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Teresa Torga: a história da mulher atrás da canção

Teresa Torga: a história da mulher atrás da canção

Uma mulher decidiu despir-se e dançar no cruzamento das avenidas Miguel Bombarda e 5 de Outubro, em Lisboa. Eram quatro da tarde, corria o ano de 1975 e o país fervia na liberdade recém-conquistada.

“Ex-fadista nua em plena cidade”, titulava a crónica do jornalista Rogério Rodrigues (1947-2019), publicada a 7 de maio de 1975 no Diário de Lisboa. O gesto deu origem ao texto jornalístico, no dia seguinte e, mais tarde, a uma canção de José Afonso, Teresa Torga. Mas quem foi, afinal, a “mulher na democracia” que o artista da revolução também cantou que “não é biombo de sala“.

Dizia a crónica que a protagonista do episódio dançava nua nos intervalos de tratamento psiquiátrico no hospital Júlio Matos. O jornalista conta a história de uma mulher “de que não se conhecia o nome” e, que no dia anterior, às quatro da tarde, fazia “streap-tease integral”.

“Visivelmente surpreendidos, alguns espectadores da cena, invulgar em ruas de Lisboa, dirigiram-se para a mulher no intento de a proteger das vistas de quem passava e de quem parava, persuadi-la a vestir-se e abandonar o local”, relata. “No meio da confusão, surge o repórter António Capela, que começa a disparar. Os populares, indignados com o que consideram ‘uma baixeza moral’, investem sobre ele, insultam-no, empurram-no, agridem-no e só a intervenção do proprietário da drogaria vizinha impede que não lhe partam a máquina. É obrigado a entregar o rolo que é destruído no próprio local onde a acção decorre. Os protestos são muitos, o repórter fotográfico António Capela acha por bem desaparecer da cena”.

"Ex-fadista nua em plena cidade", titulava a crónica de Rogério Rodrigues no Diário de Lisboa, a 7 de maio de 1975

Continua: “um dos presentes liga para o 115 que chegaria apenas meia-hora depois. Entretanto a mulher tinha sido levada em braços (ainda desnuda) para o limiar de um prédio com porteira à porta. Já vestida, olhava apática para as pessoas que a rodeavam“. “Dizem-me que se chamava Maria Teresa. ‘Não sou Maria. Não sou Teresa. Tenho muitos nomes.’ Tinha os lábios encortiçados e recusava o copo de água que lhe ofereciam.””Quem se despiu na via pública, ontem, às 4 da tarde?”, interroga-se o jornalista, que procede a contar o percurso de vida, entretanto averiguado, de uma mulher de 41 anos, divorciada, atriz de revista, inicialmente corista, emigrante no Brasil, cantora de fado, no intervalo de tratamentos no Júlio de Matos. “Ela usa o nome de Teresa Torga porque há um escritor que se chama assim” e ela gostava muito de ler, explica uma vizinha. A última vez que o repórter a viu seguia ela num carro da polícia para a esquadra do Matadouro.

Um ano depois, surge a canção que imortaliza a história:

No centro da Avenida No cruzamento da rua Às quatro em ponto perdida Dançava uma mulher nua

A gente que via a cena Correu para junto dela No intuito de vesti-la Mas surge António Capela

Que aproveitando a barbuda Só pensa em fotografá-la Mulher na democracia Não é biombo de sala

Dizem que se chama Teresa Seu nome é Teresa Torga Muda o pick-up em Benfica Atura a malta da borga

Aluga quartos de casa Mas já foi primeira estrela Agora é modelo à força Que a diga António Capela

Teresa Torga Teresa Torga Vencida numa fornalha Não há bandeira sem luta Não há luta sem batalha” — “Teresa Torga”, do álbum “Com as minhas Tamanquinhas” (1976) —

José Afonso sempre disse nas entrevistas que se havia inspirado numa notícia de jornal para a cantiga, mas só em 2006 é que o texto foi identificado, através do livro Os loucos dias do PREC, de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira (Expresso/Público, 2006). A crónica confirmava o conteúdo da canção e dava mais pistas sobre esta mulher.

