Os três erros de Lídia Jorge

Parece que há dias, no Brasil, na abertura da Feira do Livro de São Paulo e durante uma palestra tripartida em que participaram igualmente Fernando Rosas e o cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, a escritora Lídia Jorge terá afirmado que “até Portugal quer voltar a ser grande, inclusive (voltar) a esse passado colonial”. Eu não conheço o contexto em que isto terá sido dito e não quero fazer considerações sobre tal afirmação. Pergunto-me, apenas, se as opiniões políticas e inclinações ideológicas da escritora não estarão a deformar de novo a sua visão sobre os factos, como aconteceu no passado 10 de Junho.
É interessante verificar que, nesse dia e nos que se lhe seguiram, muita gente de esquerda andou a derramar-se pelas redes sociais e pelos jornais em hossanas a Lídia Jorge. Nessas saudações e louvores sortidos essa gente de esquerda acentuou a justeza da sua mensagem, a qualidade literária do seu discurso, a dimensão humana e simbólica do que então disse, e desvalorizou os flagrantes e grosseiros erros históricos que apontei no meu anterior artigo. E desvalorizou-os por duas razões: em primeiro lugar porque, por norma, as pessoas politicamente motivadas — e não apenas as de esquerda — desconsideram ou desvalorizam erros e mentiras desde que eles sirvam um propósito que, a seus olhos, seja politicamente útil e justo; em segundo lugar porque aqueles erros têm, subjacentes, ideias com as quais a esquerda concorda e de que se sente próxima.
Os erros históricos que Lídia Jorge cometeu podiam ter sido enganos menores, que acontecem a todos nós, lapsos inócuos sem grande repercussão no cerne da mensagem transmitida e sem carga política e ideológica. Por outras palavras, erros relativamente inocentes e neutros. Porém, não foi esse o caso. Cada um dos três grandes erros históricos de Lídia Jorge fundamenta uma tese explícita ou implícita, e é essencial para fundamentá-la. Todas as informações erradas que transmitiu vêm ao encontro do que a escritora ou a esquerda pensam e desejam transmitir. Não terá sido de forma consciente que Lídia Jorge faltou à verdade, mas aqueles três erros dão muito jeito às pessoas de esquerda para fazer passar três teorias todas elas erradas, mas politicamente electrizadas. Ora, mais do que assinalar e corrigir os erros interessa combater a ideologia que lhes subjaz.
Vejamos, então, caso a caso.
1 A tese optimista da imigraçãoA escritora afirmou (erradamente) que, no século XVII, Portugal teria 10% de negros, imigrantes forçados, e que toda essa gente se integrou num todo harmónico. Essa afirmação, remete, por portas travessas e de forma implícita, para a actual questão da imigração e para as convicções que Lídia Jorge tem a esse respeito. Sabemos que convicções são essas porque a escritora as expôs num artigo que publicou no ano passado no jornal El País. E aí censurou os portugueses por não serem suficientemente generosos e acolhedores para os actuais imigrantes. Ao invés, os portugueses teriam até desenvolvido um “pensamento defensivo” e de grande desconfiança relativamente a eles. Segundo Lídia Jorge o povo de emigrantes de que fazemos parte “esqueceu o que sofreram os seus pais e avós. Perante um sikh de turbante amarelo, pensa que se trata de um carteirista, e uma portuguesa não entra num táxi conduzido por um jovem indiano, porque se difundiram notícias sobre violações que nunca aconteceram.”
E, portanto, para quem tem este tipo de visão sobre a actual onda de imigração e a atitude dos portugueses face a ela, a imagem de gente estranha que, vinda de África, chegou a Portugal e que teria supostamente constituído 10% da sua população sem que isso causasse problemas é muito útil à tese da aceitação de braços abertos desta actual imigração. Sucede, porém, que não há paralelismo entre uma situação e a outra. Segundo os dados conhecidos e as projecções credíveis há, neste momento, 1,6 milhões de imigrantes em Portugal. É um número enorme para o total da nossa população e, mais importante, um número que conheceu um crescimento brusco em escassos anos. Não foi isso que sucedeu com os escravos negros, que nunca terão sido mais do que 4 ou 5% da população e que foram entrando no país gota a gota, ao longo de décadas e séculos. Quando, em 1761, no tempo do marquês de Pombal, chegaram em ritmo considerado demasiado acelerado e prejudicial por virem para o país “ocupar os lugares dos moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade e se precipitam nos vícios que dela são naturais consequências”, a sua entrada foi pura e simplesmente proíbida.
