Um grande discurso democrático
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Falemos então da administração Trump e da relação dos EUA com a Europa. Fez três anos que a Rússia invadiu a Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro de 2022, e a Assembleia Municipal de Lisboa discutiu documentos oficiais para marcar a data. Os comunistas queriam armas do lado de lá e pacifistas do lado de cá. Seja quem for que esteja do lado de lá, merece o acrisolado amor dos comunistas desde que se oponha ao capitalismo e às democracias liberais. Os outros partidos apresentaram documentos respeitáveis. Um desses documentos, que apoiava a Ucrânia, acusava os EUA de terem deixado de ser, após a eleição de Trump, um “aliado fiável para a Europa”.
Em parte, essa conclusão atrevida assentava na descarga de “ofensas à Europa” disparadas no discurso de JD Vance, vice-presidente dos EUA, na Conferência de Munique, há quase duas semanas. Uma interpretação errada do discurso e dos factos.
Era uma conferência sobre segurança, esperava-se dele que falasse sobre segurança e defesa. JD Vance falou. Começou por prevenir que a presença dele e a relação entre os dois lados do Atlântico se baseavam nos “valores comuns” entre os EUA e a Europa. Lembrou o ataque terrorista sucedido ali mesmo, em Munique, na véspera. E desenvolveu: Normalmente a ideia de “segurança associa-se a ameaças militares externas”; ele “acredita” que a administração Trump “vai conseguir um acordo razoável entre a Rússia e a Ucrânia”; no entanto “a ameaça mais preocupante (para a Europa) não é a Rússia, não é a China, não é nenhum agente externo. A ameaça mais preocupante é uma ameaça interna”: “a Europa afastou-se de alguns dos seus valores mais fundamentais, valores esses partilhados com os EUA”.
Deu exemplos: as eleições anuladas na Roménia; e a possibilidade, ostentada em público por um antigo comissário europeu, de o mesmo acontecer na Alemanha perante uma eventual vitória do AfD. E concluiu: “Não basta falar de valores democráticos, é preciso vivê-los”.
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Lembrou que “durante a guerra fria havia um lado que censurava dissidentes, fechava igrejas, e cancelava eleições”, e que “não se pode impor às pessoas o que elas devem sentir, o que elas devem pensar, ou o que elas devem acreditar”. Mas agora “os vencedores da guerra fria” querem fechar as redes sociais por “discurso de ódio”; e perseguem pessoas por terem escrito comentários “anti-feministas” como parte de um inacreditável “combate à misoginia” na internet. E condenaram uma pessoa por “rezar em silêncio, durante três minutos” a “menos de 200 metros de uma clínica de abortos”. Referia-se a Adam Smith-Connor, veterano do exército britânico, que rezava “em nome do filho que não tinha nascido: ele e a ex-namorada tinham abortado uns anos antes”.
“Em toda a Europa a liberdade de expressão está cada vez mais limitada” e os EUA querem ajudar a Europa a recuperá-la: “Há um novo xerife em Washington. Sob a liderança de Donald Trump, podemos discordar das vossas opiniões, mas lutaremos para defender o vosso direito de as expressarem na praça pública”. E quanto ao pretexto de interferência da Rússia nas redes sociais, JD Vance foi límpido: “Se a vossa democracia pode ser destruída com umas centenas de milhar de dólares de publicidade digital de um país estrangeiro, então não era uma democracia muito forte logo à partida”.
E avisou os líderes europeus: “Se vocês concorrem às eleições com medo dos vossos próprios eleitores, não há nada que a América possa fazer por vocês. Nem há nada que vocês possam fazer pelo povo americano, que me elegeu a mim e ao presidente Trump”.
Aproximando-se do fim, JD Vance referiu-se ao excesso de imigração dizendo que “em toda a Europa as pessoas votam cada vez mais em líderes que prometem exercer um controlo sobre a imigração em massa”. Definiu “a magia da democracia” explicando que ela “não está nos edifícios de pedra” nem “nas grandes instituições que construímos em conjunto como sociedade partilhada”. Voltou a ser límpido: “Acreditar na democracia é compreender que cada cidadão tem sabedoria e tem uma voz”. Terminou citando o papa João Paulo II: “Não tenham medo”.
Peço antecipadamente a vossa compreensão para as citações do discurso, todas minhas e muito livres, porque as reconstruí a partir das notas tomadas num caderno. Mais ou menos literais, o discurso que ouvi foi este. Talvez tenha razão quem está desiludido por esperar dos EUA uma ajuda em matéria militar, que efectivamente não parece estar a caminho. Mas tem certamente razão quem sentiu alívio com a vitória de Trump e reconhece nela uma ajuda incalculável em matéria cultural e política. Estão errados os que imaginam ofensas nas palavras desta administração, que não ofendeu a Europa: ofendeu os cabotinos que têm governado a Europa com base em grandes pancadas nos fundamentos da democracia. Nunca uma ditadura se caracterizou por excessos de liberdade de expressão. Nem nunca uma “ameaça à democracia” se concretizou na partilha de uma civilização, na exigência do regresso às liberdades individuais, no respeito pela privacidade e pela espiritualidade, ou na recusa da governação prepotente.
observador