Maria Teresa Gomes Baptista nasceu a 25 de novembro de 1932 na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa, filha de José Baptista e Maria Felicidade Gomes.

São raras as fotografias conhecidas de Teresa Torga. Esta, divulgada na revista Plateia nos anos 1960, foi usada na promoção da peça de teatro "No Yogurt for the Dead", no início deste ano

Profissionalmente, revelou-se em 1952 pela mão de Ricardo Covões, empresário do Coliseu dos Recreios, na capital, que lhe deu entrada na revista Lisboa é Coisa Boa, apresentada naquela sala de espetáculos. “Foi uma estreia invulgar. Basta dizer que Teresa foi, com Rogério Paulo, a artista-revelação eleita, nesse mesmo ano, pelos críticos. Mas, em vez de gozar os louros da vitória, a atriz de espírito irrequieto logo procurou novos horizontes. Queria ir mais além. Desejava uma formação artística internacional. E partiu para o Brasil”, lê-se na imprensa da época.

São raros os retratos que lhe são conhecidos, mas um deles é desse tempo, da autoria do fotógrafo luso-brasileiro Fernando Lemos (1926-2019). A fotografia pertence ao espólio do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian e da Coleção Berardo. Consta também no livro Retratos de Quem? Fotografia Portugal anos 50, de Fernando Lemos, editado pelo Instituto Camões no ano 2000, e que compila fotografias do fotógrafo, artista plástico e designer gráfico, nascido em Portugal, mas radicado no Brasil desde 1953. Ao lado de retratos de Sophia de Mello Breyner Andresen, Maria Helena Vieira da Silva ou Mário Cesariny, ei-la: Tereza Torga (sic). Assim surge descrita: “Atriz e bailarina de teatro de revista, surge na peça Lisboa É Coisa Boa, levada à cena no Coliseu dos Recreios, contracenando num dueto musical, com o ator José Viana”.

"Teresa Corista" é o título da fotografia de Fernando Lemos, de 1949-52, que pertence à Coleção CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian

© Fernando Lemos

Nessa altura, Maria Teresa seria já casada com um indivíduo de nome David Ribeiro. Não sendo possível precisar quando foi o casamento nem quanto tempo durou, no documento de licença para a apresentação em espetáculos públicos, emitido a 4 de julho de 1951 pelo Secretariado Nacional da Informação Cultura Popular e Turismo, a artista apresenta-se com o nome de casada: Maria Teresa Gomes Batista Ribeiro. O nome artístico, Teresa Torga, também ainda ainda não o vestira de forma permanente. Na carteira profissional, pela qual pagou duzentos escudos, escolhe: Maria Teresa.

Tudo faria prever uma carreira em ascensão. “Os críticos diziam todos que ela era maravilhosa. Foi comparada até à Eunice Muñoz”, exalta hoje Filipe Lá Féria, conhecido produtor e encenador. Aos 80 anos, diz tê-la visto em palco numa “peça de Eugene O’neill, antes do 25 de abril”. “Era uma rebelde, uma mulher que abraçava a vida com todo o ímpeto”, aponta ao Observador. “Vi-a também muito na noite, na boémia. Os artistas reuniam-se no café do Monumental, no próprio Teatro Monumental, e noutro café ali perto, o Monte Carlo”, recorda sobre os espaços que eram frequentados até altas horas da noite por atores, sobretudo ligados ao teatro.

Mas Teresa Torga não se contentou com o panorama nacional e optou por rumar ao Brasil. “Uma vez chegada ao Rio de Janeiro, trabalhou ao lado de Maria Dela Costa, numa série de espetáculos televisionados. Fez a revista Tem Candango no Soçaite, com Aniiza Lione e Costinha, na sala do Rival”, lê-se na revista Plateia, antiga publicação semanal sobre espetáculos.

