Em 900 anos, que beleza perdura? Um regresso a Ponte de Lim

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Antonio Cícero, Guardar.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Konstantinos Kaváfis, Ítaca.
1. Um ponto de partida… e de regresso
Convocado a escrever pela celebração dos 900 anos de Portugal, e sem ser capaz de definir este fulgor baço de terra que é o nosso país, para pensar esta antiguidade fui remetido para o Norte, mais concretamente para a aldeia de Poiares, no concelho de Ponte de Lima, segundo muitos a mais antiga vila de Portugal. Novecentos anos corresponderão a cerca de 35 gerações humanas, isto é, milhões de seres muito distintos. O que pode ter de semelhante esta enormidade de aventuras pessoais?
Tendo em Poiares as raízes familiares, aí aprendi o sentido de ancestralidade. Passear na varanda dos saudosos avós, olhar os retratos de tantos antepassados, dispostos cronologicamente, deu-me a consciência de que somos apenas uma passagem pelo palco do mundo. Talvez por isso, nunca me perguntem quem sou, mas de quem sou. Esta pergunta remete-nos para a condição de herdeiros: pertencemos aos lugares e às gentes com quem crescemos e habitamos. Se resistimos e perduramos, se celebramos 900 anos, é porque algo permanece em tanta diferença. O que perdura para além das pedras em ruína e dos velhos retratos? Que beleza é essa que sobrevive e nos impele a regressar?
2. Um princípio feminino
Voltar a Ponte de Lima é recordar um foral de 1125, e nele um começo matricial. Para a narrativa comum, no início está uma mulher e um foral e não um ato de guerra ou um herói bélico. Num tempo em que se inaugura na Vila uma estátua de Afonso Henriques e uma comitiva de varões o homenageia, vale a pena não esquecer outra estátua, altaneira e firme: a Senhora Dona Teresa − mãe de reis e avó de impérios. Na concessão, por Dona Teresa, do foral ao Lugar de Ponte, ecoa um gesto feminino e logo outros vêm à memória: a Maria da Fonte, que, defendendo o que lhe parecia sagrado, se bateu por isso, e levando a mão à cintura, começou uma revolução; ou Antónia Ferreira, uma nortenha empreendedora e humanista, que bem percebeu que os laços de afeto superam o estrito legalismo em prol da dignidade humana.
Celebrar alguma coisa é guardar e cuidar disso que se celebra, escolher o que nos importa recordar. Quando celebramos, queremos lembrar quem permaneceu na invisibilidade − e tantos são os rostos femininos de quem não reza a história… Neste sentido, tem-se escrito sobre as mulheres da terra, que sustentaram vilas, de bata e lenço à cabeça, essa armadura que silenciosamente vence o quotidiano. E tantas que viram partir para a emigração e para a guerra os seus mais queridos (vale sempre a pena regressar às Novas Cartas Portuguesas).
Contemplar a estátua de Dona Teresa é olhar a mátria e cantar versos do hino A Portuguesa pouco celebrados: “Saudai o Sol que desponta/Sobre um ridente porvir; […]/Raios dessa aurora forte/São como beijos de mãe,/Que nos guardam, nos sustêm,/Contra as injúrias da sorte”. A força dos beijos pode romper o modelo de varões contra canhões. A força que perdura é sussurrante e, ao mesmo tempo, é firme como o rio. E parece possível repetir “beijo o solo teu jucundo”, ao invés de rasgá-lo pela cobiça do lítio ou outra. O filme de Manuela Serra, O Movimento das Coisas, podia ser repassado como hino ao espírito do lugar em diálogo com a indústria que o futuro sempre acrescenta.
3. Lethes ou Lima: o rio do (bom) esquecimento
Reza a lenda que os antigos pensaram que o rio Lima seria o rio Lethes − o rio do esquecimento, que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Chegado o exército romano às suas margens, os soldados recusaram-se a avançar por temerem o rio responsável pelo apagamento da memória. O centurião, um outro general sem medo, compreendendo o receio, tomou a dianteira e começou a chamá-los um por um, pelo seu nome. É curioso que o dilema entre manter a memória e a possibilidade do seu apagamento se resolva, neste caso, chamando cada um pelo seu nome. Estar ao cuidado da memória de alguém é uma força encorajadora, assim foi quando o general chamou cada soldado, revelando saber de cor os seus nomes.
