O liberalismo não se cola, constrói-se

Entrei na Iniciativa Liberal como quem se senta num banco de jardim, depois de andar anos e anos por ruas que não iam dar a lado nenhum. Não era uma decisão política, no sentido em que os jornais usam a palavra política, essa coisa de estratégias e percentagens, de coligações e de selfies sorridentes junto a cartazes mal impressos com slogans vazios. Era uma decisão moral. Não aguentava mais. Não aguentava mais o país onde tudo tem dono e ninguém tem responsabilidade. O país onde a sorte se herda e o azar se administra por decreto. O país onde os ministros falam em nome do povo, mas nunca o ouviram, onde os autarcas distribuem obras como quem distribui chouriços numa festa ou cabazes na sede, onde as leis se fazem para garantir que nada muda. Um país de remendos. Um país de desculpas. Um país onde todos se conhecem e ninguém responde por coisa nenhuma.
E então apareceu isto. A Iniciativa Liberal. Com aquele nome quase ofensivo para os ouvidos habituados a socialismos de várias marcas e conservadorismos amedrontados. Liberal. Como quem diz: não preciso que tomem conta de mim. Como quem diz: não quero que me empurrem para a frente nem que me puxem para trás. Como quem diz: quero o meu salário, o meu tempo, o meu espaço, o meu corpo, a minha vida, e que o Estado que se mantenha à distância, que não me atrapalhe. Pareceu-me razoável. Pareceu-me justo. Pareceu-me, sobretudo, novo.
Mas o novo, em Portugal, dura pouco. Mal começou a respirar, já havia gente a perguntar com quem é que íamos fazer acordos. Como se a política fosse um pátio de escola e o objectivo fosse arranjar um parceiro para jogar ao pião. Como se o liberalismo fosse compatível com uma aliança feita à pressa, com um partido que já nasceu cansado, que já nasceu de joelhos, que nunca acreditou na liberdade a sério. O PSD.
O PSD, meus amigos, vamos ser sérios, é o regime. Não a sua forma mais caricata, como o PS, que já nem tenta esconder a obsessão pelo controlo total. Não a sua forma grotesca, como o PCP, que ainda sonha com fábricas nacionalizadas e slogans dos anos 70. O PSD é o regime na sua versão mais insidiosa. Mais sorridente. Mais bem-posta. Mais disfarçada. O PSD é o regime de colarinho branco, de gravata azul discreta, de reunião ao almoço com vinho alentejano. É o regime que manda calar com simpatia, que sufoca com bons modos, que cede sempre e que, por isso mesmo, nunca muda nada. Se o PS é o polvo, o PSD é a lula.
E queriam que os liberais se colem a isso? Queriam que nos tornássemos parte deste mecanismo lento e viscoso, onde tudo passa, tudo se esquece, tudo se adia? Queriam que participássemos num Governo que nos vê como um acessório, como um capacho moderno onde se limpam os pés cheios de lama do passado?
Não há colagem estratégica que justifique isto. Não há argumento táctico que oculte a cedência. Porque não é só um erro de leitura política. É, mais profundamente, um erro de carácter. Um erro de identidade. É esquecer quem somos, para tentar parecer úteis num tabuleiro viciado. E eu não entrei para isto. Não sou liberal para isto. Não me expus, não me comprometi, não levei com insultos e incompreensões, não o fiz para acabar a segurar a pasta de um ministro do PSD enquanto ele distribui fundos europeus como quem atira alpista a pombos na praça.
A IL deve ser a interrupção. O gesto brusco. O “não” que ninguém quer ouvir, mas toda a gente precisa de escutar. Devia ser o dedo espetado no rosto do sistema, a dizer: não, não vamos pactuar, não vamos moderar, não vamos decorar a fachada do prédio velho com cortinas novas. Mas começamos a parecer, e custa-me escrever isto, uma espécie de adorno. Um bibelô moderno, que enfeita, mas não incomoda.
Os liberais que defenderam esta aproximação ao PSD dizem que é preciso “mudar por dentro”. Dizem que há que ser realista. Dizem que o país não se muda de fora do poder. Mas esquecem-se de que o poder não é neutro. O poder absorve. O poder engole. O poder não tolera diferenças reais, apenas variações na maquilhagem. E a IL, colada ao PSD, seria usada. Usada para dar legitimidade a um governo que não seria liberal, nunca será liberal, nem quer ser liberal. Será, na melhor das hipóteses, uma versão ligeiramente mais arrumada do que temos. Na pior, será o mesmo de sempre, mas com palavras mais polidas e comunicados mais bem redigidos.
E o que perdemos, se aceitarmos isto? Perdemos tudo. Perdemos a integridade. Perdemos a credibilidade. Perdemos a esperança que tínhamos dado a milhares de pessoas que acreditaram, por uma vez, que era possível viver num país onde o Estado não estivesse por todo o lado. Perdemos o fio à meada. O horizonte. O norte.
O liberalismo, a sério, é uma ideia de resistência. Uma ideia que incomoda. Que diz que o indivíduo é mais importante que a tribo, que a liberdade é mais valiosa do que a segurança, que o mérito tem de ser mais forte do que o favor. Não se governa com estas ideias num país onde o sistema vive exactamente do contrário. Governa-se contra isso. Não com coligações. Mas com rupturas.
