Crise na habitação: a culpa é do Keynesianismo

As manchetes que anunciam preços recorde na habitação ou manifestações para habitação acessível já não são surpresa. A cacofonia de sugestões e apontar de dedos geralmente recai na má gestão urbanística, ganância dos senhorios, falhas no licenciamento e/ou escassez de construção. Embora muitas propostas partam de boas intenções, nenhuma atinge a raiz do problema, que é estrutural e passa despercebida: o nosso sistema monetário.
Desde o século XX, os Estados operam num regime de moeda fiduciária, sustentado pela monetização de dívida e legitimado por uma doutrina económica conhecida como Keynesianismo. Inspirado pelas ideias do economista britânico John Keynes, o modelo defende a intervenção estatal como força estabilizadora, e, consequentemente, artificial, da economia.
Esta abordagem oferece legitimidade intelectual para que, através dos bancos centrais, o Estado expanda a base monetária. Com a promessa de estimular a economia, os governos endividam-se, emitindo dívida pública que é adquirida, direta ou indiretamente, pelos próprios bancos centrais, com base apenas na expectativa de retornos futuros.
Este processo, conhecido como monetização da dívida, só é possível porque o nosso sistema monetário atual permite – e até incentiva – que promessas de pagamento futuro sejam tratadas como dinheiro no presente. Isto cria uma fusão entre dívida e capital: o crédito torna-se base de liquidez e, por via disso, tanto credores como devedores conseguem registar, nos seus balanços, aumentos nominais de valor que não correspondem a riqueza real criada.
Torna-se então evidente que, longe de criar riqueza real, a emissão de dívida apenas gera novas pretensões sobre capital já existente. Por outras palavras, apenas aumenta a sensação de riqueza.
Esta expansão monetária só é possível porque o risco de insolvência do devedor é socializado – transferido para todos os utilizadores da moeda, ou seja, para o cidadão comum. Cada novo euro funciona como deitar água no vinho: o copo enche-se, mas o conteúdo perde força. A confiança na moeda é mantida não pela solidez do sistema, mas pela constante promessa de mais intervenção.
Ainda, os custos de emissão de dívida – as taxas de juro – são fixadas por entidades centrais como o Banco Central Europeu ou a Reserva Federal Americana, que operam fora das pressões do mercado livre. Os bancos comerciais, próximos destas fontes emissoras, obtêm liquidez a taxas preferenciais, lucrando, mais tarde, com a inflação do sistema que essas mesmas práticas ajudam a gerar.
Cada hipoteca é adicionada ao balanço dos bancos com meia dúzia de cliques e, se algo corre mal, o sistema entra em cena para os proteger: os famosos “resgates” ou “injeções de liquidez”.
Com acesso privilegiado a liquidez barata, os bancos canalizaram o crédito para o ativo mais resiliente, intuitivo e acessível à população: o imobiliário. Neste contexto, o crédito à habitação transformou-se num instrumento de criação monetária, incentivado por um sistema em que o risco é difuso e o lucro concentrado.
O ciclo é vicioso e sem incentivo real para mudança – os preços sobem, os particulares e investidores recorrem a mais crédito, e esse mesmo crédito continua a alimentar a subida dos preços.
Um olhar sobre os números oficiais reforça este argumento e expõe o abismo entre a retórica política e a realidade monetária. Entre 2014 e 2024, o agregado monetário M2 português – que permite estimar a moeda em circulação e a liquidez de uma economia – cresceu, em média, 7% ao ano, resultando num aumento acumulado de 96%. Ora, à taxa anual de inflação “desejável” de 2%, seriam necessários cerca de 34 anos para atingir a mesma expansão monetária. Em vez disso, chegámos lá numa década.
No entanto, durante o mesmo período, com exceção dos anos entre 2022 e 2024, o Banco de Portugal reportou o Índice de Preços no Consumidor consistentemente abaixo dos 2%. A alquimia matemática do IPC é hábil em diluir os verdadeiros impactos da expansão monetária, resultando num indicador que mascara a perda de poder de compra real e protege a narrativa oficial de estabilidade.
Este crescimento excessivo da massa monetária desvaloriza sistematicamente o dinheiro na carteira dos portugueses. Perante esta erosão do poder de compra, os cidadãos viram-se para ativos que possam preservar valor. E é aqui que entra a self-fulfilling prophecy do imobiliário: não por ganância, mas por lógica de sobrevivência. A habitação tornou-se um escudo contra a inflação, cujo preço médio do metro quadrado, segundo dados do Idealista, quase triplicou na mesma década em que a base monetária quase duplicou.
Este problema não se resolve com mais construção, pois a velocidade a que expandimos a base monetária supera qualquer capacidade de construção imobiliária. Controlos e restrições podem reduzir a oferta, aumentar preços noutros segmentos e funcionam como tampão temporário numa panela de pressão. Garantias estatais inflacionam ainda mais os valores. Tudo isto são respostas a sintomas, não à doença.
A verdadeira solução exige que se questione o próprio sistema monetário. A base monetária deve assentar num ativo verdadeiramente escasso, imune à inflação arbitrária e resistente à manipulação política. Um ativo cujo valor reside na confiança num protocolo previsível, transparente e imutável, e não na fé em instituições voláteis. Poupar num regime de expansão constante e de difícil auditoria é um absurdo matemático.
Em pleno século XXI, e tal como abordei neste artigo, a única opção viável para esse ativo é o Bitcoin. Ao permitir poupanças e acumulação fora do sistema inflacionário, o Bitcoin oferece uma escapatória monetária legítima e, ao fazê-lo, é o único ativo com real capacidade de aliviar a pressão sobre o imobiliário – que deixaria assim de ser o único refúgio de preservação de capital.
Portugal tem uma oportunidade de diversificação: reconhecer o Bitcoin como ativo estratégico, estudar formas de o incorporar nas reservas nacionais ou mesmo criar incentivos fiscais à sua adoção. Pode tornar-se o primeiro país europeu a colocar a questão essencial: não estaremos todos a pagar demasiado por um sistema que já não nos serve?
Ignorar a raiz do problema é apenas adiá-lo – para o próximo governo, para a próxima geração e, inevitavelmente, para os mais pobres. Uma casa deve ser para viver, não um cofre. Mas enquanto o dinheiro for desenhado para perder valor, a habitação acessível continuará a ser uma miragem no deserto inflacionário.
observador