Albuquerque Foundation. O apelo irresistível do ‘ouro branco’

Símbolo de pureza por causa da sua brancura sem rival, a porcelana foi durante séculos um segredo bem guardado do Oriente. A coleção da Albuquerque Foundation, uma das melhores do mundo do seu género, fala do fascínio dos europeus pelo ‘ouro branco’, do encontro entre culturas e da paixão de um colecionador. Entre as raridades expostas há um prato que passou 300 anos debaixo de água e um pote que pertenceu a Donald Trump
Na vila de Sintra e seus arredores multiplicam-se as quintas e propriedades de recreio protegidas por altos muros que apenas deixam adivinhar o encanto da vida no seu interior. Mas nesta é possível entrar, tomar um chá, ler um livro, relaxar no parque e apreciar uma coleção de objetos excecionais pacientemente reunidos ao longo de décadas. Em breve será até possível ficar a dormir – um privilégio, contudo, reservado a artistas e a investigadores que se dediquem a aprofundar o estudo da coleção.
Outrora a casa de férias da família de Renato de Albuquerque – empresário, engenheiro civil e arquiteto brasileiro conhecido por ter desenvolvido projetos como Alphaville, no Brasil, a Quinta da Beloura ou a Quinta Patiño, em Portugal –, hoje esta quinta do século XVIII no Linhó alberga a Albuquerque Foundation, onde se expõe uma das melhores coleções privadas de porcelana chinesa de exportação.
Logo à entrada, uma arrojada pala, quase futurista, que se projeta pelo jardim adentro (o projeto de arquitetura é do premiado estúdio Bernardes, com escritórios no Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa) mostra que estamos perante um programa que combina a componente histórica com um forte sentido da modernidade.
Seguindo o percurso debaixo da cobertura, deixamos à nossa esquerda a antiga casa familiar – onde se situam a loja, a acolhedora biblioteca e a cafetaria-restaurante – e chegamos à bilheteira. Uma escada de caracol conduz-nos ao piso inferior, onde se encontra o espaço de exposição. Dentro e fora das vitrinas, o fulgor das porcelanas ganha realce na penumbra. E aqui começa uma viagem que nos levará a conhecer paragens longínquas e culturas singulares.
Uma fórmula secreta
«A exposição está organizada em três grandes núcleos», explica-nos Pedro Coelho, o diretor de exposições e residências da Albuquerque Foundation. O primeiro desses núcleos, intitulado ‘Reino Espiritual’, é dedicado às religiões e formas de espiritualidade.
Quando os portugueses chegaram à China – Jorge Álvares foi o primeiro, em 1513, viajando a bordo de um junco – encontraram um território fechado, avesso à influência estrangeira, mas que possuía algo algo altamente cobiçado pelos europeus.Algo cuja fórmula era desconhecida no Velho Continente:a porcelana, que exigia um ‘ingrediente secreto’, o caulino, e fornos que atingissem temperaturas de 1300-1400 graus Celsius. Antes das grandes navegações do século XVI, algumas dessas peças iam chegando às cidades da Europa, mas a conta-gotas.
«O transporte era feito em caixas de madeira. Enchiam-nas de terracota húmida, metiam a porcelana lá dentro, e voltavam a encher – faziam uma espécie de cofragem de barro», descreve Pedro Coelho. «Depois era rezar para que não se partisse», até porque o trajeto até à Europa era longuíssimo e estava cheio de perigos.
Com a chegada dos navegadores e mercadores portugueses ao Extremo Oriente, tudo isso mudou drasticamente. «Quando nós chegámos por via marítima, conseguimos trazer grandes lotes», continua o nosso anfitrião. Em fevereiro de 1603, uma dessas remessas, que seguia a bordo de uma carraca portuguesa proveniente do porto de Macau, foi interceptada por três navios holandeses. Com 1400 toneladas e uma tripulação de 750 homens, a Santa Catarina era o maior navio do mundo. E transportava uma carga a condizer: 1.200 fardos de seda de Cantão, açúcar, especiarias, 60 toneladas de porcelana e 70 toneladas de ouro e prata. Em vez de ir para Lisboa, o carregamento seguiu para Amesterdão, engordando os cofres da Companhia das Índias Orientais. Foi um dos saques mais lucrativos de sempre.