Ser liberal em Portugal — e quando digo “ser”, não é no sentido que se mete no Linkedin ou no boletim de inscrição de um partido, mas no sentido de acordar todos os dias com a certeza de que se está sozinho contra o peso de um país que nunca quis crescer –, ser liberal em Portugal é um acto quase litúrgico. Uma espécie de fé privada, cravada nos ossos, que não se pode dizer muito alto porque assusta. Uma fé sem promessas. Uma fé sem indulgências. Uma fé que, em vez de nos aliviar, nos pesa, como se andássemos com o país às costas e toda a gente à nossa volta fizesse de conta que não há nada para mudar, só para gerir. Os liberais não querem gerir. Querem transformar. Querem arrebentar o molde. Os liberais, os verdadeiros, os de carne e fúria, querem que o Estado saia da nossa frente, dos nossos bolsos, da nossa cabeça.
Mas isso, por aqui, soa sempre a radicalismo. A maluquice. A perigo. Porque Portugal habituou-se a confundir estabilidade com estagnação. Habituou-se a chamar “moderação” à mediocridade. “Diálogo” ao conluio. “Governabilidade” à manutenção de todos os vícios, desde que passem despercebidos. E agora há quem, dentro da própria Iniciativa Liberal, ache que é preferível parecer razoável a ser coerente. Que é mais eficaz um liberal obediente e útil a um liberal incómodo e convicto. Um liberal com cinto e gravata e cara de secretário de Estado, a dizer coisas inteligentes, mas inofensivas, do que um liberal a sério, desses que fazem perguntas inconvenientes e dizem verdades que arriscam votos.
Mas não se pode ser liberal só quando dá jeito. Não se pode defender menos impostos e depois calar quando o orçamento do Estado aumenta como uma febre. Não se pode falar em liberdade e depois fechar os olhos a contratos públicos distribuídos à porta fechada, como se fossem envelopes com prendas de Natal. Não se pode defender a autonomia do cidadão e, ao mesmo tempo, aceitar fazer parte de um governo que continua a tratá-lo como um menor, um dependente, um cliente em espera. Isso não é “estratégia”. Isso é rendição. E pior: rendição com sorriso institucional.
Se a IL começar a ceder agora, não pára mais. Hoje é uma coligação regional. Amanhã é um acordo nacional. Depois é um orçamento. Depois é um ministério. Depois, num piscar de olhos, estamos a defender o IRS progressivo como “justiça fiscal” e os apoios às empresas como “instrumentos de desenvolvimento económico”. Um dia acordamos e estamos a justificar a TAP. Outro, a defender a função pública como “motor do Estado Social”. Quando dermos por isso, os liberais estarão sentados à mesa do poder, sim, mas com um guardanapo ao pescoço, à espera do que o centrão lhes quiser servir.
O caminho liberal nunca foi esse. Nunca foi sentar à mesa. Foi atirar a mesa abaixo. Foi dizer: não queremos o vosso menu, queremos cozinhar de novo. Com ingredientes de liberdade, de responsabilidade, de mérito, de escolha. Com a ideia, impensável para o regime, de que as pessoas são melhores quando não estão presas a um subsídio, a um favor, a uma autorização. Com a ideia de que a vida não tem de ser sempre um pedido, uma espera, um favor.
E claro, esse caminho é lento. Muito lento. Porque o país foi moldado, durante décadas, para odiar quem pensa assim. Porque a maioria das pessoas não quer saber de liberdade. Quer saber se o preço da gasolina desce, se a creche tem vaga, se o filho arranja emprego sem ter de sair do país. E não os posso culpar. Foram ensinados a isso. Viveram sempre assim. Ninguém lhes disse que havia outro modo. Que era possível confiar neles. Que não precisavam do Estado como ama seca e como polícia.
Por isso é que o caminho liberal é uma maratona. Porque implica criar cultura. Mudar mentalidades. Ensinar de novo. Convencer os cínicos. Desiludir os oportunistas. Aceitar que, durante muito tempo, vamos ser os chatos da sala. Os que dizem que o rei vai nu. Os que estragam a festa. Mas é esse o nosso lugar. E é essa a nossa força.
Se a IL quiser mesmo mudar Portugal, tem de fazer isso: dizer sempre o que pensa, mesmo quando ninguém quer ouvir. Ser coerente quando dá prejuízo. Ser livre quando o mais fácil era ser conveniente. Porque a liberdade, em política, não é só um valor. É um modo de estar. Uma recusa permanente. Um não repetido até que o país se habitue a ouvi-lo, e, com o tempo, comece a repeti-lo também.
É isso que significa, para mim, ser liberal. E é por isso que digo, com toda a tranquilidade e com toda a raiva que a tranquilidade pode conter, que a colagem ao PSD não é apenas um erro. É uma traição. Não aos adversários. Não aos princípios abstractos. Mas a nós próprios. Ao que viemos fazer. Ao que prometemos. E ao que, ainda hoje, apesar de tudo, nos distingue.
Porque quando se perde isso, perde-se tudo.
observador