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Liberais e nacional-populistas: uma aliança frágil

Liberais e nacional-populistas: uma aliança frágil

Os desenvolvimentos recentes na administração norte-americana que conduziram à ruidosa cisão Trump-Musk, colocam um facto em evidência: as alianças entre liberais/libertários e nacional-populistas são inerentemente frágeis. O principal elo entre as duas correntes é de natureza negativa: uma aliança forjada pela rejeição comum do status quo. Mas esse elo não será por si só suficientemente forte para que, no médio-longo prazo, essa aliança possa resistir às diversas incompatibilidades ideológicas.

Primeiro, importa tentar compreender os motivos que levam ao crescimento da direita nacional-populista ou pós-liberal. O que não é, de todo, um exercício simples. Cada país e cada movimento tem as suas particularidades que merecem uma abordagem pormenorizada. Mas há uma questão transversal a todos eles: a crise do liberalismo. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos assistimos, ao longo dos últimos anos, a uma perversão do próprio conceito de liberalismo, que tem sido gradualmente capturado por agendas progressistas com aspirações hegemónicas que rejeitam e minam as bases liberal-clássicas e liberal-conservadoras. O liberalismo, entenda-se, sempre teve dimensões e variantes mais progressistas, mas o processo através do qual o progressismo se tornou a interpretação liberal hegemónica teve gravíssimas consequências para o próprio liberalismo. A acomodação, o oportunismo ou simplesmente erros do ponto de vista intelectual e ideológico foram os propulsores da falência liberal que, naturalmente, abriram caminho para uma reação nacional-populista a um Leviatã Global.

Leviatã este que se tornou cada vez mais forte muito por culpa de liberais e de membros do centro-direita (muito para além, portanto, dos partidos que se afirmam nominalmente “liberais”, ainda que estes sejam regra geral também parte do problema), que lograram descredibilizar a globalização, um conceito crucial para o desenvolvimento e para a prosperidade mundial, fazendo-a equivaler a um sinónimo de globalismo. Por isso, não deixa de ser importante sublinhar que globalização e globalismo não são, de todo, conceitos que devam ser utilizados indistintamente. Uma ordem internacional norteada pelos princípios do liberalismo clássico e do liberalismo-conservador rejeita e transcende a dicotomia globalismo/nacionalismo. Uma dicotomia que é falsa, uma vez que é possível, como a história já demonstrou, um mundo com uma pluralidade de entidades políticas soberanas e independentes que se relacionam voluntariamente entre si através do mecanismo do livre comércio, rejeitando um conceito de supranacionalidade hipertrofiada. Assim, aprofunda-se a interdependência económica e criam-se condições para o desenvolvimento e a prosperidade global, uma contenção mais eficaz a possíveis conflitos armados e a movimentos migratórios descontrolados do que quaisquer organizações burocráticas supranacionais – a solução favorita dos globalistas.

O que suscita uma outra questão inevitável: a imigração. Mais uma vez, o liberalismo-conservador rejeita a dicotomia nacionalismo/globalismo. A imigração é genericamente benéfica e estimula o desenvolvimento e a inovação, é um facto, mas com a condição imperativa de ser controlada e regulada em função das condições sociais e culturais do país de acolhimento. Caso contrário, a coesão social fica em xeque e surgem tensões múltiplas (culturais, securitárias, fiscais, nos serviços públicos) em Estados que já submetem os cidadãos a um sistema de impostos asfixiante. Foi também pelo fracasso de não reconhecer este problema evidente que a porta ficou escancarada aos nacionalismos, que souberam cavalgar a onda de insatisfação popular.

A resistência protagonizada pelos nacional-populistas a um sistema dominado pela agenda woke, mesmo que não necessariamente coerente ou bem orientada, é saudável e desejável. E é precisamente essa resistência que conduz os liberais (ou pelo menos os liberais não capturados pelo wokismo) e os nacional-populistas a uma aliança. A natureza liberal é contrária a esta omnipresença doutrinária nos setores fundamentais da sociedade que, no seu estágio final, conduz à censura nas universidades e nas redes sociais, ao controlo dos órgãos de comunicação social e leva grandes empresas a adotar agendas LGBT, DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) e ESG de forma acrítica, temendo alguma forma de punição direta ou indireta em caso de incumprimento. Como bem realçou Dalmacio Negro Pavón na sua obra La Tradición de la Libertad, “a reação liberal hoje deve ser, antes de mais, contra o pseudo-liberalismo estatista, cujo método é o da mentira e da propaganda” e contra a “neutralidade” que nada mais é que “uma obnubilação da consciência para a qual «vale tudo» porque tudo se equivale”. Ora é precisamente por via deste sentido de necessidade e urgência de oferecer uma resposta unida e firme a esta deriva censitária que os liberal-conservadores e os nacional-populistas estão do mesmo lado nesta guerra cultural.

