Montenegro: ou reforma ou será reformado

Decerto que Luís Montenegro sabia o que estava a fazer quando, no discurso da tomada de posse, disse uma frase que o vai acompanhar durante esta legislatura: “Declaro hoje guerra à burocracia”. Dois dias antes, a orgânica do novo Governo já nos dizia que a reforma do Estado iria ser uma prioridade.
Para já, o que o primeiro-ministro fez foi vincular-se a si próprio, ao seu governo e aos partidos que compõem a coligação a mudanças na máquina do Estado que têm sido eternamente adiadas.
Com um novo Ministério da Reforma do Estado e um discurso de tomada de posse centrado no assunto, Montenegro sabe que uma parte importante da avaliação que virá a ser feita ao seu governo vai depender do muito ou pouco que consiga neste dossier.
Gonçalo Matias, uma óptima escolha para uma tarefa tão espinhosa, arranca já com essa carga nos ombros. Não foi, seguramente, ao engano.
É notória a degradação rápida e acentuada do funcionamento do Estado nos últimos anos – em especial na última década.
Os sintomas aparecem-nos todos os dias.
Filas formadas de madrugada na Loja do Cidadão apenas para tentar obter uma senha que permita o atendimento naquele dia; os processos de 400 mil imigrantes que estavam acumulados na AIMA; as horas de espera que o controlo de passaportes nos aeroportos provoca recorrentemente; as urgências do SNS que encerram ao fim-de-semana; a incapacidade de preencher os quadros das escolas para que não haja alunos sem professor a uma ou mais disciplinas; os clássicos atrasos da Justiça; meses de espera para que a Segurança Social atribua e comece a pagar reformas a novos pensionistas; a ineficiência e atrasos crónicos dos transportes públicos; a inoperância do Instituto da Mobilidade e Transportes na emissão e renovação de cartas de condução; os meses e anos de espera de cidadãos e empresas para obter licenças e aprovações para tudo e mais alguma coisa.
A lista podia continuar quase infinitamente. E esta é apenas a face mais visível dos bloqueios de tantos serviços públicos, aquela que ocorre na relação directa com os cidadãos, em que os atrasos e dificuldades são verificáveis.
Se é assim na prestação de serviços, no investimento não é melhor. Não precisamos de recorrer ao estafado exemplo do novo aeroporto de Lisboa como exemplo acabado da nossa histórica dificuldade de decisão porque todos os dias temos notícia de investimentos que já estão decididos, que têm financiamento assegurado mas que, simplesmente, não avançam ou avançam muito devagar.
Do Metro de Lisboa que, em 2023, só conseguiu executar 1% (um por cento, não é gralha) das verbas do PRR que estavam previstas, à modernização da linha ferroviária da Beira Alta, que devia ser feita em nove meses e já vai em três ou quatro anos, até à incapacidade de dar destino útil aos imóveis que o Estado tem no meio de uma crise de habitação, são muitos os exemplos de incapacidade de executar.
Em matéria de investimento, podemos resumir a nossa sina nos dados no último relatório da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, divulgado na semana passada: um terço dos projectos estão em estado crítico ou preocupante.
Ou seja, nem conseguimos gastar o dinheiro que nos é colocado à disposição, muito dele a fundo perdido.
Tudo isto são sintomas óbvios de uma máquina com grandes dificuldades de funcionamento corrente, apesar de consumir cada vez mais recursos financeiros dos contribuintes e empregar cada vez mais pessoas.
O primeiro-ministro identificou alguns dos nós que há para desatar – apesar da mistura de causas com consequências: a falta de capacidade de articulação entre organismos públicos; a demora na resposta às solicitações das pessoas, das instituições e das empresas; o excesso de regulamentação e a cultura de quintal de muitas entidades, funcionários e dirigentes.
Além destas, há outra que pode ser central nas mudanças no aparelho do Estado: a política de recursos humanos. Nada mudará substancialmente se não se encontrar uma forma transparente e equilibrada de responsabilizar os organismos pela qualidade dos serviços que prestam e de poder premiar os melhores.
As resistências serão muitas e, sem surpresa, já começaram a ouvir-se.
A Reforma do Estado não é um processo com princípio, meio e fim muito bem definidos e calendarizados, Devia ser um processo contínuo de adaptação e flexibilidade, conceito que choca de frente com a rigidez e imobilismo da cultura vigente.
Mas Luís Montenegro sabe que alguma coisa terá que acontecer e que alguns resultados rápidos terão que aparecer. Disso dependerá, em grande parte, o seu sucesso ou insucesso enquanto primeiro-ministro. Ou reforma ou será ele o reformado.
observador