Teresa Torga (na fotografia, à esquerda) na edição de 9 de fevereiro de 1960 do jornal brasileiro Diario Carioca

Em 1960, o seu nome chegou oficialmente à imprensa brasileira. Compete ao título “Rainha das Vedetas”, concurso patrocinado pelo Diário Carioca para eleger a rainha entre as “mais famosas beldades integrantes dos elencos de teatros, ‘night-clubs’ e programas de TV”. Na edição de 9 de fevereiro daquele jornal surge de camisola listrada, braços erguidos, ao lado de duas adversárias no concurso.

Não tarda até que conquiste páginas em nome próprio. “Ora se é bonita, pois-pois. Esta beleza tôda de artista quer ficar no Brasil. Que fique”, lê-se na brasileira Revista do Rádio, ainda nesse mesmo ano, ao lado de duas fotografias da artista.

O artigo trata de a apresentar às terras de Vera Cruz. Fala como foi Dercy Gonçalves, ícone do teatro e cinema brasileiro, a convencer a jovem portuguesa a atravessar o Atlântico, depois de com ela ter contracenado no Teatro Maria Vitória, em Lisboa. Gonçalves “mostrou-se impressionada com uma jovem atriz chamada Maria Teresa, que era a revelação dos palcos lusos”.

“Derci sempre falava do Brasil à jovem atriz, afirmando que ela faria sucesso se seguisse as pegadas de Beatriz Costa. Maria Teresa, porém, achava cedo: queria ganhar mais nome em Portugal, interpretar o seu primeiro filme (“As Minas de São Francisco”) e aprimorar os seus recursos vocais. Em 1956, após ser proclamada a maior revelação do rádio português e contratada pelo programa “Voz de Portugal” e atuar em boates de Madrid e Barcelona, na que seria a sua primeira excursão ao estrangeiro, ela adotou o nome de Teresa Torga.”

O mesmo jornal explica que foi o maestro Guio de Morais, que, entusiasmado “com as qualidades da revelação portuguesa” e “prevendo-lhe o sucesso no Brasil”, lhe ofereceu um contrato de dois anos para gravar na Tiger. “Começou por fazer uma temporada em Manaus e Belém, atuando em rádio e boates”, escreve a Revista do Rádio. Em 1960, gravou o seu primeiro disco, no Rio de Janeiro, que merece umas linhas na secção de álbuns da revista: “Tereza Torga gravou em disco Tiger, acompanhada pelos guitarristas portugueses Ferreira e Rodrigues, o Fado das Caldas e Fado da Saudades. Trata-se de um disco de 78 rpm.”

O teatro parecia ter ficado fora de cena. No mesmo ano, “Vedete agora só quer cantar”, lê-se numa matéria na imprensa brasileira. “Teresa Torga, vedete do rádio, boate e disco prefere, no momento, dedicar-se unicamente às suas atividades de cantora. Tem, inclusive, patrocínio de uma firma de refrigerantes para aparecer num programa de televisão. Gosta de tudo no Brasil e só sairá daqui para ir cantar na Venezuela, de onde vem recebendo insistentes convites. Mas voltará brevemente, pois já considera o Brasil sua segunda pátria.” A 27 de junho de 1961, inscreve-se na Ordem dos Músicos no Brasil, com o número 4474. Teresa Torga apresentava-se como cantora e tinha como sede principal de atividade o Estado de Guanabara.

“É a bela portuguesa, com certeza, que veio para o Brasil e está fazendo sucesso, especialmente em São Paulo, no Lisboa Antiga. Teresa lançou disco na Tiger e, além de fazer TV, aparecerá com um LP, em breve, na fábrica de discos Chantecler”, lê-se na Revista do Rádio, em 1961.

Dessa gravação anunciada sai um disco com duas canções interpretadas por Teresa Torga: De Degrau em degrau, uma balada da autoria de Jerónimo Bragança e Nóbrega e Souza, e Rua Sem Luz, um fado de António José Lampreia e Nóbrega e Sousa, composto em 1959 originalmente para a voz de Maria de Fátima Bravo. O Centro Cultural de São Paulo confirma a existência desse disco, editado em 1962 com o selo Chantecler em 1962 — editora que foi vendida em 1972, e depois incorporada à Warner Music (WEA).

