Portugal, desde 1128
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O surgimento de Portugal como reino independente é um tema bastante discutido na história peninsular e sempre suscitou interpretações divergentes entre os historiadores. A este propósito, vamos fazer uma breve revisão das interpretações historiográficas acerca da Batalha de São Mamede, seguindo de perto a conferência, sob o título «A Primeira Tarde Portuguesa», proferida pelo ilustre e saudoso Prof. José Mattoso, em Guimarães, na Sociedade Martins Sarmento, no dia 24 de junho de 1978, por ocasião da inauguração das comemorações do 850.º aniversário da Batalha de São Mamede.
A Crónica Geral de 1344 considerou a Batalha de Ourique como o facto histórico mais significativo das origens de Portugal, por associação ao momento em que D. Afonso Henriques tomou o título de rei. Todavia, a crónica de 1419 consagrou, oficialmente, a lenda da aparição divina a D. Afonso Henriques, na véspera da batalha, e lhe atribuiu o caráter sobrenatural que se perpetuou durante séculos.
Como disse José Mattoso, «Não admira que, na época em que a consciência nacional se torna mais nítida, a partir da luta pela independência, em 1385, se tenha escolhido este acontecimento, e não São Mamede, como símbolo da nacionalidade. Com efeito, ele era muito mais adequado para fazer intervir o sobrenatural, porque punha em jogo a luta entre a Cristandade e o Islão, e para fazer revestir o rei de uma missão sagrada».
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No século XVII, Frei António Brandão (parte III da Monarquia Lusitana) atendeu à questão, com cuidado, e aflorou a hipótese de Valdevez, mas concluiu, como disse José Mattoso, na conferência citada, que: «o verdadeiro berço da nacionalidade foi em Ourique, onde se cruzaram três factos significativos: a vitória contra os verdadeiros inimigos da Nação, a intervenção divina e a aclamação do príncipe como rei.»
A Primeira Tarde PortuguesaMantendo-se fiel à tradição, este erudito cisterciense, com a autoridade que lhe é reconhecida, deu-lhe força para ela se prolongar quase até aos nossos dias. E como José Mattoso afirmou: «Só com Alexandre Herculano é que São Mamede se considera, pela primeira vez, como o dealbar da Pátria. Ao contrário de Brandão, não interpreta o acontecimento como a simples substituição do chefe, mas o resultado de uma ação coletiva, e, por isso mesmo, o facto sem o qual nem Valdevez nem Ourique teriam sido possíveis».
Curiosamente, nesta conferência especialmente dedicada às origens de Portugal, o Prof. José Mattoso não fez qualquer alusão a outros factos históricos eventualmente revestidos dessa potencialidade, como, por exemplo, a Conferência de Zamora, de 5 de outubro de 1143, ou a Bula Manifestis Probatum, de 23 de maio de 1179. Este silêncio do Professor ter-se-á devido, na nossa opinião, ao facto de ele considerar como questão-chave da historiografia portuguesa, no que toca às origens de Portugal, “averiguar se a nossa autonomia se deve à decisão mais ou menos arbitrária de uns tantos indivíduos, ou se é o irresistível desabrochar de uma força resultante da estrutura social e cultural de um vasto grupo humano, com raízes nas próprias condições geográficas e num comportamento secular”.
Terá sido por isso que, ao escrever as páginas de «A Primeira Tarde Portuguesa», se focou na origem da Nação, e não na busca do dia em que Afonso Henriques assumiu o governo de Portugal, como Rei de pleno direito, e sem qualquer tipo de subordinação, transformando-o em Estado soberano. Esta nossa intuição é confirmada pela afirmação que o Professor fez nessa conferência, de que, “em São Mamede… fica demonstrada a viabilidade da Nação”; e reforçada, acrescentamos agora, quando noutra passagem ele se referiu à intervenção, na batalha, de um grupo social coeso que “demonstrou a sua força contra adversários poderosos” e “tomou consciência mais clara da sua capacidade de autonomia”.
Ora, esta abordagem das origens de Portugal não deixa de ser interessante, e será, porventura, o modo de atingir as raízes sociais, culturais e políticas mais profundas que corporizam o País que somos hoje. Porém, a Nação portuguesa desmembrou-se da Galiza, enquanto o reino de Portugal se autonomizou de Leão! Por isso, procurar o dia do nascimento de Portugal, enquanto Nação, é como entrar num labirinto; entrar é fácil, mas é muito difícil encontrar a saída!
