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A Europa não precisa do Euro Digital

A Europa não precisa do Euro Digital

No passado dia 23 de junho, Christine Lagarde dirigiu-se ao Parlamento Europeu com um apelo à aceleração da legislação necessária para viabilizar o Euro Digital. A presidente do Banco Central Europeu tem vindo, ao longo dos últimos anos, a defender com insistência a criação de uma moeda digital do banco central (CBDC, na sigla inglesa). A questão que se levanta é: qual o interesse da União Europeia em avançar com a sua CBDC num mundo onde existe Bitcoin?

O próprio discurso de Lagarde apresentou algumas das críticas mais frágeis e inconscientes ao setor, abaixo do nível de rigor exigido a uma profissional com o seu currículo. A presidente do BCE apontou como riscos uma eventual correção de preço e a alegada inadequação destes ativos enquanto meio de troca fiável. Alvo particular do seu discurso foram também as stablecoins – geralmente indexadas ao dólar americano – que, segundo Lagarde, são emitidas por entidades privadas e carecem de supervisão global. Por fim, defende que, à semelhança das notas e moedas físicas, o Euro Digital estaria isento de riscos.

Torna-se imperativo desconstruir, ponto por ponto, os argumentos apresentados. Não apenas pelas suas fragilidades internas, mas pelas implicações que carregam.

A crítica de que os criptoativos são inadequados como meio de troca confiável seria expectável de um octogenário sem qualquer literacia financeira ou tecnológica. Não só os criptoativos são confiáveis para envio de dinheiro, como superam os sistemas tradicionais em eficiência, velocidade e custos de transação.

Segundo estimativas do Banco Mundial, em 2023, o volume de remessas de imigrantes para os seus países de origem atingiu os 656 mil milhões de dólares. Aplicando uma taxa conservadora de 5%, os custos destas transações ultrapassam os 30 mil milhões de dólares. A estes encargos soma-se ainda o tempo que decorre até a transação ser processada, que raramente é inferior a 5 dias úteis – assumindo que não ocorrem outros contratempos.

Falo por experiência própria: enquanto expatriado no Canadá, não tenciono recorrer a qualquer outro método de transferência de capital que não seja a rede Bitcoin. É verdade que existe o risco de enviar criptoativos para a carteira errada, mas este risco não difere, em essência, do de transferir fundos para uma conta bancária incorreta. Na realidade, o utilizador tem até um grau de controlo superior sobre uma transação em Bitcoin, com maior visibilidade e autonomia no processo.

Quanto ao risco de correção de preço, convém lembrar que este não é exclusivo dos criptoativos. Curiosamente, correções de preço (leia-se, recessões) são consequência do sistema financeiro de moeda fiduciária que Lagarde defende tão vigorosamente. Um sistema que trata crédito como se fosse capital, ao monetizar dívida de forma sistemática e viciosa. Convém lembrar que é precisamente sob a liderança de Lagarde que o BCE aumentou, desde 2019, em 38% a massa monetária M2 – um agregado que permite estimar a moeda em circulação e a liquidez de uma economia.

Esta lógica de emissão e monetização de dívida manifesta-se de forma particularmente evidente no setor imobiliário, em grande parte devido à proximidade estrutural dos bancos em relação à fonte emissora de nova moeda. Estes intermediários financeiros beneficiam de um acesso privilegiado à liquidez recém-criada – antes que esta perca valor no conjunto da economia – o que lhes permite posicionar-se vantajosamente face aos restantes agentes económicos. Assim, os detentores de capital são naturalmente encaminhados a procurar refúgio no investimento imobiliário na tentativa de preservar o valor dos seus rendimentos.

Quando confrontada com o aumento abrupto da base monetária e com eventuais soluções para mitigar os seus efeitos, Lagarde limitou-se a declarar “It will come” – em tradução livre, “Há-de se resolver”. Não merecerá esta inevitável correção, potencialmente devastadora para milhões de cidadãos, o mesmo grau de preocupação que ela reserva aos criptoativos?

