A revolta dos trombudos

O processo dos Anjos contra Joana Marques é ridículo. Tão absolutamente ridículo que podia não ter importância. Mas é também uma ameaça. E, como ameaça, merece ser respondida com clareza.
A primeira coisa que me surpreendeu foi a queixa ter sido admitida e ser levada a julgamento. Com os elementos vindos a público, é claro que não tem esse merecimento. É um processo que tresanda a oportunismo. Serve uma esperteza saloia para tentar enriquecer à custa de outros. Nas últimas décadas, é das tentativas mais violentas de censura que já vi, porque busca vingança e intimidação. É velha técnica dos advogados (também o sou) evitar o processo-crime por difamação ou outro modo de ofensa da honra ou do bom nome, enveredando por processos cíveis de indemnização para apresentar pedidos chorudos. O que é melhor? Condenação a seis meses de prisão (com pena suspensa) ou a milhões de indemnização? As advogadas fizeram brilhar os olhos dos Anjos, e oferecendo-lhes uma ovelha sacrificial: Joana Marques pagaria por todos os que despejaram nas redes sociais a fúria ou a troça pelo desconchavo musical e desafinação. Deste modo, só há uma justificação para este julgamento: o tribunal contribuir, de forma lapidar, para fixar jurisprudência que seja aceite e respeitada, protegendo as liberdades fundamentais e o Estado de direito. É uma esperança.
Eu não conhecia os Anjos. Quando ouvia nomeá-los no miolo deste caso, confundia-os com um outro grupo. Só recentemente, ao seguir o noticiário que se intensificou, vi que estava enganado. Senti-me confortado: não acreditava que o outro grupo, que admiro, fosse capaz disto. Estava certo: não eram, de facto, capazes de uma safadeza destas.
Também não conheço a Joana Marques. Sei quem é, mas não a conheço. Acompanho o êxito que tem tido. Admiro-lhe a alegria, a energia e o sentido de humor. Vê-se que é uma pessoa bem resolvida consigo própria. Mas, falta minha, não consigo seguir muitas coisas que gostaria, como os seus programas. Irradia graça e boa disposição. Apesar do que lhe apontam, nem no teatro seria capaz de fazer de bruxa. Se fizesse, desataríamos todos a rir, antes de dizer uma só palavra.
Não conhecia, enfim, os factos da acusação, que justificassem o pedido terrorista contra Joana Marques, e já não me lembrava em pormenor do que tinha acontecido, quando o caso começou. Tive de ler as notícias que foram saindo e rever pela internet os registos do passado que se passou. Fui recuperar vídeos dos factos. Aí experimentei a censura já a instalar-se: vários vídeos que tinham sido colocados na rede X com críticas à actuação dos Anjos foram, entretanto, apagados, com o julgamento a decorrer. À cautela descarreguei alguns. Cheguei a ver uns que, depois, desaparececeram. A indicação do operador X é esta: This media has been disabled in response to a report by the copyright owner – “este media foi desactivado em resposta a um relatório do titular de direitos”. A realidade é óbvia e mostra o seu rosto. Vamos, então, ao assunto.
Em Abril de 2022, em Portimão, em dia de MotoGP, a mais importante competição mundial de motociclismo, os Anjos foram contratados para interpretar o hino nacional português. Cantam e… desafinam. Pouca sorte. Desafinam em grande estilo. Pode acontecer a qualquer um. A mim, acontece-me sempre. A eles, foi daquela vez. O MotoGP foi transmitido em directo e… a desafinação dos Anjos também.
Foi coisa tão notória – e dolorosa… – que espontâneos rapidamente puseram a circular nas redes sociais a gravação dessa actuação, em bruto, tal como transmitida em directo. A circulação indignada era, como de costume, acompanhada de comentários trocistas ou mais severos. Alguns houve, a pedir a aplicação aos Anjos, por ironia ou a sério, do artigo 332.º do Código Penal por ultraje de símbolos nacionais. E os internautas mais atentos detectaram ainda – e apontaram a dedo – que os Anjos não só desafinaram o hino, como erraram a letra: em “egrégios avós”, cantaram “igrejos”, isto é, como é sabido, os maridos das igrejas; e, logo a seguir, trocaram o “que hão de” por “que há de”, passando os avós a um só, embora sem se saber se seria o avô ou a avó.
Seguindo na onda, Joana Marques fez uma edição humorística em vídeo, intercalando trechos da desastrada actuação dos Anjos em Portimão com imagens de jurados dos “Ídolos” – um daqueles concursos televisivos de talentos –, mostrando rostos de perplexidade. Diversamente do que dizem os queixosos e os advogados, é mentira que este vídeo tivesse distorcido a interpretação do hino. Esta é mostrada como foi, acrescentando-lhe apenas, em evidente montagem, as expressões de desagrado dos jurados. O vídeo de Joana Marques tem manifestamente graça. É objetivamente um bom achado de humor, bem mais leve do que a enxurrada de protestos, críticas e insultos directamente provocada pela infeliz interpretação do hino pelos Anjos.