Disco em vinil que editou em 1962, no Brasil, sob a chancela Chantecler, com duas canções: "Rua Sem Luz" e "De Degrau em Degrau"

Ao Observador, o supervisor do acervo do Centro Cultural de São Paulo, que tem a guarda e a preservação desse material (o espólio da Discoteca Oneyda Alvarenga), partilha uma imagem do disco em vinil, onde se verifica que o lado A do disco tem a canção De Degrau em degrau e o lado B contém Rua Sem Luz. Ambas as cantigas são interpretadas por Tereza Torga (com esta grafia, com “z”) com a Orquestra Chantecler.

O Centro diz-se impedido pela legislação brasileira de fornecer os áudios pois não possuem os direitos autorais no caso da cantora e dos compositores. Mas Alan Romero, jornalista e pesquisador musical carioca radicado em Lisboa conseguiu uma cópia do registo fonográfico, depois se interessar pelo tema ao ler um blogue português chamado “Rua dos dias que voam”, que publicara uma entrevista de Teresa Torga na extinta revista Plateia. A portuguesa contava que morou no Rio de Janeiro de 1952 a 1963, tendo trabalhado com Maria Della Costa, Costinha e outros grandes nomes do teatro, nos palcos e na televisão. O que despertou a atenção do carioca de 73 anos foi a referência a um disco que ela teria gravado.

“Revirei a internet de ponta a ponta até que localizei essa raridade no acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga! Trata-se de uma edição do selo Chantecler, de 1962, talvez a única cópia existente, preservada graças à esta instituição”, escreveu num texto no site do Centro Cultural São Paulo, em 2011 (entretanto indisponível), em que se vangloriava por “Teresa Torga aos poucos” ir “saindo da bruma do esquecimento”.

As canções, que partilha com este jornal revelam a voz da fadista. “Rua sem luz e sem cor, pedras do pecado e do amor, leal e nua, rua sem lua, rua sem valor“, escuta-se.

"De Degrau em Degrau", de Jerónimo Bragança e Nóbrega e Souza

"Rua Sem Luz", de António José e Nóbrega e Sousa

“No Brasil teve um certo êxito, era uma mulher bonita e deu nas vistas. Poderia ter ficado lá, só que a doença da mãe fê-la regressar”, conta-nos agora Maria Jorgete Teixeira, 75 anos, que também se demorou em pesquisas sobre a misteriosa Teresa Torga quando em 2017 decidiu escrever Mulher à beira de uma largada de pombos, à volta das canções de José Afonso (Alfarroba), um livro com contos ficcionais a partir de canções do cantautor.

Teresa Torga voltou do Brasil em 1963, revela um artigo na revista Plateia. “Lisboa parecia-lhe agora diferente. Tudo se modificara, mesmo o ambiente artístico. O seu estado de espírito, em virtude da dor que sofrera pela perda daquele ente querido, mantinha-a afastada dos palcos. Finalmente, resolveu experiemtnar como canconetista, o Casino Estoril. O êxito foi indiscutível. Deu-lhe ânimo esta sua primeira oportunidade. Os empresários teatrais assediaram-na então. Ela recusou sistematicamente. Aceitou de novo um convite para durante 8 dias atuar ao lado de Torre Bruno, no Casino de Gibraltar. Depois, deslocou-se à Madeira para inaugurar a boite do Hotel santa Maria. E decide-se afinal, após ter durante o Verão do ano passado, atuado em diversos casinos da Metrópole, pelo elenco do Teatro Variedades.”

Em 1965 integra o elenco da revista A Ponte a Pé, com Humberto Madeira e Mariema, e produzida pelos empresários Vasco Morgado e Giuseppe Bastos.

No ano seguinte, em 1966, a revista Plateia dá conta do regresso efetivo aos palcos portugueses. “A revista A Ponte a Pé, entre outros motivos de sensação trouxe ao convívio do público um nome que há cerca de 10 anos se encontrava arredado dos palcos do nosso teatro ligeiro”, consta. “A crítica não ficou alheia ao seu regresso. Saudou-a efusivamente e comparou-a com aquela ‘menina-bonita’ que o Brasil reteve durante 7 anos, no seu seio. Teceu-lhe os maiores elogios, dizendo que ela havia voltado mais artista e mais segura de si”, continua o mesmo texto.