Vivemos o tempo de desprezar o ato de decorar. Ignoramos que saber de cor é saber de coração, é guardar no vasto palácio da memória algo de que gostamos: uma oração, uma anedota, uma lenda, uma lembrança afetiva. E estes elementos parecem ser constitutivos do que somos. É curioso que dizemos muitas vezes que vamos oferecer uma lembrança a alguém, como sinónimo de presente. Mas será que se pode oferecer uma lembrança? Significa isso que certos objetos também são escolhidos para evocarem ou marcarem memórias? Se sim, os objetos, lugares e património também merecem cuidado e reflexão crítica.
Como na varanda dos avós, decidimos não esquecer os que passam. Por aqui vivem os fantasmas de diferentes séculos e convivem uns com os outros, como na Torre da Barbela de Ruben A., o escritor que pediu para ser enterrado no Minho. Como na torre da Barbela, vivemos entre ecos sussurrantes e numa grande festa onde passado, presente e futuro dançam juntos. O passado está feito, é facto e não se pode mudar, mas, como ensina o filósofo Paul Ricoeur, é possível fazer o luto e contar de outro modo (raconter autrement). O trabalho da memória é constante e particularmente relevante nos atos celebrativos. Não deixa de ser curioso que Ponte de Lima tome o seu nome de uma herança, isto é, de uma ponte sobre a fluidez do rio. Ponte de Lima é isso mesmo, uma ponte sobre o rio do esquecimento, ligando o passado ao presente, chamando cada um pelo seu nome para que ninguém seja esquecido.
4. A velhice das pedras
Voltar ao Minho é apreciar o contraste entre o seu verde e a velhice das pedras: aquele fino musgo − a patine − vem carcomer, lentamente, as pedras dispostas segundo a arquitetura de distintas eras. “As belezas da Europa são inextricavelmente inseparáveis da patine do tempo humanizado”, escreveu George Steiner em A ideia da Europa.
Embora o bucólico e o nostálgico possam dourar as margens do rio, devo resistir ao saudosismo. A beleza que perdura não pode, no entanto, ser concebida sem o bom e o justo, ou a delicadeza, o cuidado e o zelo. O recente caso polémico do Paço do Curutelo, património de interesse público, é disso um exemplo. A vetusta torre medieval, que dormitava só e altaneira, foi cercada por um condomínio hoteleiro, passando a ocupar a humilhante posição de uma espécie de reduzido chafariz central. A lavagem do primeiro piso mostrou bem a pressa de eliminar a patine de séculos, para lhe dar uma maquilhagem sem rugas. Ademais, desmataram-se hectares de bosque para plantar hectares de vinha, empurrando, provavelmente, raposas e ginetas para os galinheiros das aldeias vizinhas. A ruína do velho moinho, que alimentou gerações, resistiu, na fronteira do terreno do Paço, até ao desmate. Pode ser coincidência, mas as águas que escorreram pela terra desmatada e engrossaram o leito do rio subjugaram o velho moinho e este desmantelou-se. As velhas pedras acabariam por tombar. É como se, perdendo o cuidado e a delicadeza, até as pedras se cansassem de resistir.
Como dizem alguns, sem progresso viveríamos na caverna, mas sem memória do passado e sem zelo pela beleza desconheceríamos as pinturas dos feitos humanos que cobrem as mesmas cavernas que outrora habitámos. Penso que dialogar com o passado não significa aterrar o que passou em caixotes de betão e depois criar um nicho museológico. O passado não é uma fina gaveta de quinquilharia, mas uma interpelação e interpretação do que somos no espaço e no tempo.
E que pedras acompanham agora o velho Paço do Curutelo? O novo empreendimento turístico oferece à entrada réplicas de esculturas famosas. O Paço tinha uma entrada discreta, coberta de frondosas e seculares árvores. Diante do portão, está agora uma estátua d’O Pensador de Rodin. Que tremenda ironia, pois nada daquilo parece caber, com sentido, no pensamento. Ou terá sido aquela estátua escolhida por representar a reflexão do poeta Dante, devendo talvez integrar a Porta do Inferno? Não parece um bom augúrio para o local que se abre ao público.
A velha paisagem minhota dialoga agora com Rodin, Bernini ou Miguel Ângelo, numa desarticulação sofrível, numa espécie de Babel de ícones. Se o que nos ocupa é o que se pode chamar de Genius loci (espírito ou génio do lugar), este não pode ser confundido com o colecionar de génios universais num lugar.
