A cloaca do Estado

Cloaca (substantivo feminino)
- Lugar onde se deitam as dejecções.
- [Figurado] Lugar imundo.
- [Zoologia] Parte dos intestinos de aves, anfíbios, répteis e alguns peixes que constituiu uma câmara comum para os sistema digestivo, excretor e reprodutor.
A semana passada, Pedro Sanchéz, presidente do governo de Espanha, viveu aquele que poderíamos considerar o seu momento José Sócrates. Há uma analogia quase perfeita com o antigo primeiro-ministro português. Durante anos, jornalistas, magistrados, investigadores, foram lançando pistas sobre o comportamento de Sanchéz e do PSOE. Imensas pessoas do círculo próximo de Sanchéz foram envolvidas em suspeitas de corrupção, desvio de dinheiro, obtenção ilícita de vantagens materiais e imateriais. Este grupo de pessoas envolvia gente tão próxima de Sanchéz como a esposa ou o irmão do primeiro-ministro ou, ainda, e muito importante, o seu núcleo duro no PSOE, que o acompanhou desde o momento que chegou à liderança do partido.
Todos que investigavam ou ousavam levantar suspeitas sobre o comportamento do grupo mafioso que tomou conta do PSOE recebiam sempre a mesma reacção da Moncloa e do El País, o braço armado do governo na comunicação social. Infelizmente, durante estes anos, o jornal que nos habituámos a ler como um bastião de seriedade e qualidade tornou-se num pasquim a propagar a mensagem oficial da Moncloa. Não por acaso, há cerca de duas semanas, quando começavam a surgir os primeiros sinais de que o fim poderia estar próximo, a Prisa despediu Pepa Bueno do cargo de directora do El País, substituindo-a por alguém com menos afã de agradar ao chefe e com capacidade de ter um espírito crítico ao ar do tempo em Espanha.
As reacções eram sempre as mesmas. Em primeiro lugar, havia um ataque frontal e impiedoso às instituições e à separação de poderes. Sanchéz e o PSOE acusavam o poder judicial de estar ao serviço da direita e de tentar fazer “um golpe de estado encoberto”, com o objectivo de tentar impedir que um governo progressista e popularmente eleito levasse o seu mandato até ao fim. Em segundo lugar, havia, claro, a utilização da ideia de campanha negra e da propagação de fake news, que passou até pela tentativa de regular órgãos de comunicação social online, os quais, segundo o PSOE, estavam ao serviço da direita e recebiam financiamentos pouco transparentes para levar a cabo uma agenda que visava desacreditar o governo. Em terceiro lugar, havia ainda vários operativos do partido que tentavam comprar (literalmente) informação privilegiada com a qual poderiam fazer chantagem a juízes, magistrados e polícias que estavam directamente envolvidos na investigação ao círculo do primeiro-ministro. Tudo isto, claro, envolto num modus operandi típico de organizações mafiosas, com ministros e altos dirigentes do partido a utilizarem telefones descartáveis ou telefones em cafés espalhados pelo país para conseguirem comunicar com a certeza de que não estavam a ser escutados. Na melhor escola Socrática, Sanchéz apodava de “cloaca do Estado” (sic) a quem se atrevia a pôr em causa a sua probidade.
Havia apenas um pequeno problema com o qual, certamente, o PSOE não contava: os factos e as provas irrefutáveis. Na passada Quinta-feira um terramoto político varreu Madrid quando a Unidade Central Operativa da Polícia Judiciária espanhola fez sair, com a devida autorização de um juiz, um relatório de mais de 400 páginas contendo passagens de escutas telefónicas, mensagens de WhatsApp e inúmera documentação que mostram de forma cabal que os mais próximos de Sanchéz estiveram envolvidos durante anos em esquemas clássicos de corrupção, como por exemplo, a exigência de contrapartidas financeiras para aprovação de obras públicas. Para além disso, o relatório sugere ainda que terá havido corrupção nas eleições internas de 2014 no PSOE, que levaram Sanchéz à liderança do partido.