Mais tarde, a revista dedica-lhe uma página integral: Teresa Torga: a revelação de uma experiência. Conta como a artista teria tido dois filmes apalavrados — um deles era uma película com base no romance de Fernando Namora, As Minas de S. Francisco —, mas que nenhum se tinha concretizado, como tinha ido para o Brasil e o que a tinha feito voltar.

“Desiludida — já tinha feito revista e muito bem — Teresa Torga foi para o Brasil que a acolheu de braços abertos e soube aplaudir a atriz que ganhara o título de ‘Revelação de 1952’ — ao mesmo tempo que Rogério Paulo, ainda não existiam ‘Óscar’ da Imprensa, nem TV, nem nada. Repentinamente, e pela trágica morte de sua mãe, Teresa Torga voltou a Portugal e foi ficando”.

Tão cedo não voltaria a terras brasileiras, escrevia a revista, “apesar de ainda lá ter casa, situada em S. Paulo onde tem uma enorme quantidade de gatos e papagaios, pois Teresa Torga adora os animais que, segundo ela, são muito mais dóceis que as pessoas e muito menos ingratos”.

Nos últimos tempos, havia atuado no “ABC, no Casino Estoril, no Casino de Espinho e por muitos outros palcos, cantando e representando”, escreve Óscar Alves no artigo da Plateia. “Convidada por Giuseppe Bastos e Vasco Morgado para a revista A Fonte a pé regressou aos palcos do teatro musicado, embora não lhe tenham entregue trabalho digno de sua categoria. Mas é a própria atriz que nos diz que ‘é necessário ganhar a vida e então aceita-se tudo.’

“Fazia coisas que não se esperava. Era uma mulher completamente senhora de si. A dada altura não encontrou trabalho, fez as malas e foi para o Brasil. Poucas mulheres naquela altura faziam isso. Era uma mulher à frente do seu tempo”

Hélder Freire Costa, diretor do Maria Vitória

Hélder Freire Costa, o homem à frente do Maria Vitória, lembra-se de Teresa precisamente nessa altura, no final dos anos 60, quando era secretário na empresa da sociedade de Giuseppe Bastos e Vasco Morgado, sediada no Teatro Variedades, no Parque Mayer.

“Via-a só num espetáculo”, recorda ao Observador. “Não me lembro qual era, mas era uma companhia luso-brasileira e ela fazia parte do elenco. Na altura ela era já bastante conhecida”, nota. “Acho que ela não fez o trabalho até ao fim”, atira.

O dono do Maria Vitória evoca uma “uma belíssima atriz”, mas também uma “mulher cheia de vida”, de “personalidade muito vincada”. Que quereria isso dizer num Portugal cinzento em pleno Estado Novo? “Era amiga dos seus amigos, mas era uma pessoa polémica. Tinha ideias próprias. Não se ficava. Era uma mulher livre, uma mulher de luta. Naquele tempo as mulheres eram mais recatadas. Ela nunca foi assim, entendia que a mulher tinha tanto direito como o homem naquele tempo.”

É nos anos 60 que se encontram mais menções a Teresa Torga na imprensa nacional. Em 1966, na revista de teatro Plateia, era descrita como uma das "poucas figuras de relevo no 'music-hall' português"

“Fazia coisas que não se esperava. Era uma mulher completamente senhora de si. A dada altura não encontrou trabalho, fez as malas e foi para o Brasil. Poucas mulheres naquela altura faziam isso. Era uma mulher à frente do seu tempo”

Em 1969, após anos longe do plateau, ressurgiu na revista Plateia numa entrevista em que justifica o seu “afastamento dos palcos de revista”. “Mulher temperamental, Teresa Torga continua, como há anos atrás, a lutar pela conquista do lugar que julga merecer”, lê-se nas linhas que antecedem a entrevista na Plateia (8 de julho).