Reino, Estado e NaçãoDe facto, embora se confundam, muitas vezes, na comunicação corrente, os conceitos de Nação e Estado são distintos, e não se identificam, pois a criação de um reino não é comparável à formação de uma Nação. Contrariamente ao que acontece com as nações, os Estados, hoje, podem constituir-se de um dia para o outro, em resultado, ou como consequência, de um ato isolado. E por maioria de razão, assim era, na Idade Média, uma vez que, como diz José Mattoso, “a monarquia era exercida como uma propriedade pessoal; por isso, o rei podia dividir os seus Estados pelos herdeiros”. Por exemplo, o rei leonês, Fernando I (1016-1065), avô de D. Teresa (c. 1080-1130), dividiu o seu reino, à hora da morte, deixando ao primogénito, Sancho II (1036-1072), o reino de Castela, a Afonso VI (1047-1109), o reino de Leão, e a Garcia II (1042-1090), o reino da Galiza. Como se pode ver, de um reino nasceram três, num só dia, em 27 de dezembro de 1065 (data plausível do seu falecimento). Idêntica divisão aconteceu, por disposição de Afonso VII, que, após a sua morte, em 1157, deixou o reino de Castela ao primogénito Sancho III, e o reino de Leão ao filho Fernando II, genro de D. Afonso Henriques.
Portugal deverá ser dos poucos países do mundo que não comemoram o seu nascimento. Diria até, de modo mais direto, que uma boa parte dos portugueses não sabe – nem faz muito esforço para saber – em que dia e em que circunstâncias Portugal surgiu como Estado soberano. Por isso, impõe-se um trabalho de investigação direcionado para a origem do Estado – e não da Nação –, com base, por exemplo, nas diferenças e semelhanças entre a historiografia portuguesa e a espanhola no que toca aos factos históricos que conduziram à independência de Portugal. Esta dúvida, que tem embaraçado os agentes políticos modernos quanto à definição de uma data certa e determinada para a independência de Portugal, assenta no facto de Portugal ser um Estado-Nação e de esta simbiose dificultar a compreensão e determinação do momento de nascimento de cada conceito.
Não há dúvida de que as consequências da independência do Condado Portucalense influenciaram, de forma distinta, os dois povos, portugueses e espanhóis. Podemos dizer que, no que toca à historiografia espanhola, o seu quase silêncio sobre a independência de Portugal impede que ela se compreenda de forma positiva. No entanto, esse silêncio, afetando, também, o processo político que envolveu o desmembramento do reino de Leão, naquela época histórica, gera a possibilidade de uma ampla reflexão à volta dessas lacunas.
A independência, quando?A independência de Portugal é tratada “de forma bastante diferente, ou, simplesmente, não é tratada”, pelos autores espanhóis, e não apenas no passado. Autores de relevo, de hoje, e a historiografia espanhola, em geral, mostram evitar referir nomes da sociedade e da política portuguesa, de então, aligeiram as circunstâncias, ou simplesmente as ignoram, sob mínimos argumentos e pormenores. Como refere Nelson Lombardi, destaca-se, na historiografia espanhola, “a falta de atenção, realmente consistente, sobre os acontecimentos que envolveram o destino do Condado Portucalense”, que não vai além de mencionar o casamento D. Teresa com D. Henrique de Borgonha, e, “às vezes, alguns feitos de Afonso Henriques.” Tal silêncio “incomoda a historiografia portuguesa”, mas revela, do lado espanhol, incómodos ainda maiores, talvez por envolver “desmembramento do território” e afetar o “orgulho nacional”, sobretudo “no que tange ao período imperial”, dado que Portugal se converteu “num empecilho para a consolidação e afirmação do poder efetivo do imperador Afonso VII”.
Parece-nos, pois, que seria interessante trazer para a discussão a “voz do silêncio” dos historiadores espanhóis e procurar esclarecer a maneira como eles, por comparação com os portugueses, abordam a constituição do reino de Portugal. Este deveria ser um dos objetivos a perseguir, no âmbito das comemorações dos 900 anos da Batalha de São Mamede.
Enquanto a humanidade estiver sujeita à ditadura do tempo, as datas do nascimento e da morte de qualquer sujeito farão sempre parte da sua identidade. Por isso, também Portugal precisa de procurar encerrar a controvérsia existente e tudo fazer para instituir uma data que assinale o seu dia de nascimento como Estado independente, uniformizando, assim, o entendimento nacional sobre esta matéria.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam as suas próprias posições.]
observador