A forma do espírito
Mas deixemos por momentos as incidências do mundo material e voltemo-nos para o domínio da espiritualidade. Pelas vitrinas iniciais vão desfilando alguns dos produtos da primeira leva de trocas entre europeus e asiáticos. Revelam «temáticas do budismo, do cristianismo, influência árabe, e depois há algumas mitológicas, como as carpas-dragão. Estes objetos eram feitos mais para consumo interno mas eles acabavam por fazer também para exportação». Um homem com uma cabeça extremamente alongada «remete para a sabedoria». Depois, surgem « os oito imortais», uma espécie de semi-deuses da mitologia chinesa, figuras que haviam obtido a iluminação, protegiam a humanidade e faziam de intermediários com os deuses.
Um pouco mais adiante, os primeiros objetos de fabrico oriental mas já com temática cristã. «Nós, portugueses, quando chegámos à China não tínhamos os objetos para, por exemplo, colocar uma hóstia em cima do altar. Ou um castiçal. Ou o que fosse. E portanto há encomendas [de objetos para uso litúrgico] feitas a artesãos e fornos chineses». Um deles junta, de forma inesperada, o monograma dos Jesuítas – ‘IHS’ – com leões budistas.
O encontro de culturas e recíproco ‘estranhamento’ transparece também numa inscrição onde as palavras ‘AVE MARIA’ surgem com as letras trocadas, o que mostra bem o desconhecimento que os artesãos chineses tinham do alfabeto latino. Depois há um menino Jesus com os olhos rasgados – «Só se conhecem dois no mundo inteiro», confessa-nos Pedro Coelho – e um Santo António que podia perfeitamente ser um sábio chinês.
Dez anos à espera de uma peça
Além de nos permitirem recuar aos primeiros momentos do encontro dos portugueses com a China, algumas peças contam também episódios mais recentes. Paramos junto a um buda sorridente, com uma barriga flácida e vestes cor de laranja. «O dr. Renato adquiriu a travessa e só quase dez anos depois conseguiu a terrina. Às vezes, se não se consegue ter as duas partes de uma peça na mesma altura, tem que se estar atento e ser muito paciente». Reunidos os três elementos desta terrina – o recipiente, a tampa e a travessa –, o buda tem bons motivos para sorrir.
Outra particularidade desta coleção – além da qualidade e quantidade de peças quase inacessíveis – é a prioridade máxima ao valor histórico. «O dr. Renato diz que prefere uma peça mal feita ou mal acabada, mas com uma história relevante, a uma peça perfeita sem essa história. Vamos ver, ao longo desta exposição, peças tortas, peças quebradas e incompletas. Algumas não são extraordinariamente bonitas ou bem feitas, mas têm um significado histórico muito forte», continua o diretor de exposições.
Esse não é certamente o caso de um aquário que se destaca, entre outros motivos, pela cor. «Esta é uma peça realizada para o imperador. E como podemos identificar que era para o imperador?», aponta Pedro Coelho. «Repare:os dragões desenhados para o imperador têm cinco garras. Para o comum dos mortais só tinham quatro. Outro elemento de fácil identificação: só o imperador podia usar o amarelo. Inclusive nas vestimentas. E para um imperador chinês», continua, «só a perfeição suprema é que era utilizada. Tudo o resto era partido».
O lado poético do regresso a casa
O segundo núcleo da exposição – ‘Encontros’ – diz respeito às trocas entre o Ocidente e o Oriente. Para ilustrar o tema, nada melhor do que o painel de um biombo namban (existem apenas 60 no mundo) que mostra achegada dos portugueses ou ‘bárbaros do Sul’, como eram designados pelos nativos, ao Japão. «Além de os europeus serem representados com os narizes longos, como era habitual, temos a figura central a chegar ao Japão com umas bombachas – as calças – já com estampas chinesas. Ou seja, aqui já tínhamos ido à China e já tínhamos arranjado maneira de produzir têxteis para nós». Afigura de um escravo, descalço, com a pele escura e o nariz achatado, completa o cenário. Os negros causavam ainda mais sensação do que os brancos no Oriente. Segundo um jesuíta espanhol que esteve na China em inícios do século XVII,os chineses «nunca deixaram de se espantar por verem que [os negros], quando se lavavam, não ficavam mais brancos».
