Evanilda de Sousa

Viajei para Lisboa faz vinte anos por causa do meu rim. Acabei ficando até hoje, tratamentos acabaram já nem sei quando. Primeiro vivemos em Entrecampos, na residencial. Depois o dinheiro da junta médica acabou, tivemos de erguer nossa casa aqui mesmo nesse morro. Casa? Casa é onde uma mulher perde a beleza, é o que eu penso. Tudo o que eu queria era que eu e os meus companheiros fôssemos tratados como gente. Me lembro do meu rosto nesses anos. Minha cara mesmo com doença era cara de mulher bonita. Vida nunca foi fácil, mas conseguia ver nessa altura os meus traços de mulher. Vida no morro roubou minhas feições. Aí mesmo dormem três crianças ao meu lado, meus sobrinhos, mais novo nasceu mesmo já aqui no morro. Chove em cima dos meninos, chove em cima de mãe dos meninos, chove em cima de tia dos meninos, Deus não quer saber. De Inverno, ficamos a ouvir o barulho do vento no zinco, ouvem-se ruídos vindos da rua, ficamos com medo, agarramo-nos uns aos outros nesse colchão bem apertados. Estou farta dessa história de tristeza, de virem aqui para ouvir história dos pobres para depois irem contar lá longe, onde o pobre não entra. Então me apetece falar na riqueza da nossa vida, da nossa alegria apesar da miséria, doutora, aqui onde eu estou a falar com você, afinal você é sempre a doutora e eu sou a pobre com quem a senhora veio falar. Mas há coisas aqui no morro que a doutora não entende, que não é porque os pobres têm graça ou encontram valor nas coisas de nada, é mesmo porque gostava de lhe explicar que a nossa terra esses anos todos é aqui este morro, esse monte de terra, e este bairro que nós é que erguemos, onde brincam nossos filhos e descansamos o corpo de noite. Aqui tudo sai para trabalhar quatro e meia, cinco da manhã, resto eu e alguns outros que estão doentes. Fico a guardar essa casa todo o dia. Vou até ali à horta onde cultivo batata, couve galega. A água chega aqui nessa mangueira que o mano Pinho arranjou. Depois é tratar do nosso sustento, todo o dia a vigiar a terra, custa mais é no Verão, é quando me doem mais as costas e a terra custa mais a regar. Sopa para a criançada, se houver, ninguém vai para a cama com fome. Passa a manhã, lavo roupa, estendo aqui no nosso estendal, fico a ver a roupa ao vento. Então vem à memória aquilo que lhe disse do meu rosto de mulher, que fui perdendo. Coisas que vêm à cabeça da gente quando ela está vazia. É, doutora, o pessoal aqui já sabe que quando chegam as doutoras a seguir vêm as máquinas destruir as nossas casas, já vieram muitas vezes, já deitaram muitas casas abaixo, por isso é que o pessoal não quer dar entrevista, eu é que sou velha, não me importo, fico aqui a falar de olho nesse seu computador e é como se estivesse a falar sozinha ao espelho. Todo o dia quando as moças vêm do trabalho e chegam no morro quase todas trabalham na limpeza de casas em Lisboa e arredores, chegam aqui despenteadas, transpiradas, cansadas, dinheiro que não chega o tempo todo a moer a cabeça, o morro é esse lugar onde chegar todo o dia, depois mais a criançada se junta no jogo da bola aqui no terreiro entre as nossas casas. Nossos meninos crescem aí mesmo no morro, bairro onde há criança é bairro vivo, me lembro quando as máquinas vieram a primeira vez, só repetir essa palavra, ‘máquinas’, me faz doer minha cabeça até hoje, fui perdendo a minha vez nessa vida, doutora, que me resta? Vim aqui falar da vida no morro, da nossa história nesse lugar, falar em máquinas é que me faz fraquejar, sabia?
De olhos fechados, assim como estou agora, consigo lembrar-me de coisas boas. Quando nasceu o António, mais novo da minha vizinha, são de Angola, bebé sempre me anima, o dia em que Portugal ganhou o Europeu, as passagens de ano aqui no morro, quando os miúdos lançam foguetes, festa maluca, e também me lembro de momentos tristes, quando aquele tal miúdo explodiu nas mãos uma granada perdida, mas que provam a nossa união, momentos como este, em que estou aqui a falar com a doutora, porque a nossa comissão concordou que eu falasse e me nomeou porta-voz, porque sou uma senhora idosa que conheço o bairro desde a fundação, nesses terrenos aí, sou pioneira. Não sei que coisa tem um nome, mas ponha aí o meu nome, doutora, pode ser que ajude, porque toda a gente aqui tem nome, ter nome é ter parentes e dar-se ao respeito, doutora, e o meu nome é Evanilda, Evanilda de Sousa.
observador