Entenda como a dupla Irmãs de Pau sabota a música e abre rotas para corpos trans

"Vi no funk um espaço de liberdade. Falo da minha experiência sexual enquanto travesti. Falo de um corpo que está usando o pau como uma mulher de pau —porque ele não é só do homem." É dessa forma que Isma Almeida, que forma o duo Irmãs de Pau com Vita Pereira, explica o rótulo que inventaram para se definir —pesquisadoras da estética sonora e visual da putaria brasileira.
Catapultadas ao estrelato após uma parceira com Pabllo Vittar, a dupla tem tomado a cena queer de São Paulo com sua união de música eletrônica, dancehall e hip hop com suas letras explícitas e sem pudor, partindo da vivência na periferia da zona oeste da cidade.
Amigas há uma década, as duas se conheceram numa ocupação dos estudantes secundaristas, mas as primeiras composições nasceram na pandemia. Foi quando conseguiram um financiamento coletivo para o disco de estreia, "Dotadas", de 2021, já com participação de Jup do Bairro, consagrada na cena.
Um dos primeiros DJs a apostar no som da dupla foi Mu540, em "Travequeiro". "Elas são multiartistas, que sabem o que querem, do 'moodboard' ao figurino e cenário. Trazem uma grandeza absurda para o funkeiro e para o artista brasileiro", diz o músico.
A virada de chave foi, no ano seguinte, com o single "Shambaralai" e a participação no disco "After", de Pabllo Vittar, na faixa "Derretida". Lá, nasceu um bordão que se alastrou pelo TikTok —"elas têm pau, e a Pabllo também tem pau".
De lá para cá, a dupla se tornou uma presença frequente em diversos festivais e, neste sábado, às vésperas da Parada do Orgulho LGBT+, se apresentam na balada Kat Klub, no centro de São Paulo.
Só neste ano, elas já se apresentaram no Hopi Pride, um dos principais eventos de música voltados ao público LGBTQIA+, no interior de São Paulo, foram trilha sonora do desfile da Misci, do estilista Airon Martin, inspirado pelo romance "Tieta do Agreste", de Jorge Amado, e ainda estiveram no projeto de pagode "Numanice", de Ludmilla.
"Não temos grandes marcas, editais ou instituições nos apoiando. Somos empresárias, produtoras e captadoras de recursos de nós mesmas. Guardamos dinheiro para o projeto", diz Vita Pereira, destacando a criação do disco "Gambiarra Chic".
A segunda parte do trabalho, lançada no final do mês passado, é a produção mais sofisticada da dupla até aqui. Em dez faixas, a sonoridade caminha do rap ao drill, passando pelo jérsei club, mandelão e até reggaeton. Tem assinatura de amigos como DJ Dayeh, Brunoso, Larinhx, Cyberkills e outros.

"Boy Boy", por exemplo, relê "Boi da Cara Preta" para deixar claro para um "crush" que aquele lance é casual. Já em "Posturadas", o duo deixa claro que "não fofocam com as feias, não perdem tempo com macho e gozam um hit novo a cada sessão em estúdio".
"A gente só canta o que a gente compõe. É uma premissa ser honesta com nossa vida e o que nos toca", afirma Isma Almeida. "Representatividade a partir do nosso trabalho e nossas vidas é consequência. Quero ser real e outras se verão em mim. Não quero cobranças por ter virado o jogo e querer que eu represente todas. Nem todas as meninas trans negras querem ser funkeiras como eu", diz.

"Eu sou filha da puta/ não preciso de bofe/ eu mesma trabalhei/ paguei minha bolsa da Lacoste." Os versos de "Queimando Ice", parceria com a rapper Duquesa e um dos maiores hits do disco mais recente, viral no TikTok com mais de 2,1 milhões de "plays", exemplifica as contradições que a dupla vive na vida profissional e pessoal.
"A parte chique da minha vida foram as Irmãs de Pau que trouxeram. Passei a frequentar aeroportos, descobrir o que é uma hidromassagem, ter autonomia do meu corpo com silicone, usar lace humana, produtos de bons, ter condições de morar em um lugar confortável e seguro", diz Pereira.
"A música delas é uma parada que vem do chão, mas olha para o futuro. Te bota para pensar e rebolar ao mesmo tempo", diz Duquesa.

Segundo as artistas da dupla, essa afirmação de identidade também tem seu preço. "Não nos sentimos valorizadas pelo mercado da forma que merecíamos ou deveríamos estar sendo, com os números e o alcance que a gente tem. Qualquer outro artista hétero, branco e cisgênero estaria em outro patamar", afirma Almeida.
Só no Spotify, a dupla tem mais de 1 milhão de ouvintes mensais e faixas na casa dos 3 milhões de acessos —como "Maria Magdalena", com Sevdaliza, cantora iraniana que se naturalizou holandesa.
Diante de um mercado centrado em músicas mais curtas, a tensão para se tornar mais palatável é grande. "A gente já se viu pensando como seria nossa carreira, se a dupla tivesse outro nome. Falavam ‘nome de guerra’ e agora é ‘nome social’", afirma Pereira. "Nomear nossa história como Irmãs de Pau demarca um lugar político, não podemos negociar nossa essência."
Ao contrário de outras estrelas do meio, como Gloria Groove, que, em entrevista, se esquivou quando questionada sobre em quem votaria para presidente em 2026, as artistas endossam a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
"Votarei no Lula, porque acho que não temos outra figura que consiga bater de frente com o próximo representante do conservadorismo no Brasil. Mas também sou muito crítica com várias posições históricas do PT e da esquerda", afirma Pereira.
A dupla viu com preocupação os episódios recentes que reacenderam o debate sobre a criminalização do funk, com a prisão do MC Poze do Rodo, sob suspeita de apologia do crime, e com o rapper Oruam batizando um projeto de lei que visa proibir músicas com esse teor em eventos públicos.
No disco mais recente, por exemplo, as Irmãs de Pau lembram o consumo de diferentes tipos de maconha. "Amanhã pode ser a gente ou qualquer pessoa que produza funk", diz Pereira. "Muito tem que ser conversado sobre o ambiente do funk ser transfóbico, racista, machista, mas não podemos ignorar o quanto esses projetos estão crescendo. Além de gritar que a ‘favela venceu’, temos que ver o que a favela está passando."
É, afinal, nas quebradas onde cresceram e vivem —Almeida em Itapevi, Pereira em Barueri, ambas cidades nos arredores de São Paulo— que fincam a ponta fina dos seus scarpins. "Aqui sou Isma. Saio do personagem, sem medo, sem make. Não precisa se sentir grandona o tempo todo."
uol