Que jornalismo temos e que jornalismo queremos?

“Vendidos! São TODOS uns vendidos!” A voz tremia de exaltação e ressoava no interior do veículo. Transtornado, o ouvinte comentava as eleições de 18 de maio e a adjetivação tinha um alvo: “Esses jornalistas!”
Já passaram alguns dias desde as últimas legislativas em Portugal. Começa o tempo de pensar de cabeça mais fria, depois dos comentários de ódio mais variados terem invadido as redes sociais. TODOS. O que são TODOS? Todas as pessoas sem exclusão de ninguém?
Fui jornalista e tenho vários amigos jornalistas. Bons jornalistas. Não me considero privilegiada, por isso, tenho por certo que a vasta maioria dos profissionais que nos fazem chegar informação a cada momento são pessoas que trabalham bem, dão o seu melhor, muitas vezes com grandes dificuldades materiais e custos pessoais e familiares elevados. Também não conheço ninguém que tenha enriquecido por ser jornalista, o que torna ainda mais incompreensível o “vendidos” vociferado pelo ouvinte indignado.
Os jornalistas dos canais televisivos generalistas continuam a ser os rostos mais visíveis da profissão. Representam uma minoria dos mais de cinco mil profissionais do setor, mas é neles que a maioria das pessoas pensa quando pensa em “jornalistas”. Além desta distorção, existe uma clara confusão entre jornalistas, comentadores e apresentadores – e não ajuda o facto de haver jornalistas que também são comentadores.
Mas ao contrário do que muitos pensam quando veem no pequeno ecrã ou nas capas de revistas os pivots televisivos, bem vestidos e glamorosamente penteados e maquilhados, ser jornalista é uma profissão dura, desgastante e de enorme responsabilidade social. A 13 de março de 2024, Sofia Neves, jornalista do Público, traçava em título de notícia o retrato dos jornalistas portugueses: “Mal pagos, precários, esgotados e pressionados”. E, apesar disso, dignos de desprezo e ódio, do campo político à sociedade civil.
Jornalismo é desconforto porque nos oferece os aspetos da realidade que preferíamos ignorar: crimes, guerras, fome… Tem por missão principal, por mais utópica que seja, ser o cão de guarda da democracia, vigiar os poderes, sejam políticos, sociais, religiosos ou outros, e denunciar o que corre mal. Visa a construção de uma cidadania informada. Será que na era das redes sociais, do acesso a tudo à distância de um clique, e do apogeu da inteligência artificial, que nos ajuda mesmo quando não queremos, o jornalismo se tornou uma profissão obsoleta?
Não. O jornalismo de qualidade, que ouve várias fontes, que cruza e verifica informação, é um bem precioso que se está a tornar cada vez mais raro, fruto das célebres “condições do mercado” que encolhem as redações, cada vez mais alimentadas por mão de obra barata e por estagiários não remunerados. Ao mesmo tempo, é também o “mercado” que descarta os mais velhos (com salários supostamente altos) e, com eles, a memória e a capacidade de ensinar os mais novos. Desenganemo-nos: sem condições financeiras e profissionais não há jornalismo de qualidade nem livre de amarras.
As críticas à cobertura mediática das legislativas vão passar e outras polémicas virão. Vivemos sempre a correr atrás de alguma coisa. Mas seria prudente parar. O mensageiro também tem de se olhar ao espelho e encarar as rugas fundas que lhe talham o rosto. É hora de pensar que jornalismo temos e que jornalismo queremos quando pensamos na esfera (cada vez mais limitada, sim) que se mantém sob controle de cada pessoa que é jornalista. E essa reflexão não pode ser exterior. Têm de ser os jornalistas a fazê-la. É preciso, por isso, reforçar e descentralizar a autorregulação, que vive quase isolada na Comissão da Carteira Profissional do Jornalista. Sem medos, sem corporativismo, focados no interesse público.
Devemos repensar os media? Sim, mas acima de tudo, há que repensar os meios de comunicação social enquanto negócio e os jornalistas como meros assalariados. A informação é um bem comum e inestimável. Basta recuarmos até ao “apagão” para percebermos como nos sentimos perdidos quando nada sabemos sobre o que se passa para lá do que conseguimos ver, ouvir e sentir. Mas enquanto o jornalismo estiver refém da necessidade de gerar lucro económico, o lucro social, que é o seu fim mais nobre, estará sempre em causa.
observador