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Bebés reborn e o "Obrigada Mãe": o que há em comum

Bebés reborn e o "Obrigada Mãe": o que há em comum

Nos últimos dias têm surgido várias notícias nos media portugueses divulgando os bebés reborn – bonecos de silicone que, pela habilidade colocada numa produção extremamente cuidada e artística, replicam com grande realismo os recém nascidos. A divulgação poderá ter sido consequência de uma hábil estratégia comercial ou porque foram enviadas para as televisões imagens e relatos da popularidade dos mesmos, principalmente nos EUA e no Brasil.

Aos fins de semana o fait divers calha sempre bem até porque há menos acontecimentos em agenda. Mas este assunto é realmente notícia pela confusão que esta a criar entre o real e o imaginário em cabeças adultas e infantis. Estão a generalizar-se comportamentos absurdos. E as redes sociais multiplicam a alienação porque nestas coisas o algoritmo funciona mesmo, divulgando amplamente as páginas criadas pelos “pais adoptantes” onde publicam o quotidiano dos “filhos adoptados”. “Quero adoptar um bebé reborn” é esta a terminologia que está a ser usada junto dos comerciantes para os adquirir.

A ideia surgiu há já uns anos nos EUA, como tudo aquilo que é de mau gosto, e saltou fronteiras. Em Orlando, na Califórnia, há uma (ou várias) superfícies comerciais onde quando se entra cheira a bebé (o marketing do olfacto ou do cheiro). Numa área está a maternidade onde a segurança dos recém nascidos está garantida por enfermeiras vestidas a rigor que usam um cartão com código para abrir a porta aos clientes. A inclusão está garantida pois há bonecos com cores de pele diversas. Já o mesmo não pode dizer-se sobre o sexo pois que saibamos — há sempre que salvaguardar — a produção é fiel à biologia e eles nascem meninos ou meninas. Mas como o dogma que uma minoria tem feito vingar com muito radicalismo é que o género é uma opção individual os bebés ainda têm tempo para se descobrir e exercer este direito pelo que não deverá haver grandes objecções, neste aspecto. Há apenas que alterar posteriormente a certidão de nascimento que é emitida à saída da maternidade!

Alguns psicólogos alegam que a verosimilhança dos bebés reborn com os recém nascidos pode ajudar a fazer o luto de um parto mal sucedido e/ou compensar emocionalmente um casal com problemas de infertilidade e até pessoas com Alzheimer. Mas são já muitos os casos em que se confunde a ilusão com a realidade. ilusão se confunde com a realidade. E para todos os efeitos é uma mentira e não se trata nem reabilita ninguém com a mentira. Os mais frágeis e vulneráveis (casos psiquiátricos) estão a ir aos hospitais solicitando, por vezes a chorar, a cura do bebé que está doente, a pagar à baby sitter para tomar conta dele e até a formular pedidos de licença de parto. Os oportunistas estão a usá-los em filas de supermercados e outras entidades para poderem ter o direito de prioridade. Isto está a acontecer no Brasil e noutros países.

Em Portugal já há produção nacional além da facilidade em os adquirir on line no mercado internacional. Há preços acessíveis mas os mais sofisticados podem atingir os 2000 euros ou mais.

Nesse mesmo fim de semana foi exibido no segmento publicidade dos canais Media Capital — TVI, CNN — e no CMTV e Now, um videoclip intitulado “Obrigada Mãe”. O espaço foi adquirido por Miguel Milhão que assina com o nome artístico Guru Mike Billions, e é o empresário dono da Prozis (empresa que vende diversos produtos com principal incidência nos suplementos alimentares desportivos). O vídeo está disponível nas redes sociais.

Os canais de televisão RTP e SIC recusaram a transmissão e a TVI suspendeu a exibição após vários protestos apresentados pelo Movimento Democrático das Mulheres e pela associação Escolha “…totalmente dedicada ao apoio da mulher e pessoa gestante durante uma IVG (Interrupção voluntária da gravidez)”. Posteriormente foi formalizada uma queixa junto da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação).

