Camila Sosa Villada. O inferno empresta-vos as put*s

Durante séculos, as putas acumularam segredos. Trancaram na boca os registos de encontros fortuitos, episódios violentos e outras circunstâncias ocultas, ainda por saber. Criaram mundos invertidos, observaram personagens de pernas para o ar enquanto os amantes as descreviam com um olhar torto, escorçado e pouco fidedigno, tardiamente murcho e patético. De cada vez que eles saíam de dentro delas, sem o saberem, fechavam à chave o arquivo com todas as histórias que os precediam. E então, como víboras descosendo a pele, lá se renovavam elas para improvisar aquela que seria a próxima personagem do teatro a entrar em cena. Ao contrário da miséria garantida para os restantes actores e actrizes, as putas talvez tenham sido as únicas que dizem ter feito muito dinheiro com o teatro. «Vou à procura dos clientes, sou jovem, sei contar histórias e mentir, falo com eles enquanto fodo, conto-lhes histórias pornográficas. Subo para cima deles, monto-os e conto-lhes que, ainda criança, um senhor mais velho me sentou ao seu colo e brincou comigo ao corcel e à amazona. Não há nada que lhes dê mais pica do que fantasiar com meninas abusadas. Explodem dentro de mim, que sou quase uma menina, ainda nem atingi a maioridade. Uma gueixa comechingona, é o que sou. Encontro essa veia na contenda selvagem que é a minha marca», descreve Camila Sosa Villada.
De hora em hora, engendraram conversas díspares nos limites mais desafiantes que se pôde imaginar. Subiu-lhes à boca um idioma proibido, resultante das palavras mortas que entre conversas perdidas e traduções desqualificadas acabaram por desenvolver uma língua de recorrentes e imprevistas criações. À revelia de todas as outras, esta parece-nos hoje uma língua esquiva a todas as teorias, e aquilo que nos chega dela parece ter sido arrancado desse universo experiente da mentira e da sobrevivência, de uma vida na eminência do perigo, nem por isso a salvo quando coberta com a sombra daqueles com quem se deita. «A sedução, os preliminares, o coito, o pós-orgasmo, a descrição subsequente, íntima ou audivelmente articulada, são tão diferentes de caso para caso como os vocabulários e as gramáticas. (…) Os pares eróticos forjam os seus dialectos particulares de desejo e gratificação. (…) Os amantes fazem um ao outro dons cujo sentido é um seu segredo. Nomeiam de novo os objectos, as circunstâncias que mobilam os seus espaços eróticos, num impulso adâmico de recriação. Dão literalmente um outro nome a certas partes dos seus corpos, às posições sexuais, aos gestos íntimos que precedem a nudez. (…) Uma forma de expressão libidinal durante muito tempo suprimida e socialmente censurada talvez venha à superfície» (George Steiner).
Ao desvirginarem as cidades e ao travestirem-se conforme os desejos mais selvagens – por vezes secas e duras, de costelas magras vincadas na pele como aqueles radiadores antigos que aquecem o peito a um preço inflacionado, outras romanticamente barrocas e chorudas nas páginas dos poetas, dos romancistas e dos supostos dramaturgos – é certo que lhes ficou por fazer um retrato mais fidedigno, qualquer coisa que não seja uma mera «adaptação, quase desdenhosa, do que eram a obscenidade e a licenciosidade clandestina do discurso masculino» (George Steiner). Considere-se, então, a hipótese inversa de que talvez tenham sido elas a manipular as mãos dos poetas, convertendo-os em meia dúzia de bonifrates ao serviço das letras. Desaparecidas da berma para os carros, de uns quantos quartos para os outros, de casa em casa, de caderno em caderno, hoje habitam por dentro de cada movimento e pedem «emprestado ao inferno a substância da sua sedução».
Camila Sosa Villada, numa entrevista a Tiago Manaia, conta-nos como a língua e a experiência das travestis são intransferíveis para a linguagem, e acrescenta: «Bem, há meninos e pessoas que se recordam da primeira viagem que fizeram à Disney, do dia em que deram a mão ao Messi, ou recordam a vez em que viram a Madonna num concerto. Eu recordo-me dessas primeiras noites com as travestis, lembro-me de ter alucinações porque estava bêbada ou drogada (com pastilhas, cocaína ou marijuana). Olhava para travestis que se comportavam de uma forma que nunca tinha visto na minha vida. Com uma força e com um humor, uma falta de respeito pela linguagem e pelos outros, uma falta de respeito pela noite e pela natureza, que me ficaram marcadas como memórias feitas a ferro quente».
No romance de estreia ‘As Malditas’, mais um volume notável do catálogo dos BCF Editores, traduzido por Helena Pitta, a autora argentina demonstra-nos como as putas travestis, de um modo anárquico e anti-sistémico, contrariam as imagens canonizadas pela tradição literária. Com uma linguagem que à primeira vista se revela um tanto agridoce e promete ainda vir a engrandecer-se, não tarda a emergir um fenómeno cada vez mais raro entre aqueles que arriscam a escrita. Sem incorrer numa postura excessivamente estética, por norma barroca e excrescente na estreia de qualquer autor, encontramos parágrafos poderosos e bem mais poéticos porque avançam com urgência, dizem coisas tremendas em vez de se perderem entre a pose e o estilo. Mesmo nos momentos em que soam mal, sabem a novo.