No que diz respeito às stablecoins, estas oferecem várias vantagens face ao Euro Digital, não obstante de alguns desafios de maturidade. Por serem emitidas de forma privada, as stablecoins são de adoção opcional, ao contrário de um eventual Euro Digital. Ainda, estas entidades emissoras têm um incentivo direto para se submeterem a auditorias independentes, sob pena de perderem a confiança dos seus clientes. Já no caso do BCE, essa responsabilização é mais difusa e, por vezes, praticamente inexistente.

A stablecoin mais utilizada, Tether, mantém a sua paridade com o dólar sobretudo através da detenção de Títulos do Tesouro Americano. Esta estrutura de colateralização introduz uma camada adicional de segurança: o próprio governo americano tem interesse em garantir a estabilidade de um ativo associado ao dólar utilizado por milhões. Em contraste, o BCE não revela a quantidade que detém destes mesmos títulos – e, neste caso, esta ausência de supervisão e transparência já não parece inquietar Lagarde.

Por fim, a francesa afirma que, tal como notas e moedas físicas, o Euro Digital estaria isento de riscos. No entanto, basta olhar para o aumento de 38% do agregado M2 desde 2019 para perceber o contrário: em apenas seis anos, Lagarde expandiu a base monetária a um ritmo que, à taxa de inflação “desejável” de 2% ao ano, levaria mais de dezasseis anos a atingir. Esta inflação acelerada representa, em si mesma, um risco sistémico para as famílias – um risco que não desaparecia com o Euro Digital. Pelo contrário, poderá ser amplificado, dada a natureza programável e centralizada desta CBDC.

A União Europeia não precisa de um Euro Digital. O que realmente precisa, e urgentemente, é de uma estratégia clara e ambiciosa de Bitcoin. Por comparação, os Estados Unidos e a China detêm cerca de 200 mil Bitcoins cada, indicando que esta será mais uma área onde a Europa poderá ficar para trás.

Ironicamente, a União Europeia poderia aliar as suas ambições ecológicas à mineração de Bitcoin. Uma das críticas recorrentes às energias renováveis é a ocasional produção excedente face às necessidades energéticas. Nestes casos, é frequente reduzir intencionalmente a geração de energia, resultando num desperdício técnico e económico. Estima-se que, só em 2023, mais de 12 TWh de energia de origem renovável tenham sido deliberadamente desperdiçados, com um impacto económico superior a 4 mil milhões de euros. Essa mesma energia poderia ter sido canalizada para minerar Bitcoin de forma sustentável, convertendo desperdício em valor.

No caso de Portugal, há condições particularmente favoráveis que o novo governo deveria capitalizar para posicionar o país como pioneiro na Europa Ocidental. Para além da atual isenção fiscal sobre mais-valias obtidas com criptoativos detidos por mais de um ano, o país dispõe de um ecossistema tecnológico em crescimento, com talento nacional altamente qualificado e custos operacionais significativamente mais baixos do que os praticados na maioria dos restantes países europeus.

A entrada em função de um novo governo representa uma janela de oportunidade política para dar um passo estratégico: a criação de uma task force nacional dedicada aos criptoativos, reunindo representantes do setor público, privado e da academia. Como primeira missão, esta equipa deveria apresentar, até ao final do ano, um plano com recomendações legislativas, fiscais e energéticas. Este plano poderia ser acompanhado por um projeto piloto que aproveitasse excedentes de energias renováveis para mineração de Bitcoin. A médio prazo, o objetivo final seria a constituição de uma reserva estratégica nacional de ativos digitais – com destaque para Bitcoin – como instrumento de diversificação das reservas financeiras do Estado e de proteção face a riscos inflacionários globais.

O argumento de que o setor ainda é imaturo ou propenso a abusos não pode servir de pretexto para a inação. Como qualquer tecnologia emergente, os riscos existem, mas são geríveis com regulamentação inteligente, literacia financeira e tecnológica e através da colaboração ativa entre os diferentes agentes económicos.

Ignorar esta realidade será, inevitavelmente, penalizador – tanto para a economia europeia como para a portuguesa. Nas palavras da própria presidente do BCE: “It will come”.

observador

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