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Férias judiciais: um mito interminável

Férias judiciais: um mito interminável

Todos os anos, por esta altura, é frequente assistir-se ao regresso do tema das “férias judiciais” ao seio da discussão pública. Os nomes que se atribuem às coisas têm naturalmente o seu peso, sendo que, neste caso, a expressão em causa não contribui, de todo, para a melhor compreensão do funcionamento do sistema de justiça e está absolutamente carregada de equívocos.

Sendo certo que as chamadas “férias judiciais” constituem uma expressão legal com cabimento na Lei de Organização do Sistema Judiciário, a verdade é que a perpetuação do termo tem sempre dado azo a uma distorção da imagem da justiça, dos tribunais e das magistraturas, inculcando a ideia de que aos juízes é atribuído um privilégio especial de gozo de generosas pausas estivais, por contraponto aos demais cidadãos a quem essas benesses não são concedidas. E a verdade é que o termo, bem como equívoco que ele gera, têm sido, ao longo dos tempos, grosseiramente utilizados por todos aqueles a quem pouco interessa pugnar pela credibilidade dos tribunais, muitas vezes a troco de ganhos políticos ou reputacionais assentes em demagogia pura. Ao invés, tem sido próprio sistema e os elementos que o compõem a terem a necessidade de vir explicar, pública e racionalmente, o significado de um instituto legal ao qual são alheios, embora (reconheçamos), com o passar dos anos, esta luta explicativa se afigure cada vez mais inglória e parca em resultados.

Ainda assim vale sempre a pena insistir, afirmando, desde já, duas premissas fundamentais: por um lado, o judiciário não vai de férias, pelo que os tribunais estão abertos e em funcionamento durante todo o ano; e, por outro, os magistrados têm exatamente os mesmos dias de férias pessoais que qualquer outro cidadão, sendo que os seus direitos laborais estão claramente regulados na lei, sem qualquer benesse suplementar.

A origem das férias judiciais, que perdurou até aos dias de hoje, tem início muito antes do surgimento das formas modernas de organização do trabalho ou da consagração de direitos laborais. O anacronismo da expressão é evidente e remonta à Idade Média, num tempo em que os tribunais interrompiam a sua atividade em determinados períodos do ano, muitas vezes por razões práticas, relacionadas com a deslocação difícil entre localidades ou por motivos relacionados com festividades religiosas ou com o calendário agrícola, associados a períodos temporais de abrandamento generalizado da atividade económica e social.

Em Portugal, o regime das férias judiciais consolidou-se no século XIX, assumindo hoje um desenho que, pese embora a infelicidade da designação que tem perdurado, já não reflete, materialmente, uma herança arcaica, mas antes corresponde a um princípio de gestão dos recursos da justiça numa sociedade moderna e complexa. Pese embora assim seja, e nesse regime se possam encontrar uma multiplicidade de razões benignas que justifiquem a sua existência, a verdade é que o termo que o designa é profundamente responsável pela perceção errada que muitos têm sobre este período que se iniciou no passado dia 16 de junho.

Com efeito, o período de férias judiciais tem vindo, há mais de século e meio, a consistir num período temporal de regeneração do sistema a vários níveis. É nessa fase que é permitido o gozo de férias pessoais aos magistrados e à generalidade dos funcionários judiciais, obviando a que esse gozo se faça noutras alturas do ano em que possa acarretar prejuízo para o normal funcionamento dos tribunais. É nesse período que os advogados, em regra, podem também beneficiar de dias de descanso e, eventualmente, de encerramento dos seus escritórios. É, por exemplo, o tempo das secretarias reorganizarem o seu serviço e prepararem o período

subsequente. É o momento dos magistrados se debruçarem sobre as sentenças dos processos cujos julgamentos terminaram no início do período estival ou efetuarem um estudo mais aprofundado sobre certas matérias que têm em mãos. Bem como é a fase em que os advogados, sobretudo os que trabalham em prática isolada, podem preparar as ações de maior dificuldade técnica ou dedicar-se com mais premência ao atendimento e à consulta jurídica.

Em simultâneo, o sistema organiza turnos de funcionamento que garantem a tramitação dos processos de natureza urgente. Continuam, assim, a ter andamento normal, por exemplo, os processos de violência doméstica, os interrogatórios de arguido detido, os processos que envolvem menores em risco, as providências cautelares e até o processo eleitoral que assegura a regularidade das listas de candidatos que se apresentarão às próximas eleições autárquicas.

No fundo, as ditas “férias” mais não são do que um período definido na lei para que se estabeleça uma suspensão no serviço de natureza não urgente, em ordem à gestão do sistema e à sua eficiência, compatibilizando as exigências inerentes ao seu funcionamento com a garantia dos períodos de descanso que legalmente devem ser assegurados quem o serve: magistrados, funcionários e advogados.

Assim, e de uma vez por todas, perceba-se que as “férias judiciais”, apesar do infeliz nome com que foram “batizadas” não constituem um qualquer privilégio, mas antes uma forma de organização do sistema judicial, sendo admissíveis outras formas para assegurar essa mesma gestão. Na verdade, e no que, em concreto, respeita aos juízes, é público que, pelo menos desde 2006, estes têm vindo a manifestar a posição da sua desnecessidade, havendo, pelo menos, desde há duas décadas, disponibilidade absoluta para uma alteração do paradigma organizativo que permita ultrapassar um sistema que subsiste por razões históricas, mas que pode ser repensado sem qualquer tabu, desde que salvaguardadas as particularidades do sistema judicial e os direitos de quem trabalha nos tribunais e que, tal como sucede com qualquer cidadão, também não podem ser obliterados.

A persistência deste debate revela, assim, uma certa tentação populista que tantas vezes contamina a discussão sobre justiça. Falar de “férias judiciais” como se fossem um “bónus” que apenas serve os interesses dos magistrados, é fácil, imerecido e potencia a conclusão falaciosa de que a morosidade processual ocorre à custa de privilégios concedidos a um grupo. A ideia pode ser propalada até à exaustão e ter imensos adeptos, mas choca com a realidade. Nem a morosidade da justiça se deve às “férias judiciais”, nem estas constituem um modelo ou princípio de gestão que os juízes defendam sem margem para outras ponderações. A morosidade da justiça combate-se com investimento. E a gestão dos tribunais, seja neste modelo ou noutro, não pode prescindir de momentos de reorganização, balanço e de boa preparação e planeamento do ano judicial seguinte.

Para princípio de conversa, e porque o que é simbólico também conta, mudar a expressão legal já seria uma grande ajuda à erradicação do mito.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Visao

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