O livro começa com um parto selvagem, um bebé encontrado no meio da floresta onde tantas delas se prostituem e se vêem obrigadas a, tal como ele, se juntarem numa «cumplicidade de órfãs». Invertendo de um modo espantoso uma das imagens mais convencionais e cansadas da tradição da literatura ocidental, encontrada, por exemplo, na Ilíada de Homero, é como se substituíssemos os versos «Por seu lado a mãe lamentava-se lavada em lágrimas, / desapertando o vestido e com a outra mão mostrando o peito» por uma outra imagem mais poderosa como a de uma travesti com uma criança ao colo: «A Tia Encarna despe o seu peito siliconado e aproxima dele o bebé. O menino cheira o peito duro e gigante e agarra-se a ele com tranquilidade. Não conseguirá extrair desse mamilo uma única gota de leite, mas a mulher travesti que o tem ao colo finge amamentá-lo e canta-lhe uma canção de embalar. Ninguém neste mundo sabe o que é dormir realmente se não teve uma travesti a cantar-lhe uma canção de embalar».
Logo de seguida, arranca uma série de histórias cujos espaços – para nós intersticiais ou transitórios – se convertem em lugares de permanência das comunidades travestis. As casas de banho transformam-se em pistas de dança. Os jardins e os parques são os escritórios de segunda mão. Os camiões são os auditórios onde se recitam poemas da Gabriela Mistral. Os táxis são as urgências hospitalares para os dias de chuva, que provocam dores agudas nos joelhos e nas cicatrizes das balas. As farmácias nascem como esquadras «porque é sempre melhor estar na enfermaria do que no coração da violência» e os enfermeiros são os novos amantes face aqueles que as contratam, por quem por vezes se apaixonam.
As esquinas, em vez de contornos, dobras ou rótulas das cidades, passam, tal como no mercado imobiliário, por zonas de maior exposição e rentabilidade, o que empurra a puta para uma lógica concorrencial e, sobretudo, para uma posição contraditória. Se por um lado compactua com o sistema e se converte numa máquina de fazer dinheiro, com os seus vícios de consumo e espectáculo, não deixa, porém, de ser encarada como uma ameaça ao capitalismo, uma vez que é paga com dinheiro sujo, não declarado e sem registos de transação, comprometendo-o e substituindo um mercado dito legítimo – mas eternamente mais pornográfico – por um outro clandestino. Assim, a puta consegue ser tão secreta, marginal e contrária à luz do dia, como vítima dos desejos e pressões capitalistas. «Não interessa se somos menores, analfabetas, se temos família ou não. A única coisa que interessa é a vitrina. O mundo é uma vitrina. Prostituímo-nos para comprar às prestações tudo o que as suas montras oferecem. Uma só noite e basta, uma noite e o dinheiro chega-nos às mãos, às carteiras. No dia seguinte pagamos o aluguer, acalmamos a necessidade de sedução. Uma noite e já podemos ser como eles, as filhas pródigas vão às compras, vão saldar dívidas, batem às portas das lojas como fanáticas do consumo».
Atravessando aquele que tem sido, desde o princípio, um dos segredos mais ocultos da sociedade, chegamos à contracapa com a sensação de que estas putas travestis foram e continuam a ser uma das grandes possibilidades para se romper com os vícios dos romancistas, os plágios dos clássicos, as imitações baratas das obras canonizadas, os temas e as descrições prescritas pelas instituições que dão prémios, as estruturas e os personagens que melhor encaixam nos críticos. «As travestis trepam todas as noites desse inferno sobre o qual ninguém escreve, para devolver a Primavera ao mundo.», atira Sosa Villada. Desde já porque invertem todas as características comuns ao personagem-tipo, elemento tido como o mais imprescindível e único necessário para a construção de um romance.
Ao contrário de qualquer outro personagem literário, «ninguém trata as travestis pelo nome a não ser as próprias. As outras pessoas ignoram os nossos nomes, usam o mesmo para todas: prostitutos. Somos as gajas com pega, os esgalha gansos, os brochistas, os calcinhas com cheiro a tomates, os barrotes, os vergalhos, os esquentadores, os latagões muitas vezes, os garanhões no mínimo, os idosos, os doentes, é o que somos». Temos, assim, que apesar dos inúmeros sinónimos de ‘puta’ – cujo termo entretanto nos serve como uma granada entalada na boca para insultar mães, pais, tios, professores e afins – não lhes foi conferido outro destino senão o de continuarem a mover-se no anonimato. Perdemos os acendedores de candeeiros públicos, os copistas, as lavadeiras, os tanoeiros, os bobinadores, os telefonistas, e, no entanto, ao lado das putas, «apareceu uma palavra que cheirava a morte, a merda, a sémen, a prostituição, a noite, a frio, a subornos, a sangue e a cárcere, a abandono e a miséria. Uma palavra afiada como uma lâmina, ofensiva, cheia de sujidade. (…) Travesti! – diziam, e isso bastava para formatar a imaginação e a rejeição de toda uma sociedade que já se tinha adaptado a essa forma de identificação».