Em seguida, uma das joias da coroa da coleção. «Esta temos a certeza que é das primeiras encomendas», anuncia o anfitrião, referindo-se às primeiras peças mandadas fazer pelos portugueses na China e trazidas para Portugal. «Tem a esfera armilar e por baixo uma pequena nota que diz que é produzida para D. Manuel I. Data de 1520. Estas peças são raríssimas. Estão cerca de 135 catalogadas, um número que sofre pequenas variações, consoante os critérios. O dr. Renato é muito humilde e diz que só tem 32, mas os estudiosos dizem que tem 35. A Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, que é a grande coleção depois da nossa, tem oito. Trazer estas peças de volta a Portugal 400, 500 anos tem um lado romântico e poético de chegar a casa».
Três séculos debaixo de água
Mas a história das navegações não se escreve só em belos versos. Está também recheada de episódios dramáticos. Um prato numa vitrina apresenta um tom de azul-cobalto – durante séculos a única cor que resistia às temperaturas altíssimas exigidas para produzir a porcelana – muito mais pálido do que o habitual. Qual o motivo? «Esta peça provém de um navio naufragado no Índico. Esteve cerca de 300 anos debaixo de água. Por isso é que a cor ficou esbatida. Se olhar aqui por baixo, rentinho, vê ainda restos de coral». Parece uma metáfora perfeita que condensa a essência da porcelana, um material ao mesmo tempo delicado mas resistente.
Trump e Rothschild
Entramos no último núcleo da exposição, dedicado aos animais. «Uma parte da temática da coleção, por interesse do dr. Renato, são os animais. Portanto, temos uma pequena amostra dos animais, alguns deles muito, muito, muito raros. Principalmente estes kendi [frascos para bebidas com uma estranha forma especialmente apreciada no sudeste asiático] que representam um esquilo. Depois temos os falcões, que tinham um lado não só simbólico, de heroísmo e elevação, mas também eram utilizados para a caça. E estas duas águias. O único par conhecido, além deste, está na coleção Rothschild», revela o responsável, que depois aponta para uma manteigueira em forma de sapateira. Tem a particularidade de mexer os olhos.
E, em sintonia com o espírito da coleção e do colecionador, uma peça que se mostra tal como ela é, sem retoques nem ‘maquilhagem’. «Esta peça vê-se que não está tão restaurada como as restantes. O gargalo está partido, há rachas – chama-se ‘cabelos’. Foi mantida assim também para se perceber um bocadinho os elementos históricos e o percurso», explica Pedro Coelho.
Quase a terminar, algo verdadeiramente invulgar na arte chinesa: uma cena com uma subtil carga erótica. «Ela tem a saia levantada e um bocadinho da perna à mostra. Os artesãos chineses nunca representam as pernas das senhoras. Portanto a peça tem esse lado naughty».
Com o avançar da cronologia, as porcelanas vão ganhando um colorido cada vez mais rico e diversificado. Éo caso de um pote de grandes dimensões quase à saída do espaço, que passou pelas mãos de uma personalidade bem conhecida do nosso tempo. «Mar-a-Lago foi inicialmente construído e pensado para ser a residência oficial de férias do governo dos Estados Unidos, antes de Camp David. Quando o estado da Florida decide vender Mar-a-Lago, Donald Trump compra a propriedade com o recheio, que tinha peças extraordinárias como este pote de porcelana chinesa». Num momento de maior aperto, Trump colocou à venda o recheio de Mar-a-Lago, tendo Renato de Albuquerque aproveitado para enriquecer a sua coleção com dito pote.
Tesouros na gaveta
As 300 peças em exposição constituem apenas uma pequena amostra da coleção, correspondendo a cerca de 15% do acervo, que totaliza 2500 objetos. Ali ao lado, nas reservas, as gavetas estão cheias de tesouros de todos os tipos. Além das porcelanas, orientais e europeias, há pratas, gravuras, objetos de tartaruga e madrepérola, lacas, esmaltes e marfins. A peça mais antiga está datada do século XX a.C. – aproximadamente do tempo das pirâmides. Há ainda um cavalo de terracota do século I – «à semelhança dos egípcios, os chineses eram sepultados com alguns elementos para uma vida futura», diz-nos o anfitrião – e um raro par de estribos de laca japonesa. Se a Albuquerque Foundation fosse uma equipa de futebol – um ‘time’, como se diz no Brasil –, teria um conjunto inacreditável de estrelas no banco. Algumas delas poderão ‘entrar em campo’ na próxima montagem da coleção, prevista para setembro.
Em contraponto à coleção histórica, a fundação possui ainda um programa contemporâneo. O pavilhão de exposições temporárias, ao fundo do parque, acolhe até 31 de agosto uma mostra do artista norte-americano Theaster Gates, A Mão Sempre Presente.
Jornal Sol