A semelhança entre os bebés reborn e a reacção da associação Escolha face ao vídeo “Obrigada Mãe”reside no facto de em ambas as situações haver uma percepção errada da realidade e a fuga dessa mesma realidade.

No primeiro caso criam-se relações afectivas com bonecos de silicone, como se fossem bebés. No segundo caso critica-se um videoclip porque “assenta num contexto falso do procedimento cirúrgico da IGV”, acreditando provavelmente que essa realidade é um ambiente asséptico e não a que se mostra no vídeo (mas sem agredir o espectador). Há apenas uma mera contextualização do ambiente legal onde ocorre uma IVG: uma sala de operações que pelos procedimentos se depreende ser numa sala de hospital ou numa clínica e não num local particular de vão de escada sem condições.

Aqui parecem estar assegurados procedimentos clínicos e higiene do SNS. Há um plano com técnicos de saúde que têm as luvas ensanguentadas e uma técnica que deita um saco, depreende-se que com tecidos corporais, embriões (gravidez até à oitava semana) e fetos (gravidez da nona semana até ao parto), num de vários contentores de lixo, encostados em fila a uma parede.

A lei portuguesa isenta de ilicitude os abortos até às dez semanas de gravidez, em casos tipificados até às 24 semanas e não há limite para os fetos inviáveis. Esta é a realidade que envolve, necessariamente, resíduos hospitalares que seguem depois para incineração ou são enviados para uma unidade de tratamento de resíduos hospitalares. Há mais planos que retratam um percurso normal e realista de uma IVG de um processo de aborto aprovado e realizado no SNS: uma fila de mulheres que vão tirando senhas e aguardam a sua vez, transmitindo a realidade de um processo que pode ser mais célere e retrata que são numerosas as mulheres que batem à porta do Estado e têm que ingressar filas de espera.

Uma mulher que pondera a decisão

A mensagem principal do vídeo é a de uma mulher que duvida, hesita, já na maca do bloco operatório, e decide não prosseguir com a IVG. O vídeo termina com a imagem dela com o seu bebé nos braços e a legenda “E tu, escolhes a vida”? Durante todo o vídeo há uma música de fundo cantada por Joelise Campos que participou no “The Voice Portugal” em 2020 com 20 anos.

Em declarações à revista Sábado a artista defende que a música não tem o intuito de ser política e apela a que as diferentes opiniões sejam respeitadas. “A canção não é política, é humana. É sobre valorizar a vida sem ditar como alguém deve viver a sua”, afirma Joelisa, acrescentando que “temos de aprender a coexistir com perspectivas diferentes sem nos voltarmos para o ódio”.

As manifestações contra este vídeo Pró Vida, designadamente os comunicados das duas referidas associações que falam na “falsidade com que a narrativa é construída é uma coisa absolutamente atentatória, não apenas dos direitos que foram tão difíceis de conquistar mas de facto perpetua uma lógica de culpabilização das mulheres, de ofensa moral às mulheres”; “apresenta a maternidade como uma obrigação moral universal; “inscreve-se numa lógica bem definida de guerra cultural”.

Quais são os factos que comprovam esta afirmação? Filas de espera, sangue, ambiente hospitalar (felizmente! não um qualquer vão de escada), o que é falso nesta narrativa? Uma mulher que hesita, que chora, que reflecte sobre o acto que vai fazer e que posteriormente recua na sua decisão de abortar vendo-se no final feliz com o seu bebé isto não é real? Atentado à dignidade da mulher será negar estas situações e colocar-lhe o epíteto de acéfala.

A realidade é multifacetada, não incluiu apenas uma decisão. A pessoa pode a todo o tempo, antes ou já no bloco operatório, exercer as suas faculdades – inteligência, vontade, emoção/afectos, liberdade — que a levam a tomar ou a mudar uma decisão, sem que isso seja considerado consequência de qualquer constrangimento, ou “factor de stress” (palavra retirada de declarações da dirigente da Escolha à SIC).