Por isso, o processo mostra enorme fragilidade dos queixosos, revelando inaceitável hipersensibilidade à crítica, quer aleguem surtos de acne ou derrames, quer fossem tremores nocturnos ou ataques de caspa. Quem quer fazer vida pública em qualquer área que seja – no teatro ou no cinema, nas artes, a tocar música ou a cantar, na comunicação social, no humorismo, no desporto ou na política – tem de ter capacidade para aceitação das críticas, sejam as justas, sejam as injustas. Actuando em público, os Anjos caem no perímetro da frase que se tornou clássica na política norte-americana: If you can’t stand the heat, get out of the kitchen (“se não aguentas o calor, põe-te fora da cozinha”).
Neste caso, a crítica foi obviamente e oportuna justa – mas até poderia ser injusta. Aceitar a crítica não quer dizer concordar com ela, mas aceitar que exista – a crítica é direito do público, um inapagável direito do público. Aqui, Joana Marques é apenas e sobretudo público. Já os Anjos actuam neste processo como o rosto da censura, tiranos fazendo-se de vítimas, na atitude típica de matar o mensageiro: o mal não está em terem desafinado, o mal é dizerem-lhes que desafinaram.
Vejamos, a concluir, dois pontos fundamentais. O primeiro a ter presente é que o humor é uma expressão básica e comum da crítica social. Quase todos o fazemos, menos os trombudos – ou, se calhar, também os trombudos, excepto quando a seu respeito.
Quase todos fazemos e gostamos de ouvir histórias repentistas bem-humorados de um acontecimento ou uma personalidade, seja da actualidade, seja do passado nacional ou internacional. Gostamos de coleccionar anedotas, de as ouvir e reproduzir, por vezes traduzindo representações sociais típicas. É muito gabado, badalado e aplaudido o jeito que os portugueses têm para gerar instantaneamente piadas a propósito de gafes, fífias, gestos desastrados, falhanços, tropeções, erros de expressão, exageros, ou qualquer coisa que excite a imaginação piadética nacional, expondo o seu lado risível ou ridículo. Hoje, com as redes sociais, as manifestações deste talento nacional dão rapidamente várias voltas ao bilhar.
Isto é tão natural, tão enraizado e tão antigo que foi, salvo erro, nas aulas de Direito Romano que, primeiro, ouvi o respectivo brocardo em latim: ridendo castigat mores, isto é, “a rir se castigam os costumes”. O humor, o riso, é instrumento de educação social, como hoje diríamos, um instrumento “livre, participado e inclusivo” de educação social. Por outras palavras: ninguém lhe escapa; todos o fazemos; e é expressão da liberdade de cada um – a liberdade do olhar e a liberdade de pensar. É uma forma de, pelos reparos públicos, pelo efeito normal das críticas, levar à correcção de comportamentos ou de acções ou à prevenção da sua ocorrência.
O segundo ponto a ter presente é o humor enquanto liberdade de expressão e parte deste direito fundamental. Cito uma frase que ouvi, há dias, na televisão, ao Carlos Magno e que logo considerei lapidar: “liberdade de expressão é a expressão da liberdade”. Uma frase que nos ajuda a perceber intuitivamente que os limites à liberdade de expressão (que existem, ninguém duvide) devem ser muito rigorosos, solidamente enraizados na consciência social, muito raros e extremamente limitados. Neste ângulo, o humor – que é uma forma de expressão e das mais sublimes – não pode ser sujeito a limites mais apertados do que os da liberdade de expressão.
Se um cantor faz uma fífia em palco, não é normal que oiça apupos ou leve pateada? Se um cantor desafina em espectáculo transmitido pela televisão, não é normal que ecoem críticas, assobios, troça? Não é isso que acontece normalmente? E que deve o cantor fazer? Deve aceitar as reacções que provocou. Aceitar que foi um mau dia. Seguir em frente. Reconciliar-se com o público. O erro não está no público ao repudiar a fífia; o erro está na fífia, fosse por infelicidade, falta de jeito, ou má percepção. Mesmo os Anjos não são perfeitos. Têm de ter paciência.
O humor é sinal de boa saúde. Sinal de boa saúde pessoal e social. Sinal de muito boa saúde. Não dêem cabo dele. Não construam uma sociedade intimidada. Não devemos dar gás a uma sociedade de autoritarismo, de cancelamento, de vigilância integral, de reitoria dos detalhes. Não queiram uma sociedade zangada e medrosa, invejosa e sem talento, agachada e inquieta. A justiça existe para nos proteger.
observador