Comporta. ‘Não acredito que vá melhorar grande coisa’

O problema não é recente. Aliás, há vários anos que se ouve falar das transformações ocorridas na zona de Melides, Comporta e Troia, outrora lugares para reencontros de amigos, campismo na praia, fogueiras na areia e preços bastante acessíveis. O tempo foi passando, os lugares «descobertos» tornando-se verdadeiras minas de ouro para investidores internacionais. Segundo os moradores e comerciantes, o cenário têm piorado todos os anos com as grandes construções de luxo que aumentam os preços da habitação e bens essenciais, que atraem turistas com grande poder de compra oriundos de várias partes do mundo e dificultam o acesso às praias onde muitos cresceram.
O caso tornou-se tão gritante e as queixas foram tantas que na semana passada o Governo prometeu tomar medidas para a proteção da sua «identidade». A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) fiscalizou recentemente as 22 praias nestes 45 quilómetros de costa e constatou que, tal como já tinha sido denunciado, nem todas são públicas, o que acaba por violar a lei. Na ação, a APA encontrou duas praias com acesso controlado e sete com acesso condicionado por empreendimentos turísticos. São elas respetivamente Tróia-Galé e Galé-Fontainhas, Brejos, Torre, Camarinhas, Duna Cinzenta, Golfinhos, Garças e Pinheirinho. Ou seja, em algumas o acesso viário está condicionado por passagens com propriedades privadas – normalmente no interior de empreendimentos turísticos –, assim como estacionamento público disponível em número muito limitado. Noutras, o acesso é feito por cancelas, identificação e a pé.
Zonas condicionadas
A nossa viagem começa precisamente na Galé-Fontainhas. O caminho está completamente diferente daquilo que vimos há três anos quando o Nascer do SOL escreveu uma reportagem sobre o fecho do campismo da Galé para a construção do resort de luxo Costa Terra, propriedade do magnata imobiliário norte-americano Mike Meldman, mais conhecido por ter fundado a empresa de tequila Casamigos com ator e produtor americano George Clooney, ligado ao projeto desde 2021.
O empreendimento já está aberto há algum tempo e o que vemos do lado de fora dá-nos um pequeno vislumbre do que existe lá dentro: um grande campo de futebol, campos de padel, uma grande área de horta e aquilo que se assemelha a um bar/lounge privado. Por nós passam Porsches e Range Rovers. Mas, ao chegar ao campismo da Galé, o cenário muda, parecendo que o parque se encontra quase ao abandono. Não está ninguém na receção. E os trabalhadores das construções que se encontram no local não sabem dar orientações sobre a maneira de chegar ao areal.
Ao longe, aproxima-se um casal de jovens vindos precisamente da praia. «Trabalhamos aqui no campismo», dizem com um ar de quem não pode dar muitas informações. «Se quer chegar à praia ou vai pelo caminho que já existia de difícil acesso por ali por trás, ou tem de deixar a identificação na entrada e seguir pelo campismo. Só quando regressar é que terá o Cartão de Cidadão de volta por questões de segurança», indica a rapariga.
Nesta praia, bem como na Tróia-Galé, a tutela pretende que os operadores coloquem placas a informar a existência de acesso pedonal e colaborem na concretização de projetos para a disponibilização de estacionamento e acessos livres de condicionalismos. Aqui, a placa já se encontra afixada. No caso das praias de acesso condicionado – como a de Brejos a que o Nascer do SOL não conseguiu chegar pelo aviso de propriedade privada –, quer por questões territoriais ou pela ocupação turística, o objetivo passa pela construção de mais parques de estacionamento – não ficou claro se os estacionamentos a construir serão gratuitos ou pagos –, e de acessos pedonais públicos.
Além disso, de acordo com a Ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, nenhum novo empreendimento turístico junto às praias poderá ser aprovado, em Portugal continental, sem que seja previamente assegurado o direito de acesso às praias.
Controlo dos preços
Seguimos para o centro da Comporta. As esplanadas dos restaurantes e cafés estão compostas, principalmente, por turistas. Ouve-se falar inglês, espanhol e brasileiro. Tiago Quintas, tem 28 anos e cresceu aqui. «Com o passar dos anos, como toda a gente já sabe, a zona tem-se tornado cada vez mais turística. As pessoas que realmente são de cá deixam de ter propriamente um espaço, porque começa a ser tudo feito para os que chegam, para uma elite. Está cada vez pior», alerta.
Segundo o funcionário da Pizzaria do Monte, está tudo cada vez mais caro. «Cheguei a ouvir que há aqui casas a cinco mil euros por noite. É um absurdo. Este ano ainda não fui à praia, mas no ano passado fui e notei que já haviam vários aldeamentos, uns construídos, outros em construção perto da praia», lembra. «Continuam a haver alguns acessos, mas as coisas foram ficando cada vez mais restritas. Acho engraçado porque vemos placas que dizem: ‘Faça como nós e preserve as dunas!’, sendo que eles estão a construir lá. Devia haver um controlo mais severo, veremos se isto da fiscalização resultará nalguma coisa. Estou um bocado pessimista. Não sei se vai acontecer em tempo útil, nem se irá realmente acontecer para favorecer os de cá. Não acredito que vá melhorar grande coisa. Só vendo», afirma.