Nas travestis o corpo é uma entidade indefinida, uma «existência ferida», um lugar onde as perguntas aparecem antes das respostas. Mais do que a urgência em ser catalogado, suspendem-se as regras da nomenclatura e é aí que reside a grande potencialidade. Os corpos são, assim, descritos como «uma fracção dolente e inesquecível», como se a pele cobrisse «um cheiro a carne podre» e fosse um espaço deixado em branco pelas cicatrizes e nódoas dos sucessivos dias de sova. Surge o corpo como «uma flor da selva, uma flor repleta de peçonha, vermelha, com pétalas de carne». Sosa Villada parece propor-nos uma outra metamorfose capaz de substituir a de Gregor Samsa. Ambos retratam um corpo que assume a culpa de existir e se vê expulso da norma, tornando-se irreconhecível. A diferença é que em Kafka, Samsa é castigado com uma metamorfose que o expulsa do mundo humano, tornando-se num monstruoso insecto à luz do dia, isolado num quarto de três portas. Enquanto que a puta travesti invade a cidade e escolhe pertencer a uma comunidade que transgride as regras do jogo, expulsando-se a si mesma, sem no entanto chegar a suprimir todos os elementos que estabelecem uma relação dela com o mundo, engendrando um corpo estranho, manipulado, uma soma de cortes e acrescentos que o corrigem e conduzem para um lugar onde o belo é a recusa e a contradição face ao que os outros encontram no espelho.
«Executava a minha metamorfose, feliz, eufórica. O ritual começava em casa dos meus pais, onde, no duche, rapava as pernas com lâmina de barbear. Continuava com as mentiras necessárias para que me deixassem sair. Saía de minha casa como um rapazinho tímido (…) e quando ninguém me via entrava no meu palácio de tijolos por rebocar e tratava de me transformar em Camila. O par de meias roubado à minha avó, o vestido que costurei com uma cortina que cheirava a insecticida, a maquilhagem que as minhas colegas, as minhas primas ou a minha mãe já não usavam. O perfume que meti ao bolso quando a senhora da farmácia se distraiu. Os sapatos que consegui comprar às escondidas, depois de dois anos a poupar cada moeda que o meu pai me dava para o lanche do recreio. (…) Sem o saberem, todos colaboraram com a menina que passeava de noite o seu rabo jovem pelos mesmos passeios que percorria de dia, vestida de rapaz, a andar como um rapaz, protegida pelo rapaz que queria ser invisível».
E por baixo desse sudário de restos empalmados, guardavam-se os corpos metamorfoseados sem decência, anavalhados meticulosamente e expostos como um retábulo quase sagrado – «um animal adormecido bem guardado nas calcinhas, ou uma vagina aberta à força de bisturi», a «pele de galinha, com os pêlos eriçados, as brânquias abertas, os maxilares tensos», «a cabeça muito baixa, esse gesto que as torna invisíveis», «aquele cabelão longo e ressequido com ervas e folhas do seu improvisado local de trabalho», o «abdómen recentemente emagrecido à vista de todos», «uns pezinhos que não chegavam a encher um sapato de tamanho 37 e uma voz completamente feminina».
Outra característica que deriva do corpo, neste caso o corpo das putas, são as infinitas posições a que estas estão sujeitas. Ao contrário do corpo burguês, a puta nunca repousa: contorce-se, oferece-se, encena. Não se senta: posa ou esmaga. Não se deita: exibe-se e performa. Não se endireita: finge e desafia. Do mesmo modo que o homem burguês nunca se põe de gatas como uma empregada doméstica, ou de cócoras como um canalizador, ou de bruços como um mecânico, ou de joelhos como um sapateiro – a não ser na missa. Tem, por isso, que ver com uma questão de classes, o que nos recorda a explicação de David Graeber acerca da evolução das economias baseadas na dívida, afirmando que desde a Mesopotâmia, se serviam de mulheres pobres, especialmente filhas de famílias endividadas, forçando-as a prestar serviços sexuais como forma de pagamento ou garantia de dívidas. Resta-nos, então, a derradeira questão como uma ferida aberta e cheia de pus: as putas multiplicam-se apesar ou porque representam uma ameaça às convenções sociais de família, filiação e fertilidade?
Não sabemos, mas uma coisa é certa: «A economia ruiria, a existência selvagem devoraria todas as normas se as putas não oferecessem o seu amor carnal. Sem as prostitutas, este mundo mergulharia no negrume do Universo».
Jornal Sol