Contas claras antes dos carris da Alta Velocidade

Portugal prepara-se para investir milhares de milhões de euros na concretização de um dos mais ambiciosos projetos ferroviários da sua história recente: a linha de alta velocidade entre Lisboa e Porto. Num país onde frequentemente grandes obras públicas acabam por se transformar em projetos polémicos, ora por derrapagens financeiras, ora por insuficiências na sua utilização, torna-se urgente refletir cuidadosamente sobre os pressupostos fundamentais deste investimento. Entre esses pressupostos, destaca-se um fator crítico e tantas vezes esquecido: a transparência rigorosa e antecipada do modelo de cálculo da Tarifa de Utilização da Infraestrutura (TUI).
É evidente que uma infraestrutura desta natureza implica compromissos financeiros significativos, com retorno dilatado no tempo e riscos operacionais expressivos. No entanto, esses riscos podem e devem ser mitigados desde o primeiro momento, através de uma definição clara e rigorosa do que custará utilizar essa infraestrutura. Não se trata apenas de estabelecer um preço a cobrar aos operadores futuros, trata-se de assegurar ao contribuinte português que o seu dinheiro está a ser aplicado num projeto cuja sustentabilidade económica e financeira foi devidamente validada, analisada e explicada à sociedade.
Olhando para experiências internacionais semelhantes, como a espanhola ou a italiana, torna-se claro que a definição prévia da TUI não é um mero detalhe técnico, mas sim um pilar central de sustentabilidade económica e concorrencial da alta velocidade ferroviária.
Em Espanha, o investimento maciço em linhas AVE sem uma fixação prévia e transparente da tarifa de utilização levou a uma situação em que as receitas provenientes dos utilizadores cobrem menos de metade dos custos totais de infraestrutura, obrigando o Estado espanhol a subsidiar, ano após ano, o diferencial através do Orçamento do Estado. O resultado, amplamente documentado por estudos económicos independentes, mostra que a ausência de clareza no modelo tarifário compromete a eficiência económica, sobrecarrega os contribuintes e coloca em risco a própria aceitação social do projeto.
Em Itália, pelo contrário, o sucesso da liberalização e da entrada de novos operadores privados deveu-se precisamente à estabilidade e transparência antecipada das tarifas ferroviárias, o que proporcionou a confiança necessária para que empresas privadas investissem mais de dois mil milhões de euros na aquisição de material circulante, sem dependerem diretamente do erário público. O resultado foi claro: uma rede altamente utilizada, preços competitivos para os passageiros e um modelo sustentável que não penalizou indevidamente as contas públicas.
Para Portugal, estes exemplos devem funcionar como uma lição fundamental: é impensável pedir a um operador ferroviário que invista centenas de milhões de euros na compra de comboios de alta velocidade sem conhecer exatamente os custos futuros da utilização da infraestrutura ferroviária. Nenhum investidor privado tomará decisões estratégicas e compromissos financeiros significativos sem ter uma perspetiva clara e estável dos seus encargos operacionais. Apenas uma empresa pública fortemente alavancada pelo dinheiro dos contribuintes, com garantias públicas e riscos transferidos para os cofres públicos, poderia arriscar um investimento substancial em frota ferroviária sem conhecer antecipadamente o modelo da TUI. Isso representaria um retrocesso inaceitável face ao compromisso de Portugal com a eficiência, a concorrência justa e a responsabilidade orçamental.
Importa ainda sublinhar que o próprio Programa do Governo reconhece expressamente a importância de acelerar a abertura à concorrência nas linhas que permitam a operação simultânea de vários operadores. Para que esta orientação política se concretize de forma saudável e competitiva, é indispensável que os novos operadores conheçam com razoável antecedência o valor das taxas de utilização da infraestrutura e todas as demais condições de acesso. Só assim haverá concorrência real, investimentos privados sólidos e um serviço público ferroviário de alta velocidade que cumpra os mais elevados padrões europeus de eficiência e sustentabilidade.
Além disso, a transparência nos cálculos e modelos tarifários é também uma questão de responsabilidade democrática. Os contribuintes portugueses têm o direito fundamental de saber, desde o início, qual será o peso desta infraestrutura sobre as finanças públicas nos próximos 15, 20 ou 50 anos. Devem poder compreender claramente qual a parcela do custo que será suportada diretamente pelos utilizadores e qual a parcela que eventualmente será transferida para os impostos pagos por todos. Só assim será possível garantir um debate público informado e sério sobre as verdadeiras implicações deste investimento monumental.
Em síntese, é urgente que o Estado português proceda à definição, de forma transparente e imediata, do modelo de cálculo e do valor da TUI associada à futura linha de alta velocidade Lisboa-Porto. A definição clara dessa tarifa não é apenas uma questão técnica, é um gesto político que assegura previsibilidade aos operadores, sustentabilidade financeira à infraestrutura e clareza democrática aos cidadãos. Sem esse passo decisivo, o projeto de alta velocidade arrisca tornar-se mais uma obra pública polémica e financeiramente problemática, que comprometerá gerações futuras e enfraquecerá a confiança dos portugueses nas grandes decisões estratégicas do país.
Portugal merece, e precisa, de uma alta velocidade construída sobre carris sólidos, sim — mas sobretudo sobre contas claras e transparentes, capazes de assegurar que esta infraestrutura represente, efetivamente, um avanço no bem-estar coletivo e um investimento sustentável no nosso futuro comum.
observador