A beleza que perdura não há de ser o império da mesmidade: tudo igual em todo o lado, a bem do conforto de quem viaja. Ulisses, que muito viajou (e na lenda deu nome aos lisboetas, olissiponenses), nunca foi cosmopolita. Viajou para muitos lugares sem nunca deixar de ser grego e de considerar tudo o resto bárbaro (Ulisses é o equivalente do turista que na China só come hambúrgueres e fica num hotel europeu, provavelmente com vista para a torre Eiffel). A viagem movida pelo espírito do lugar é cativada pela nossa pronúncia do Norte, pelos temperos, cheiros e paisagens únicas. A fealdade produzida, tal como a maldade, fere algo − fere uma vivência do espaço e um diálogo com o tempo.
Não defendo nem me refiro ao fascínio pelo autêntico, tantas vezes encenado, mas àquela franqueza que caracterizava a paisagem. A arte de bem receber é uma mistura de dever religioso (que por aqui se treina com o peregrino de Santiago), de exibição de carácter (do que melhor se tem para oferecer) e de fome de relação com o outro, com o que ele traz de novo e de diferente, com o que ele é de radicalmente estrangeiro, mantendo a tão nossa perpétua curiosidade que temos de saber sobre o que pensam os outros de Portugal.
5. A beleza que perdura
Novecentos anos implicam provarmos a nós mesmos que resistiremos uma vez mais. Se Portugal é o dos Castelos, perguntemos se gostaríamos que esta prática, aplicada ao Paço, fosse universal. Pobre comprazimento desinteressado de Kant! Temo que não escapemos aos interesses e não tenhamos alcançado um princípio do gosto. Há, ainda assim, uma sensatez aristocrática que lembra que nada se possui, apenas se administra provisoriamente. Em 900 anos, seremos apenas uma geração de entre trinta e tantas outras gerações. Como diz Hamlet, “o tempo está fora dos eixos”, e a cada geração devemos recolocá-lo numa ordem. Este trabalho não se compraz com facilitadores, pois como lembram os versos de Manuel Bandeira, “− A grande arte é como/Lavor de joalheiro./Ou bem de estatuário./Tudo quanto é belo,/Tudo quanto é vário,/Canta no martelo”. Não podemos perder a paciência da filigrana.
Diríamos que o Paço perdeu a sua linguagem poética, mas o correr dos dias não nos pode resignar. Salve-se o que se puder salvar. Volte-se ao diálogo com o local. É possível replantar bosques ou ajudar a cuidar das florestas circundantes. É possível cuidar dos moinhos, como lugares de memória e de vida comunitária. Se o turismo não for massificado, pode, em silêncio e a certa distância, olhar a natureza e as pedras.
Conto amiúde, com certo orgulho, a robusta defesa de um limiano que defendeu os interesses locais, pois contra o que está errado é sempre possível fazer mais. Habituei-me a imaginar esta Vila como a nossa Gália de irredutíveis. Talvez me tenha traído o excesso de imaginação e, diante do arbítrio do capital e do império da mesmidade, não existam já irredutíveis. Ou talvez nem tudo se perca, e as gentes − indiferentes a Rodin e a outras estrangeirices incompreensíveis, pois não dialogam com nada nem com ninguém − permaneçam num criativo modo de viver. O que mais aprecio em Lisboa é a boa estima que se tem pela gente do Norte, dizendo que “os nortenhos são francos e simpáticos”. Sempre me custou perceber se se pode ser, sempre, franco e simpático, ao mesmo tempo. Sou, assim, simpático ao investimento na região e à criação de emprego (e seria possível um projeto transformador do lugar e criar o mesmo emprego, fazendo bem feito) e sou franco ao rejeitar a falta de gosto do império da mesmidade (pois não conseguimos identificar a paisagem diferenciadora).
Como assevera o poema de Antonio Cícero que dá mote a este texto, guardar uma coisa é ser guardado por ela. Somos guardados por aquilo que guardamos, somos cuidados no ato de cuidar. Há reciprocidade entre quem cuida e o que é cuidado, uma atenção afetuosa entretece-nos. Por isso é tão importante pensarmos aquilo que celebramos, com uma franqueza que marca esta paisagem ao mesmo tempo desconfiada e acolhedora. O lugar é um começo e o regresso forma o espírito. Há beleza e justiça em resistir, pois a beleza que perdura é a da ecologia integral, dialogante e com pronúncia, uma beleza cuidadora. Não se deve negar uma ética e política da paisagem, da memória e do património. E se os lobos e as lobas do Norte deixaram de uivar, talvez ainda vão a tempo de reaprender. Que o façam. O país, a memória e a paisagem, merecem.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam assuas próprias posições.]
observador