“Comecei como alguns dos artistas que agora ocupam lugares de evidência no nosso meio artístico e talvez — em relação a eles — eu tenha tido a desvantagem de falar demais por “ter o coração ao pé da boca”. “Mas não estou arrependida”, dizia. “Apesar de tudo não estou disposta a transigir ou abdicar das minhas ideias e conceitos”.

“Sei o que valho”, dizia a própria. “Por uma questão de temperamento estou habituada a enfrentar as dificuldades que se me deparam e a procurar contorná-las… Não tenho lugar no Teatro? Atuo em ‘boites’. O que me interessa, acima de tudo, é ganhar a vida como artista, independentemente do lugar onde atuo.” A fotografia que acompanha a matéria, surge de perna cruzada e copo na mão.

Em entrevista à revista Plateia (edição de 18 de julho de 1969), Teresa Torga falou do seu afastamento dos palcos de revista

O entrevistador, Carvalho Ramos, insistia: teriam sido os “problemas de bastidores” que teriam “obstado à estabilização como artista de revista”? Teresa Torga contestava: “Bem… Não tenho dúvidas em afirmar que, se de quando em quando, não houvesse a preocupação de misturar problemas de bastidores com problemas particulares, eu estaria, com certeza, mais vezes nos elencos de revistas. No entanto, admito honestamente que talvez o facto de ter estado algum tempo fora de Portugal me possa ter inibido de me manter nas agendas dos responsáveis”. “Estive na Rodésia algum tempo e as pessoas esqueceram-se de mim de tal forma que mesmo agora, que já cá estou há meses, ainda não se lembram.” Terá voltado a Portugal algures entre 1968 e 1969.

“Nota-se como ela era bonita”, diz Maria Jorgete Teixeira, mirando as fotografias que reuniu. “Tentei pesquisar tudo o que havia sobre ela, sobre aquela mulher que deu origem à canção”. “[Quando volta a Portugal] Ela ainda trabalha na revista, mas começam a notar-se-lhe alguns sintomas da doença, a depressão que ela teria. Começa a doença a evoluir… Acaba por ir desistindo das atuações e depois seria seguida no Júlio de Matos e dá-se aquele episódio no dia 6 de maio de 1975 e esse facto. Ela despe-se na rua, o fotógrafo, tenta tirar-lhe fotografias e as pessoas insurgem-se.”

Maria Jorgete Teixeira, 65 anos, inspirou-se em Teresa Torga para escrever um dos contos do livro "Mulher à beira de uma largada de pombos — À volta das canções de José Afonso" (Alfarroba, 2017)

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Na versão ficcionada do célebre episódio, Maria Jorgete escreve sobre “um incêndio, chama imensa, um fogo que vem do centro do corpo de uma mulher”. “A calçada ganha olhos de gula desenfreada, pupilas presas às coxas, mãos que se esticam às nádegas, garantas nos seis fartos e um rosto que se desfaz trazendo de dentro a noite de uma eterna solidão. Corre gente, grita gente, se uns a destapam com os olhos, outros tentam já cobri-la, que se vista, que se vista, mas é de lume esta alma que a carne tanto maltrata” escreve no conto Teresa Torga, que consta em Mulher à beira de uma largada de pombos, à volta das canções de José Afonso, (Alfarroba, 2017).

“Oportuno, o olho profissional de António Capela vê na cena inusitada um instante a fazer render, enquadra a cena, dispara flashes uns atrás dos outros. Enfurecem-se as pessoas, investem contra ele, querem destruir-lhe a máquina”, escreve. “O rolo é calcado pelos pés em fúria, onde já se viu?, aproveitar-se assim da doidice de uma mulher, coitada, não estava no seu tino perfeito”

O episódio não é pacífico quando se fala das intenções de António Capela (1927-1996), histórico fotojornalista português cuja atividade profissional mais incidiu na área do desporto. Também a investigadora austríaca Elfriede Engelmayer, que estudou a poesia de José Afonso em âmbito universitário, escreve sobre o facto de esta ser “solidariamente protegida pelo povo da objetiva sensacionalista do reporte fotográfico António Capela”, como cita Mário Correia, no livro As mulheres cantadas por José Afonso.

