Ucrânia: a guerra que não podemos perder

Vai quente o Verão na Europa. As praias enchem-se, os voos low cost andam sobrelotados e alguns dos decisores políticos do continente ainda descansam com a consciência tranquila da avestruz que pensa que, por não olhar para a guerra, ela deixará de existir. Mas a leste o incêndio está longe de ser dominado. A Ucrânia continua a resistir. E a Rússia continua a matar.
Passaram-se mais de três anos desde o início da invasão em larga escala. E ainda se encontra quem fale da guerra como se fosse uma “operação especial”, ou uma “crise”, como certos comentadores putinistas omnipresentes no espaço mediático.
Crise implica transitoriedade. O que está em curso na Ucrânia não é transitório. É estrutural. É existencial. E para todos os envolvidos, representa muito mais do que a posse de territórios em mapas. Representa o futuro das fronteiras morais e estratégicas da Europa. O futuro dos nossos filhos e netos.
A ofensiva russa de Verão, iniciada em maio de 2025 não trouxe surpresas, apenas confirmações. Confirma que a estratégia russa não tem músculos para conquistar de forma rápida, apenas para desgastar de forma brutal. Confirma que a vida humana, para Moscovo, continua a valer uns meros quadrados de lama. Quase 30 homens por um quilómetro quadrado. E confirma que, apesar de todos os seus fracassos estratégicos e militares, para Putin e a mafia do KGB que governa a Rússia, com mentalidade autoritária, nacionalista, e uma visão hierárquica e conspirativa do mundo, a esperança está, não nos mísseis, mas no esgotamento da vontade ocidental.
A vila de Kostiantynivka foi tomada. Um nome que quase ninguém saberá pronunciar, mas que serviu como troféu de propaganda. Um ganho táctico irrelevante, mas apresentado como se a guerra tivesse dado uma volta. Não deu. Nas frentes de Norte a Sul, de Kupiansk, Sumy, Novopavlivka, Pokrovsky, etc, as forças russas continuam a lançar ataques que se medem em cadáveres e se justificam com mapas estáticos. A táctica de atrito não visa ganhar. Visa matar. E moer.
Do lado ucraniano, a resposta tem sido corajosa, resiliente e, acima de tudo, lógica. A Ucrânia não caiu. E não cairá facilmente. Tem demonstrado uma capacidade de adaptação notável: estabilizou Kharkiv, impediu o reposicionamento de dezenas de milhares de soldados russos e mantém fortes linhas de defesa contra um inimigo superior nos números. O apoio ocidental, embora muitas vezes insuficiente e tardio, permitiu que a Ucrânia criasse não apenas resistência, mas também capacidades. Capacidade industrial, com novos acordos assinados em Roma. Capacidade tecnológica, com uma revolução nos drones e munições inteligentes. E, sobretudo, capacidade moral, justamente aquela que parece faltar em muitas capitais europeias.
Porque, como sempre, uma parte da Europa hesita. O continente que durante séculos definiu o que era civilização, hoje está mais no negócio dos comunicados, declarações de intenções e barganha egoísta de tostões, por parte de alguns. Como a orquestra do Titanic que continua preocupada com o timbre do fagote, enquanto o navio corre o risco de afundar.
Cinco acordos foram assinados na Conferência de Roma para apoiar a base industrial ucraniana. Uma boa notícia, mas incompleta. Porque o que está em causa não é apenas o fornecimento de blindados ou pólvora. É a consciência do que significa esta guerra e sobretudo do que significaria perdê-la.
Entretanto, a Rússia plagia Deuladeu Martins e continua a fingir vitalidade. É um bluff, mas muitos acreditam nele. Ou fingem acreditar. A economia adaptou-se, sim. Mas como um organismo doente se adapta à doença, não como alguém que recupera saúde. Produz 6 mil drones por mês, mas os componentes vêm da China e de outros oportunistas. Dispara 300 mil projéteis e fabrica 250 mil. O défice é coberto por parceiros como o Irão e a Coreia do Norte. O que diz muito sobre o tipo de “alianças” que sustentam o Kremlin. Está cada vez mais longe de ser um império. É um cliente crónico de regimes medievais, um G7 da degradação. Expulso da Síria, e impotente para ajudar os aiatolas, juntou-se agora aos alucinados talibãs do Afeganistão. E, contudo, andam por aí indivíduos delirantes que idolatram o coronel do KGB como o salvador da cristandade.
Mas o Ocidente, com todas as suas hesitações, continua a fornecer uma linha de vida à Ucrânia. Está a produzir e a entregar à Ucrânia mais projécteis de artilharia. Os sistemas de defesa aérea Patriot, SAMP/T e IRIS-T funcionam e vão sendo aperfeiçoados. Os mísseis russos, Kinzhal, Kalibr, Iskander, já não têm o impacto psicológico de outrora. São ameaças reais, mas contidas. Ainda assim, o Kremlin continua a investir em salvas sucessivas, numa tentativa clara de desgastar a moral não só ucraniana, mas também europeia e americana.