2 A tese do pecado originalA segunda afirmação errada de Lídia Jorge foi a de que terão sido os portugueses a inaugurar “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Portugal foi, assim, uma vez mais, apresentado como o pecador primordial, o maior infractor de todos, o país que iniciou uma prática criminosa e que, depois, os outros povos ocidentais (ingleses, franceses, holandeses, etc.) imitaram, imitação que talvez não tivesse acontecido se o pecador inicial não tivesse aberto essa caixa de Pandora. Acentua-se, desse modo, a responsabilidade histórica dos portugueses. Sucede, porém, que a afirmação e a ideia subjacente são completamente falsas pois a caixa de Pandora estava escancarada há muito, muito tempo. Na minha anterior intervenção falei de um grande tráfico intercontinental de escravos africanos levado a cabo a partir do século VIII por mercadores de estados muçulmanos. Para se perceber a amplitude desse tráfico refira-se que já nessa época existiam escravos africanos em locais tão distantes como Java ou Cantão e como é óbvio não foi gente de Portugal, que ainda nem existia como país, que os levou para os confins da Ásia. Mas se quisermos recuar ainda mais no tempo e ir até ao Império Romano, então teremos de assinalar que o tráfico de escravos, maioritariamente brancos, entre a Europa, a África e a Ásia foi, segundo os cálculos mais minimalistas, de 100 milhões de pessoas. Como se compreende, então, que a esquerda e Lídia Jorge, apaguem (ou se recusem a tomar conhecimento de) toda essa informação que tem sido profusamente mostrada? Será porque a vontade, consciente ou inconsciente, assumida ou subterrânea, é a de acentuar a culpabilidade e a vergonha de Portugal e dos portugueses.
3 A tese do remorsoO terceiro grande erro de Lídia Jorge foi ter afirmado que “sempre houve quem repudiasse por completo a prática (da escravatura) e o teorizasse”, e que homens como Gomes Eanes de Zurara, por exemplo, eram contra aquela “degradação”. Mas na verdade não o eram, como mostrei no artigo anterior através de uma transcrição do próprio Zurara. É verdade que o cronista se impressionava na sua “humanal natureza” quando contemplava a angústia daqueles seres desterrados e escravizados. E o mesmo sucedia, aliás, com António Vieira, no século XVII, e com muitos, muitos outros. Mas não havia remorso nessas pessoas a maioria das quais estava firmemente convencida que a salvação das almas dos negros justificava o seu cativeiro. Houve alguns, raros, europeus — por exemplo, Fernando de Oliveira, um frade dominicano que viveu no século XVI — que contestaram aquela modalidade específica do tráfico humano, mas até ao século XVIII, e com excepção de Jean Bodin, no mundo ocidental toda a gente aceitava a escravatura (no sentido de escravidão), desde que ela fosse legítima, isto é, desde que resultasse do nascimento — os filhos de uma mulher escrava herdavam a condição da mãe —; da venda de si próprio ou dos seus em caso de extrema necessidade; da punição por crimes graves; e de uma guerra justa.
A tentativa de Lídia Jorge e de muitas pessoas de esquerda de encontrarem no distante passado, isto é, no passado anterior a 1750, muitas pessoas que se opunham à escravatura visa difundir a teoria de que desde sempre houve consciência de um enorme erro, de um gravíssimo pecado, e o consequente remorso. Mas, de facto, não houve, pela muito elementar razão de que nos séculos XV, XVI, XVII e boa parte do XVIII, a escravatura não era considerada um crime. Era uma prática triste e dolorosa, sim, mas era tolerada. Difundir a ideia contrária é um anacronismo woke, dos que tendem a olhar o passado segundo a bitola moral do presente e é, claro está, uma grosseira falsificação da verdade histórica. Todavia, é evidentemente útil a quem procura acentuar as razões para o arrependimento e, consequentemente, a reparação.
Será também isso que Lídia Jorge desejou transmitir aos seus concidadãos no passado dia 10 de Junho?
observador