Mas se há dúvidas sobre a conduta do fotojornalista, não há sobre o que se seguiu ao incidente: um absoluto silêncio. “A partir daí ela desaparece”, diz mesmo Jorgete.

Na crónica de Rogério Rodrigues — jornalista que é pai do encenador Tiago Rodrigues e que morreu em 2019 — escreve que Teresa “por duas vezes já [esteve] internada no Júlio de Matos, regressará para mais uma cura de 15 dias, porque almoçou com uns amigos, eles sairam, sentiu-se só em casa e então veio para a rua a ver pessoas e a despir-se.” Em testemunhos recolhidos pelo Observador, esta não é a única vez que é aludida a possibilidade de Teresa Torga ter estado internada no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos. O Observador contactou a assessoria da Unidade Local de Saúde de São José, em Lisboa, que desde 2024 integra o Hospital Júlio de Matos, mas não foi possível confirmar se a paciente deu entrada na instituição.

Depois do episódio que a celebrou, escasseiam os registos. “Para sobreviver, alugava, três dos quartos da sua casa e o seu último emprego tinha sido numa discoteca em Benfica a pôr discos”, escreve Mário Correia, no livro As mulheres cantadas por José Afonso (2013, edições Sons da Terra), em que traça um breve retrato de Teresa Torga.

A última morada que lhe é conhecida é o quarto andar do número 132 da Avenida Elias Garcia, em Lisboa. Para quem mora naquela rua o nome hoje diz pouco, mas na Pastelaria Milú, em funcionamento há várias décadas, ainda há quem se recorde. “Lembro-me bem, morava aqui em baixo”, diz António Pereira, 60 anos, há pelo menos 35 a trabalhar naquela casa que chegou a ser uma fábrica de bolos. “Costumava tomar aqui o pequeno almoço. Dizia que era artista”, recorda o trabalhador, que ainda preza o sotaque minhoto. De poucas palavras, a meio de um serviço, solta ainda: “acho que chegou a viver com ela uma senhora num quarto que ela lá tinha”.

Perguntamos como era no trato. “Tinha de tudo”, ri-se. “Era simpática e era refilona quando a chateavam, mas era boa pessoa.” Do prédio onde morava, aponta-nos, só resta uma parte da fachada. “O prédio foi abaixo, aqui há uns 10 anos estavam lá uns estudantes e houve uma derrocada e caiu tudo”, explica. António Pereira não se lembra da última vez que a viu. “Teve um esgotamento ou qualquer coisa e foi para o hospital e nunca mais soube nada dela.”

Teresa Torga tornou-se associada da Casa do Artista em 2001. Tinha 68 anos e uma assinatura trémula, como revela a ficha de inscrição consultada pelo Observador. Profissão? Artista de variedades. Filhos ou parentes não lhe são conhecidos.

A assinatura de Maria Teresa Gomes Baptista na ficha de inscrição na Associação de Apoio aos Artistas (Casa do Artista), em 2001

“Fez aquela entrada triunfal, mas depois dispersou-se”, lamenta Filipe Lá Féria. “Acho que o final dela foi um bocado triste, mas já se me perdeu da memória”. Já Hélder Freire Costa recorda-se de que esta tinha “amigos no Coliseu”, mas que, a dada altura, lhe perdeu o rasto. Há uns anos alguém se lembrou: Que é feito da Teresa Torga?”, ouviu em conversa. “Pensei se ela ainda estaria viva, mas depois alguém me disse que tinha morrido.”

Teresa Torga morreu no dia 8 de abril de 2007, em Lisboa. Tinha 74 anos, como confirma o assento de óbito. Está sepultada no cemitério dos Olivais.

