistas, um dos quais o César Camacho, que seria fundador do Público. Mas nós próprios fomos destituídos dois dias depois.

Por quem?Pela direção fascista. Até que apareceu o MFA para tomar conta daquilo. O capitão Melo tornou-se diretor da emissora, e nós regressámos todos aos nossos postos, já não como comissão ad hoc. E eu, no famoso 1º de Maio de 1974, estava em Lourenço Marques [hoje Maputo], a acompanhar o campeonato nacional de basquetebol, o último disputado com equipas da chamada metrópole, de Angola e de Moçambique.

Não ficou chateado por o mandarem para um relato de basquetebol num momento daqueles?Em Angola ainda não era um “momento daqueles”. Aquele 1º de Maio teve lá um simbolismo muito ténue. O 1º de Maio foi aqui, e tenho um grande desgosto por não o ter vivido. Só regressei a Portugal em 1975, à entrada do “Verão Quente”.

Contas feitas por alto, passou depois dois terços da sua vida a acordar o País e a levantar-se de madrugada. Como recorda essa epopeia?Antes de mais, a acordar parte do País. Houve um amigo que pretendeu fazer as contas do tempo em que estive nas manhãs da rádio e está convencido de que podia candidatar-me ao Guinness [Risos]. Mas não sei se o António Sala fez mais tempo do que eu. De qualquer maneira, foram muitos anos.

Há de lembrar-se da primeira vez…Foi na equipa das manhãs noticiosas da Rádio Comercial, do Luís Paixão Martins, de 1982 a 1984.

A partir daí, a que horas chegava à rádio em que estava a trabalhar?Cinco, cinco e meia da manhã. Mas há diversos períodos da minha vida. No princípio da TSF, fazia duas diretas por semana. Fazia uma direta à segunda-feira, porque tinha a gravação d’O Preço Certo, que terminava sempre às quinhentas. Acabava cheio de fome, ia cear com a malta, ia a casa, tomava banho, mudava de roupa e seguia para a rádio. E à quinta-feira fazia também uma direta – ia para a copofonia com camaradas e amigos, noitadas a percorrer bares, o que não dispensava, dada a minha dificuldade de me afastar da boémia. Mas pelas onze e meia bebia o último whisky. Não bebia mais álcool, ainda que ficasse na noite até às três e meia ou quatro da manhã, até ir a casa, tomar banho, mudar de roupa e ir para a rádio.

Que arcaboiço…Tinha de me aguentar. Hoje já não era capaz.

Mas, fora as diretas, a que horas se deitava?Disciplinadamente, devia estar a dormir às onze horas. Mas, nos primeiros anos, só adormecia depois do noticiário da meia-noite. Porque há um princípio: a manhã começa à meia-noite. Até que me deixei disso, porque não aguentava. Às onze da noite, no máximo, estava a dormir, para me levantar pelas 4h20 da manhã.

Na rotina de um programa da manhã de rádio, já está muita coisa preparada de véspera?Com certeza. Está praticamente tudo preparado. Um tipo não pode ser apanhado desprevenido, de maneira nenhuma. A equipa tem de ser muito competente e muito disciplinada. Não se pode deixar de cumprir escrupulosamente a rotina estabelecida. Se uma coisa um dia é deixada para trás, acumula para os dias seguintes e nunca mais a agarramos. Na rotina há, por exemplo, o conhecimento de véspera, no mínimo, da playlist, porque tinha de saber o que estava alinhado para o dia seguinte. Ou respeitava escrupulosamente o que estava planificado ou fazia as minhas próprias alterações. E, no meu caso, tinha tudo escrito: as aberturas, pré-ouvia tudo o que estava pré-gravado, para fazer os lançamentos e os rodapés. Até os improvisos estavam escritos. Sempre aprendi, desde o princípio, que o melhor improviso é aquele que a malta escreve. Esse é o improviso do caraças. O resto depois logo se vê.

Diz-se que um programa da manhã de uma rádio é determinante para fidelizar ouvintes e captar novos. Para quem o conduz, é uma responsabilidade tremenda…É o drive time, equivalente ao prime time da televisão. Eu, que me considero um tipo razoavelmente leviano, para certas coisas não sou. Tive sempre a perfeita consciência da importância que eu tinha. Acho que em relação a isso não posso ser minimamente beliscado. Tanto assim era que, no início de cada emissão, estava nervosíssimo, como se fosse a primeira. Sempre a tremer. E se não tivesse as borboletas a mexerem dentro de mim, alguma coisa não estava bem. Se calhar, era mais tensão do que nervosismo. Porque essa tensão inicial é algo que permite a concentração, para não se perder o pé. As primeiras coisas têm de sair a 100%: quando o equipamento responde, quando se abre o microfone para falar, e por aí adiante. Depois, pronto, vai-se por aí fora, é um bailado.

No seu ranking afetivo pessoal, em que lugar está a rádio?Só ponho a minha família acima da rádio. Tendo passado o que passei na rádio, as horas imensas de trabalho, nunca me sacrifiquei. Zero. Aconteceu algumas vezes estar dois ou três dias sem ir à cama, sem dormir, e trabalhar em circunstâncias inqualificáveis e inaceitáveis, mas nunca entendi isso como um sacrifício da minha parte. E, lá está, também nunca adormeci em cima da rotina. Ou seja: vou fazer a emissão na terça-feira e, na quarta-feira, é mais ou menos a mesma coisa. Não, aquilo era como se fosse uma emissão especial, de pé na tábua, “vamos nisto!”, dar pica à rapaziada à minha volta.

Como e quando descobriu que era rádio o que queria fazer?Quando tomei mais consciência de mim próprio e do mundo que me rodeava, fui sempre um tolinho de rádio. Ouvia tudo, conhecia todos os protagonistas da rádio, transformava-os em figuras que eu imaginava, dialogava com elas. E sempre gostei muito da rádio de palavra, desde miúdo.

Visao

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