Porque é aí que ainda crê poder vencer: não no campo de batalha, mas na erosão da vontade. Acredita que o Ocidente desistirá primeiro. Que preferirá uma paz vergonhosa a uma vitória difícil. Que optará por uma solução “diplomática”, isto é, pela rendição da Ucrânia.
Mas há um problema. Um obstáculo inesperado no guião do Kremlin: os números. A Rússia perde 35 mil soldados por mês. A Ucrânia perde 10 mil. Ambos os números são trágicos. Mas insustentáveis a prazo. O modelo russo é autodestrutivo. Alimenta-se da ilusão de que a quantidade pode substituir a qualidade, e da certeza de que a vida humana é descartável. É um modelo que já falhou antes. E falhará de novo. Mas para isso, tem de ser enfrentado com clareza.
É aqui que entra Donald Trump.
Com o estilo habitual, directo, ruidoso, imprevisível, mas por vezes inegavelmente eficaz, acaba de anunciar que, dentro de 50 dias, aplicará sanções secundárias de 100% sobre qualquer país que continue a comprar produtos russos. Não há margem para ambiguidade. Não há comités preparatórios. Apenas um prazo. E uma consequência assustadora para os cínicos que continuam a comprar à Rússia.
Ignoro se a escolha dos 50 dias é aleatória. Para mim é um prazo longo demais. Mas é o que é, e com armas a sério a entrar na Ucrânia, pode ajudar Putin a perceber. Setembro é quando os governos voltam das férias e os mercados retomam a plena atenção. Quando a distração estival dá lugar a decisões políticas. Talvez Trump saiba disso. Ou não. Todavia sabe certamente que a verdadeira batalha não se trava em Kharkiv ou Toresk, mas em Pequim.
Porque é lá que vão buscar água as raízes do problema.
A economia chinesa, em 2025, está muito fragilizada. A bolha imobiliária explodiu. Várias empresas faliram. O desemprego jovem é tão alto que o regime deixou de publicar dados e veio depois reformular com novas métricas, ditadas pela propaganda. O consumo interno estagnou. O crescimento económico caiu para valores simbólicos. E, talvez mais importante do que tudo isso, a confiança desapareceu. A classe média poupa compulsivamente. As empresas evitam investir. E o Partido recorre ao que sempre conheceu: controlo, censura, propaganda e repressão.
É este o contexto em que Xi Jinping, ou talvez um Comité qualquer, já que o Sr Xi anda mais discreto, terá de decidir: manter o apoio logístico e tecnológico à Rússia e enfrentar sanções devastadoras de Trump, ou recuar e arriscar ver o seu parceiro de conveniência definhar sozinho. Xi é autocrata, mas o PCC não é irracional. A sua prioridade é manter-se no poder, e isso exige, no mínimo, estabilidade económica. A China não está ainda em posição de suportar uma guerra comercial total com os EUA. E Trump sabe disso.
Se Pequim recuar, o cerco à Rússia torna-se quase perfeito. E sem disparar um único tiro, o Ocidente, ou pelo menos uma parte dele, poderá isolar o Kremlin de forma mais eficaz do que qualquer frente de combate.
Mas isso exige uma coisa que nos tem faltado: vontade. Clareza. Coragem. Os quase 500 mil milhões de euros russos congelados continuam nos cofres europeus. A maior parte em Bruxelas. E continuam intocados, por medo. Medo de que usá-los pareça “escalada”. Medo de parecer injusto. Medo de parecer demasiado decidido. Medo de futuras desconfianças. Mas deixá-los onde estão não é neutralidade. É cumplicidade por omissão. E eventualmente suicídio.
Esta guerra não é apenas sobre mapas. É sobre valores. Sobre fronteiras físicas e morais. Sobre o direito de um país existir. Sobre o direito dos outros de não aceitarem a agressão como norma. Perder esta guerra não seria apenas perder a Ucrânia. Seria perder a nossa autoridade, a nossa integridade e, talvez, a nossa capacidade de resistir quando formos os próximos. Porque se a nomenklatura chequista vencer, haverá próximos. E centenas de milhares de ucranianos que estão agora nas trincheiras a tentar parar os russos, serão enviados na nossa direcção, gostem ou não gostem.
A verdade é que se tudo se mantiver como agora, 2026 não trará paz. Trará continuidade. Porque Kiev não pode deixar de resistir e Putin se meteu numa situação impossível da qual as únicas saídas são a fuga para a frente, ou cair de uma varanda. E o Ocidente? Continuarão alguns a fingir que não é com eles?
Se a resposta for “sim”, então talvez mereçam mesmo o declínio que tantos já lhe preveem. Aqui ao lado, a Espanha sanchista, faz acordos com Pequim e declara que lava as mãos.
observador