Entramos na loja de dois andares Tracesofme onde uma túnica pode chegar aos 450 euros. A funcionária que preferiu manter o anonimato tem 33 anos, é brasileira e vive no Carvalhal há três. «A transformação da zona tem sido bem rápida. Muitas construções, as coisas têm ficado cada vez mais caras… No verão tem havido cada vez mais fluxo de clientes americanos, mas realmente para quem mora aqui, tem sido um grande desafio», desabafa. O seu namorado é português e dá aulas de surf na praia. «Passamos muito tempo na praia do Carvalhal, mas essa não tem acesso limitado. Na Galé há cancelas e os estacionamentos não facilitam o acesso. Se a gente quiser ir à praia tem de ir a pé ou tem de pagar um estacionamento muito longe, sendo que a gente é daqui», lamenta, queixando-se também da construção dos restaurantes na praia. «Às vezes nós não queremos ficar ali na frente de todo o mundo, então temos de andar muito para conseguir mais privacidade. Falo do Sublime, por exemplo. Há três anos tinha poucas sombrinhas, este ano já está impossível. Há concessionários que chegam a cobrar 200 euros por toldo por um dia. É surreal», acusa.
Segundo Maria Graça Carvalho, o Governo também irá começar a limitar os preços dos bens vendidos nas praias, sejam eles toldos, cafés, águas, etc. «O que vamos impor é que estas concessões façam serviço público. Quem as explora paga um valor muito pequeno ao Estado e vamos ser mais exigentes», explicou a governante à Sábado no início do mês, admitindo que «nos apoios de praia pode haver coisas mais caras, mas tem de haver um mínimo à venda a preços acessíveis». «Eu acredito que o Governo pode até aplicar todas as medidas, mas eles vão dar um jeitinho para burlar aquilo e tentar continuar a receber mais», acredita a moradora do Carvalhal.
Uma zona que também desilude
E parece que até para os turistas com algum poder de compra, os preços começam a ser elevados demais. Tiago Rocha, de 33 anos, chegou hoje do Nordeste do Brasil. «Descobri esta zona através de amigos portugueses que já a conheciam. Falaram da gastronomia, da beleza do sítio, da tranquilidade, de ser um bom local para trazer crianças», afirma de mão dada com o filho na porta de uma das lojas do centro. «A gente alugou uma casa e estamos a gostar muito, mas é caro. Temos uma casa em Lisboa, já conhecemos outras zonas do país e achamos um pouco caro para aquilo que é. Não quero falar de valores, mas estamos a pagar mais de 1000 euros por noite. Claro que a casa é muito boa, temos piscina e privacidade, mas é caro. Além de que o sítio é mais calmo do que pensava. Achei que ia haver mais movimento… Tivemos no Sublime hoje a almoçar e gostámos muito. Foi muito fácil entrar com o carro», acrescenta.
O designer franco-egípcio Christian Louboutin, criador das famosas solas vermelhas, apaixonou-se pela região logo nos anos 1980 através de um amigo que vinha passar férias à Comporta. Acabou por comprar casa por aqui, mas depressa se fartou das transformações da zona e, por isso, acabou por se mudar para a aldeia de Melides, onde possui a guesthouse La Salvada e o Vermelho Hotel. «Naquela época, a Comporta era uma espécie de paraíso (…) Mas, há cerca de 15 anos, já sentia que se tornaria o que basicamente é, um lugar superdesenvolvido», disse em 2023 numa entrevista ao Financial Times. «Melides é como a Comporta era no início», afirmou. «As pessoas são tocadas pela autenticidade e temos de manter assim a região», aconselhou «Não esperem que Melides se torne como St. Tropez. Isso não vai acontecer», acredita.
No passado dia 3 de julho, foram reprovadas, na Assembleia da República, todas as propostas de uma petição (com mais de dez mil assinaturas) pela preservação do património natural da Península de Troia. No entanto, o Movimento Reabrir a Galé – Grupo de Apoio à Reabertura do Parque de Campismo da Galé e à defesa do ambiente e justiça social –, não vai baixar os braços. E, por isso, a 27 de Julho, vai aproveitar a realização da UltraMaratona Atlântica (UMA), entre Troia e Melides (UMA) para se manifestar, a partir das 10h30, na Praia de Melides. «Vamos criar cartazes, conversar no bar da praia, imaginar como continuar a vivenciar este território e o que fazer para o proteger», informa o Movimento.
Jornal Sol