Este vídeo é o acto de agradecimento de um filho à mãe que esteve para o fazer uma IVG e acabou por decidir não o fazer, apesar das dificuldades que encontrou. Em declarações à revista Exame o autor do videoclip, Miguel Milhões: “Nasci cego do olho esquerdo, a minha mãe era nova, tinha 19 anos, solteira, e eu era um candidato fixe para o aborto. Mas ela pensou diferente — mandaram-na fazer [refere-se à interrupção da gravidez], mas ela não fez, e aqui estou”. Daí a letra da música, pronunciada pelo feto e que percorre todo o vídeo: “Sou eco do impossível, sou um milagre sem medo do que aí vem, sou um guerreiro”.

O Espaço Público

E de facto é preciso ter todas estas características, sobretudo a coragem de um guerreiro, para continuar a tentar entrar no espaço púbico, pagando milhares em publicidade. Miguel Milhões é um reincidente nestas acções pró-vida e contra o aborto. E qual é o problema? Desde que não viole a lei, desde que não cometa actos ilícitos, deveria ser-lhe reconhecida legitimidade para ser ouvido. E a sua mensagem ser divulgada no espaço público. É uma personalidade pública, um empresário de sucesso, alguns dos códigos para ter acesso ao espaço público.

Não é o que acontece. O espaço público e a indústria cultural estão dominados por uma só opinião. Há sectarismo. Há uma tendência crescente e sistemática para dar mais a voz a “verdades fabricadas” e a construções sociais que fogem ao factual, ao objectivo. Há forças políticas e ideológicas, que conseguiram, com sucesso, apoderar-se deste espaço público. Todas as posições e formas de pensamento diferentes, principalmente aquelas que apelem ao uso da razão, estão a ser censuradas. A liberdade de expressão está a deixar de o ser, apesar de estar consagrada na Constituição.

E há uma estratégia de remeter, de confinar aos espaços privados tudo o que não seja o pensamento dominante – dominante apenas por ter mais visibilidade. Em declarações à SIC, Patricia Cardoso, dirigente da associação Escolha remete para canais privados (no sentido de serem da propriedade de Miguel Milhão) a divulgação do videoclip, invocando que “não estamos em campanha, não estamos a discutir a Lei do aborto que foi aprovada e está em vigor”.

Um assunto nunca está encerrado. As situações e as leis são realidades dinâmicas. Aliás houve recentemente uma carta aberta dirigida à Assembleia da Republica assinada por 200 personalidades e apoiada por partidos políticos a pedir a revisão da Lei do Aborto, concretamente alargar o prazo para a realização do mesmo por livre vontade da mulher até às 14 semanas.

Encerrar o debate de um assunto, só porque já existe uma lei sobre o mesmo, ou por não se estar em campanha, é colocar amarras ao pensamento é matar o debate. Poderá dizer-se, isso sim, que não existe um cabide noticioso para abordar o assunto. Mas estamos a falar de um videoclip, a ser exibido num espaço de publicidade, pago, que é uma peça estética, não noticiosa.

O que está aqui em causa e é assustador é o coarctar de um direito constitucional — a liberdade de expressão. É o reducionismo de uma sociedade plural a uma sociedade de voz única, totalitária, insípida, cinzenta, ainda que muitas vezes essa voz seja um assalto à ciência, à realidade, à verdade, à razão.

Um desfecho previsível

Espero enganar-me, mas o desfecho das queixas apresentadas por estas associações à ERC (entidade reguladora para a comunicação social) é bastante previsível. É fácil construir argumentação para condenar a exibição deste vídeo ao abrigo das invocadas leis da Televisão, do Código da Publicidade e ainda da Lei da Igualdade de Género. Basta continuar a dar seguimento à adulteração da realidade, a ignorar a matéria factual e a entrar na lógica do rendilhado de estereótipos e chavões.

Enquanto predominar o medo, a tomada do espaço público pelo irracional vai progredir, as vozes da diversidade vão continuar a ser silenciadas e a censura vai continuar a ganhar pontos e a saborear as vitórias.

observador

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