Violência no Desporto: A Falência do Estado

Em Portugal, o desporto, que deveria ser um espaço de elevação moral, superação pessoal e coesão social, está a tornar-se, cada vez mais, palco de episódios lamentáveis de violência. Seja nas bancadas, nos relvados, ou nos bastidores, o fenómeno repete-se com uma frequência assustadora e com uma impunidade revoltante. Mais grave ainda: o Estado, as federações e os clubes assistem a esta degradação com uma apatia cúmplice que envergonha qualquer sociedade que se pretenda civilizada.
O futebol é o espelho mais fiel da sociedade portuguesa — e não no melhor dos sentidos. No que toca à violência, ao discurso de ódio e à cultura de intimidação, o desporto-rei em Portugal tornou-se o palco perfeito para o falhanço institucional. Não falamos apenas de casos isolados ou de “excessos de emoção”, como tantas vezes se ouve nas lamentáveis tentativas de desculpabilização. Falamos de um problema estrutural, sustentado por inação política, omissão federativa e oportunismo clubístico.
Desde os escalões de formação até às competições profissionais, a violência deixou de ser um sintoma e passou a ser parte integrante do ecossistema futebolístico nacional. O Estado sabe. A Federação Portuguesa de Futebol sabe. Os clubes sabem. E, no entanto, todos continuam a agir como se nada fosse.
Formação: a fábrica de traumas
Nos campos de futebol espalhados por todo o país, todos os fins de semana, crianças e jovens disputam jogos que, na teoria, deveriam ser momentos de aprendizagem, de formação cívica e de crescimento emocional. Na prática, são muitas vezes campos de batalha verbais e físicos, onde o que menos importa é o jogo.
Pais a gritar insultos do banco, treinadores a incendiar ânimos com discursos de guerra, árbitros jovens — alguns com 14, 15 anos — a serem alvo de ameaças e perseguições. A pergunta que devemos fazer é simples: como é possível que este ambiente tóxico se tenha tornado normal?
A Lei n.º 39/2009, que estabelece o regime jurídico de combate à violência no desporto, parece não ter chegado às competições de formação. As forças de segurança estão ausentes, as associações distritais não têm capacidade de fiscalização, e os clubes agem com total impunidade. Os mecanismos legais existem, mas não são aplicados, e ninguém é responsabilizado.
A Federação Portuguesa de Futebol, através do processo de certificação de entidades formadoras, proclama a importância dos valores e da ética, mas na prática limita-se a avaliar documentação. Não há visitas reais aos jogos, não há auditorias comportamentais e não há consequências para os clubes reincidentes em comportamentos antidesportivos. A certificação tornou-se um selo decorativo, e não uma garantia de boas práticas.
O futebol de formação está a ser corrompido por uma cultura de agressividade, de pressão precoce e de banalização da violência. Estamos a formar atletas que associam o desporto à hostilidade e ao medo — e depois perguntamo-nos por que motivo o futebol sénior é o que é.
Futebol profissional: palco de violência legitimada
No topo da pirâmide, a situação é ainda mais grave. O futebol profissional português está infiltrado por elementos extremistas nos grupos organizados de adeptos que operam como verdadeiras estruturas paralelas de poder. São grupos muitas vezes não legalizados, que se movimentam fora do alcance da lei e que mantêm relações ambíguas ou mesmo cúmplices com os clubes que dizem apoiar.
O Decreto-Lei n.º 45/2015, que estabelece regras claras para a legalização e controlo destes grupos, é sistematicamente desrespeitado. Muitos clubes continuam a fornecer bilhetes, transporte, merchandising e até instalações a grupos que operam sem qualquer estatuto legal. Esta relação simbiótica é conhecida por todos os que trabalham no meio — dirigentes, jornalistas, polícias — e, no entanto, ninguém tem a coragem de agir.
Estes grupos organizados não são meros núcleos de apoio: são, muitas vezes, estruturas hierarquizadas com comportamentos intimidatórios, ligações a movimentos extremistas e práticas de coação sobre atletas, treinadores e até dirigentes. São uma ameaça real à integridade do desporto e à segurança pública. E, mais grave ainda, são muitas vezes instrumentalizados pelos próprios clubes para condicionar decisões internas, manipular assembleias gerais ou silenciar contestação.
O Estado, conhecedor desta realidade, continua refém da falta de vontade política. As forças de segurança estão limitadas, a fiscalização é escassa, e o discurso político continua ancorado em chavões vazios como “valores do desporto” e “coesão social”. A verdade é que os governantes têm medo do impacto eleitoral e mediático de enfrentar os clubes e os seus braços organizados.
A Federação Portuguesa de Futebol, que deveria liderar pelo exemplo e intervir com firmeza, tem-se remetido a um papel passivo, quase decorativo. Em vez de condicionar o licenciamento dos clubes à sua conduta institucional e ao respeito pela legislação, prefere promover campanhas institucionais sem qualquer consequência prática.
O futebol como campo de impunidade
Não há outra forma de dizer: o futebol português tornou-se um espaço de impunidade. Os clubes ignoram a lei, a federação fecha os olhos, o Estado finge legislar e a justiça chega tarde — quando chega. A violência não é um problema “dos adeptos” nem “das emoções”. É um problema político, estrutural e sistémico.
Enquanto isso, continuamos a perder árbitros, treinadores, atletas e famílias. Continuamos a transformar o futebol num produto tóxico, que afasta os que o amam e empodera os que o usam como instrumento de poder e intimidação. E o silêncio das instituições só agrava o problema.
O tempo da retórica acabou
Se o Estado português quiser realmente combater a violência no desporto, terá de enfrentar os clubes, de aplicar as leis com coragem e de exigir responsabilidade às federações. Terá de deixar de ver o futebol como uma zona de exceção onde tudo se tolera — porque a paixão não pode continuar a ser desculpa para a barbárie.
Se a Federação Portuguesa de Futebol quiser, de facto, proteger a integridade do jogo, terá de passar da retórica à ação. Terá de condicionar certificações, licenças e apoios à observância rigorosa da lei. Terá de liderar com exigência moral e não com conveniência institucional.
A solução exige coragem política e ação concertada: reforço da fiscalização, suspensão exemplar dos infratores, regulação do acesso ao treino e à direção de clubes, programas obrigatórios de educação ética, e monitorização real de grupos organizados com intenções desviantes. É também necessário que o Ministério da Administração Interna e os serviços de informação estejam atentos à infiltração ideológica no fenómeno desportivo — mesmo nas suas formas mais discretas e locais.
Porque se não defendermos agora o desporto em geral e o desporto de formação em particular, permitiremos que ele se torne numa fábrica de frustração, radicalização e desistência. E isso não é apenas um problema do desporto — é um problema de Portugal.
observador