Quando, em 1976, José Afonso edita Com as minhas tamanquinhas, e com ele a canção Teresa Torga, o disco não é um sucesso. Não é um detalhe que tenha sido gravado após o 25 de Abril: sacrifica-se a lírica trabalhada dos discos anteriores por uma voz mais engajada, com a denúncia e intervenção a sobreporem-se à subtileza da crítica velada — a única possível em ditadura. O disco foi “catalogado pela imprensa de direita como o pior do ano”, “uma apreciação, quanto a mim, de carácter rigorosamente político”, acusava o cantor dois anos depois em entrevista ao Diário de Lisboa, a 25 de fevereiro de 1978. E dizia mais: “Na minha opinião as canções deste disco, Alípio de Freitas e Teresa Torga, são das melhores que já fiz.”

"É uma mulher que existiu, que dá origem a uma canção que se tornou um símbolo da emancipação feminina. Um dos versos é um slogan e essa mulher parece não ter importância nenhuma. A canção torna-se um símbolo, o nome Teresa Torga também, mas é curioso que ninguém conheça essa mulher"

Maria Jorgete Teixeira, autora e co-diretora da Associação José Afonso

José Afonso sempre assumiu que Teresa Torga foi “criada a partir de um fait-divers do Diário de Lisboa”, sendo “o relato da história de uma mulher que se despiu no Rossio”. Ao cantor interessava-lhe “a denúncia do sensacionalismo fotográfico”, diz na entrevista acima citada, mas “o mais interessante”, frisava, era “o povo ter coberto a mulher de roupa enquanto se virava contra o fotógrafo”. “Esta que tinha sido vedeta nos espetáculos do Vasco Morgado, mulher de quarenta e tal anos, atirada para o lixo, despia-se como um gesto que a sociedade mercantilista lhe pede. O episódio é rico, pois mostra que o 25 de Abril tinha também trazido prenúncios de mudança na mentalidade das pessoas. Num país machista como o nosso, o povo teve um gesto revolucionário…”

A canção, longe de ser uma das mais conhecidas do apelidado cantor da revolução, tornou-se um símbolo. Não é incomum ver um do seus versos em cartazes no desfile da Avenida da Liberdade, a cada 25 de abril: “mulher na democracia não é biombo de sala”.

Uma mulher enverga um cartaz com o verso da canção "Teresa Torga", durante o desfile na Avenida da Liberdade, a 25 de Abril de 2023

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

“É uma mulher que existiu, que dá origem a uma canção que se tornou um símbolo da emancipação feminina, um dos versos, é um slogan, e essa mulher parece não ter importância nenhuma”, acusa Maria Jorgete Texeira, sublinhando a ironia.

Há muito fascinado com a personagem de Teresa Torga, o jornalista brasileiro Alan Romero, que vive em Lisboa desde 1986, faz semelhante observação: “Me incomodava muito ser uma mulher tão desconhecida ao ponto de acharem que ela era ficcional”.

Enquanto o verso resiste, o corpo e a história real que lhe deram origem têm ficado à margem. É um silêncio que dura há 50 anos — e que só agora começa a ser desafiado. No início do ano, o seu rosto ganhou destaque ao ser usado como material promocional de uma peça de teatro, No Yogurt for The Dead, de Tiago Rodrigues, encenador filho do jornalista que revelou Teresa Torga ao mundo. Na peça, que retrata os últimos tempos de vida de Rogério Rodrigues, a atriz Beatriz Brás leu a crónica do Diário de Lisboa, enquanto Manuela Azevedo cantou Teresa Torga, numa versão para espetáculo de Hélder Gonçalves, tocada ao vivo pelo próprio.

“A canção torna-se um símbolo, o nome Teresa Torga também, mas é curioso que ninguém conheça essa mulher”, retorna Jorgete Teixeira. Uma “mulher insubmissa, independente, autónoma, que governa a sua vida, que é artista, só isso já infringia as regras da moralidade vigente. Nesse aspeto ela é esse símbolo e essa força”.

A fundadora do núcleo da Associação José Afonso no Barreiro e também membro da direção desta instituição, nota como “há investigadoras que já se debruçaram sobre a canção, mas são análises da canção do poema e não da vida dela”. 50 anos depois, diz, “o que ficou foi a canção e o que ela levantou”. “É como se a vida daquela mulher não importasse nada.”

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