No entanto, sendo certo que esta necessidade os une, é também verdade que outras abordagens e visões criam incompatibilidades que, mais cedo ou mais tarde, tenderão a levá-los à rutura. Os pontos de tensão são vários, mas pode encontrar-se um denominador comum a todos eles: o Estado. Mais precisamente, o papel que este deve desempenhar na ordem política. Enquanto para os nacional-populistas o Estado representa um veículo essencial para levar a cabo um programa político focado no interesse nacional, sendo, por isso, necessário fortalecê-lo para intervir em vários setores considerados fundamentais, para os liberais o Estado é um mecanismo que deve existir fundamentalmente para garantir que a liberdade individual não seja conculcada. O que não significa que os liberais não valorizem a ordem e a segurança. Pelo contrário. Sem estes dois princípios, uma ordem política liberal não pode existir. A diferença fundamental reside no facto de que, para os liberais, ordem e segurança são meios para atingir um fim político fundamental, i.e., a liberdade, enquanto para os nacionalistas podem ser um fim em si mesmo, ao qual a liberdade deve estar subordinada. Esta incompatibilidade foi explicada de forma resumida, mas irrepreensível, por Juan Ramón Rallo: “Para o liberalismo, o sujeito de soberania é o indivíduo, de modo que são os indivíduos que têm direitos inalienáveis perante qualquer coletivo que pretenda conculcá-los, e são os indivíduos que, além disso, constituem as comunidades políticas por meio da sua associação voluntária; para o nacionalismo, por sua vez, o sujeito de soberania é a nação, por isso, são as nações que têm direitos perante qualquer outra entidade que pretenda conculcá-los – incluindo os indivíduos”.

Um dos vetores onde esta tensão se revela particularmente nítida é na economia. Por exemplo, J. D. Vance, o vice-presidente dos EUA e um dos rostos principais do pós-liberalismo, vem demonstrando repetidamente que é adepto do intervencionismo estatal: do aumento do salário mínimo ao protecionismo, a agenda económica de Vance encontra-se alinhada de perto com a de muitos socialistas (ainda que nem Vance nem os socialistas o desejem reconhecer). Estamos perante um nacionalismo económico, doutrina com a qual, naturalmente, nenhum liberal clássico/conservador pode simpatizar. Neste aspeto, a presunção ou arrogância fatal (para invocar Hayek) dos socialistas progressistas não é fundamentalmente diferente da dos nacional-populistas, ainda que os seus objetivos possam ser nominalmente distintos. As manipulações impostas pelo Estado sobre a economia minam um dos princípios fundamentais do liberalismo, a ordem espontânea, que se tem revelado sistematicamente superior a uma ordem planificada do topo para a base.

A questão do protecionismo merece especial destaque. Primeiro, porque trata de uma abordagem ao livre comércio diametralmente oposta à defendida pelos liberais. Depois, porque foi a partir do “Dia da Libertação” – no qual Donald Trump lançou um extenso pacote de barreiras comerciais – que o distanciamento entre Musk e o Presidente começou a ganhar forma. Enquanto Trump proclamava que o país se tornaria de novo independente e que a prosperidade para o povo americano estava agora mais perto, Musk partilhava, no seu X, um vídeo icónico de Milton Friedman, onde explica que a mão invisível e o livre mercado são fundamentais até para a produção de um simples lápis.

Face à pujança dos movimentos nacional-populistas e à crescente popularidade das ideias pós-liberais, a sua adequada compreensão – sem demonizações simplistas, mas também sem adesões ingénuas – é fundamental. E, neste contexto, os liberais dos dias de hoje enfrentam um duplo desafio: reconhecer e enfrentar de frente a crise do liberalismo que se deixou capturar e instrumentalizar por correntes estatistas, progressistas e woke ao mesmo tempo que conseguem construir e articular uma crítica construtiva aos aspetos mais perigosos do pós-liberalismo, impedindo assim que este triunfe entre as ruínas liberais. É esta a grande missão liberal dos nossos tempos.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

observador

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