Escrever e sarar

Talvez na raiz esteja também a vergonha do lugar de onde se vem. Talvez no avesso da aversão ao diferente haja, disfarçado de orgulho, um ressentimento em relação à própria origem. Pode ser assustador constatarmos que somos comuns. A hostilidade ao outro já sugere a consciência impotente da nossa banalidade.
Uma vez, uma amiga americana disse-me que, ao rever imagens da infância, as suas personagens, interiores e guarda-roupa, as caras nessas fotografias, tinha descoberto a vulgaridade da própria família. Foi o primeiro passo numa vida mais autónoma. Quase trinta anos depois, orgulhava-se da descoberta mas não do caminho solitário, vivido em sofrimento.
Penso hoje neste modo de autonomia, que poucos chegam a conhecer, a emancipação moral e emocional, a respeito dos pais e das famílias, e por extensão a emancipação das origens. Por necessária que seja a autonomia moral relativamente aos próximos, ela importa tanto quanto não ter vergonha dos nossos e de onde se veio. Não sei se a minha amiga de então terá chegado a encontrar a beleza na vulgaridade de que me falou. A aversão e o ódio ao outro são meros sucedâneos da aversão a si mesmo e aos seus.
Por estranho que possa parecer, ter curiosidade pela diferença, estar aberto à sua estranheza, parece depender da proporção em que estamos pacificados com o lugar de onde viemos. Apaziguarmo-nos com a nossa origem comum, com aquilo que nos é familiar: só assim se nos revela a comunidade nos outros.
Durante alguns anos, pedi conselhos a pessoas mais velhas e experientes. Dei-lhes a ler os primeiros esboços dos meus textos, recorri aos seus ensinamentos. Ia-me tornando autónoma em relação aos meus substituindo os laços com os próximos por laços imaginários com estranhos. Laços que intensificavam a aversão primordial ao que me era próximo, que me traziam em guerra com o que dentro de mim eram os meus.
Reformam-se hoje os meus professores e professoras, enquanto um a um os meus exemplos envelhecem, retiram-se e morrem. Que será quando não restar vivo nenhum dos homens e mulheres que me formaram, quando aqui estivermos apenas nós, sem ninguém a quem pedir conselhos? Quando nos couber a nós dá-los a outros? Como saberemos alguma vez aconselhar alguém? Que coisa delicada, aconselhar, guiar, conduzir alguém numa idade estranha e difícil como são os vinte e poucos, os trinta e poucos anos.
E penso que a certo ponto deixámos de contar com os conselhos dos estranhos amigos bem antes de os nossos professores terem envelhecido. Fomos dando os nossos passos exactamente como cegos a fazer um puzzle, mas com o entusiasmo de quem seguisse alegremente numa paisagem aliciante. Acabaram-se os professores, apenas então conseguimos começar a criar alguma coisa de nosso, quando acabaram os conselhos, abrindo espaço a que nos lembrássemos do lugar de onde tínhamos vindo, deixando de ter vergonha dele, transformando a ferida numa coisa bela que pudéssemos olhar com atenção e sem repugnância. E para isso, que foi, até hoje, o porque, o como e o de que forma da nossa força não contámos com conselhos nem com advertências nem com lições de mestre nenhum, mas apenas com a nossa intuição e com a delicadeza revelada do lugar de onde viemos aos nossos olhos.
observador