As pessoas que estão na berlinda não são uns elementos quaisquer no universo Sanchéz, nem tampouco no seu governo. Jose Luis Ábalos foi Ministro dos Transportes, gerindo durante o seu curto mandato qualquer coisa como 11 mil milhões em concursos de obras públicas. Para além disso, ocupou durante 5 anos um lugar muito especial no PSOE: Secretário da Organização do partido. Este é um lugar chave na organização interna do PSOE porque coordena o partido do ponto de vista horizontal (entre as várias unidades geográficas) e vertical (na hierarquia do poder que vai desde o presidente até ao militante mais singelo numa qualquer aldeia da Espanha vazia). Depois da prisão de Koldo, um dos seus assessores, envolvido em suspeitas de comissões ilegais na compra de máscaras durante a pandemia, Ábalos deixou esta posição e foi expulso do partido, não deixando, no entanto, de ser deputado, integrando agora o grupo Misto nas Cortes.
Depois da demissão de Ábalos, Sanchéz escolheu Santos Cérdan para seu substituto como Secretário da Organização do partido. Sanchéz não pode afirmar que Cérdan é uma personagem qualquer. Em todo o PSOE, toda a gente sabia, tal como relatam os jornais espanhóis, que falar com Cérdan era como falar com Sanchéz. A sua posição era de tal maneira relevante que Cérdan foi o homem que Sanchéz enviou a Bruxelas, em 2023, para negociar com Puigdemont a amnistia em troca dos votos do Junts para fazer de Sanchéz chefe de governo. Sobre este processo, a opinião da Comissão Europeia, que curiosamente saiu também esta semana, é cristalina, ao criticar de forma contundente dizendo que “a amnistia não corresponde a um objectivo de interesse geral reconhecido pela União Europeia” ou então ainda que o processo é, na prática, uma auto amnistia “contrária ao princípio do Estado de Direito” na medida em que “os votos dos seus beneficiários foram fundamentais para a sua aprovação no parlamento Espanhol”, fazendo parte do “acordo político para conseguir a investidura do governo”.
O relatório da UCO mostra que Cérdan seguiu as boas práticas do seu antecessor no cargo, tendo recebido qualquer coisa como 620.000 Euros como contrapartida de adjudicações de obras públicas em Múrcia, Sevilha e Barcelona. Perante o vendaval político que se levantou, Sanchéz decidiu apareceu em público para fazer o acto de contrição. No entanto, ao invés de pedir a demissão e anunciar que não se recandidataria, como seria expectável perante todo este cenário, fez duas coisas mais singelas. Por um lado, pediu desculpas aos cidadãos e anunciou uma auditoria externa ao partido. Por outro lado, atirou todas as culpas para Cérdan, afirmando que nunca imaginou que estivesse envolvido nestes escândalos, e dizendo que não era uma pessoa confiável. Apesar de dizer isto à tarde, os jornais relatam que, numa reunião entre ambos nessa mesma manhã, já depois da publicação do relatório da UCO, Sanchéz terá dito a Cérdan que aquilo era mais uma peça da campanha negra contra o PSOE e que acreditava piamente nele. Infelizmente para ambos, as provas são de tal maneira avassaladoras que a carta da campanha negra já não pôde ser jogada novamente.
E agora? Perante a recusa da demissão de Sanchéz, que atirou as instituições espanholas para a lama, antevejo duas saídas potenciais para isto. Por um lado, os parceiros de coligação podem querer abandonar o barco, quando perceberem que a associação a este governo é mais negativa do que positiva. No entanto, adiantar as eleições não parece racional para estes actores porque sabem que seriam fortemente fustigados. Por outro lado, a pressão interna dentro do partido é agora imensa. Depois do que se passou, e dada a marcação de eleições autonómicas e municipais antes das legislativas, muitos actores sub-nacionais pretendem eleições gerais o mais rapidamente possível para que o eleitorado possa descontar o efeito de tudo isto, dando ainda tempo suficiente para recuperar o valor da marca Socialista.
observador