O que é o Chega tem que tu não tens

O Chega construiu parte do seu capital político como um partido que rompe com as bolhas de poder. Ao contrário das cúpulas partidárias, que se movem entre gabinetes do Parlamento e os corredores da Lapa ou do Rato, o Chega afirma-se como a voz que escuta o Zé e a Maria, cidadãos comuns, muitas vezes invisíveis ao poder do centrão. A democracia, afinal, exige ouvir e considerar todos, inclusive aqueles que muitos julgam incultos ou incapazes. Trata-se de escutá-los e construir política com eles. Foi entre esses órfãos da democracia que o Chega encontrou terreno fértil, sobretudo a sul do Tejo, onde a semente das promessas caiu em solo árido e onde as comunidades foram deixadas ao abandono. Refugiada na abstenção, aí nasceu uma fé quase messiânica, um grito aprisionado no silêncio.
Num tempo em que se escondem as crenças religiosas por receio de sectarismo, o Chega assume com frontalidade a sua ligação aos valores cristãos. Não se cobre pelo lenço de Arafat, mas antes recorre à retórica bíblica como expressão identitária. O orgulho em defender as tradições judaico-cristãs traduz também o receio de que estas venham a ser apagadas pela modernidade líquida, pelo anticlericalismo e pelo globalismo relativista. Ao reintegrar o cristianismo no discurso político, o partido liga-se àqueles que veem na fé um alicerce da identidade nacional e cultural.
Esse gesto carrega também o lastro da irracionalidade e do carisma. O carisma, tal como aparece nas cartas de São Paulo, refere-se a dons espirituais. Não se trata de mérito, nem de esforço, nem sequer de vocação. É uma graça misteriosa, um talento inato que não se procura. O carisma é uma eleição. Ricardo Araújo Pereira definiu-o de forma curiosa: “não sei o que é, mas sei o que não é”.
André Ventura, goste-se ou não, é uma figura carismática. Os soundbites que profere são afiados como lâminas, inequívocos e difíceis de rebater. Não se refugia em jargões académicos nem se perde em discursos vagos ou espinhosos. Fala de forma crua, simples e convicta. Enquanto muitos permanecem presos aos formatos tradicionais de comunicação, o Chega ocupa o território das redes sociais. Nesse espaço, molda a narrativa a seu gosto, onde a mensagem circula sem filtros e com impacto viral.
O Chega verbaliza aquilo que muitos pensam, mas poucos se atrevem a dizer. Assuntos como imigração ou a agenda woke são abordados sem rodeios. Tal como a CMTV, que no início foi acusada de sensacionalismo, mas rapidamente conquistou audiências massivas por dizer aquilo que os outros evitavam, o Chega rompe tabus e atrai quem está cansado do politicamente correto. Aliás, muitos partidos foram a reboque do populismo, imitando o estilo nos cartazes e no discurso, mas a cópia é pior do que o original.
O Chega soube maximizar o descontentamento com o sistema judicial e com a crescente sensação de impunidade. Expõe a violência nos bairros e não evita falar em crimes de sangue. Apela aos instintos viscerais, à autoridade, e ao lado tétrico da natureza humana. Independentemente das críticas que se possam fazer à aplicação das suas propostas penais, o seu pathos ressoa junto de quem sente que o Estado perdeu o controlo das ruas e dos tribunais.
Por fim, o maior trunfo do Chega é precisamente aquilo que lhe falta: não carrega o peso de maiorias absolutas estagnadas, nem o passado de bancarrota, nem de austeridade. Não tem ministros envolvidos em escândalos, nem ex-primeiros ministros sob acusações de corrupção. Essa ausência de passado dá-lhe uma vantagem simbólica, a de quem pode apontar o dedo em riste, sem o jugo da culpa.
Por todas estas razões, os partidos tradicionais não se podem sentir traídos pelos eleitores, antes ter a humildade de reconhecer que foram eles próprios quem traíram a confiança de quem, um dia, lhes entregou o voto.
observador