Guerra cultural

A prefeitura de Kenner, vizinha a New Orleans, berço do jazz, anunciou em 16 de junho o cancelamento do Hispanic Heritage Festival, evento anual com atrações internacionais, por causa das crescentes detenções promovidas pela agência federal Immigration and Customs Enforcement, a polícia de deportação dos Estados Unidos. Mais de 30% dos habitantes de Kenner são hispânicos, principal alvo da ICE, e, segundo a municipalidade, estavam preocupados em frequentar o acontecimento cultural e acabarem enjaulados.
No evento esportivo mais importante do país, o Super Bowl, o filho ilustre de Kenner, o cantor e pianista Jon Batiste, tocou o hino nacional norte-americano, o momento mais esperado, e repetiu o trecho land of the free (“terra dos que são livres”) três vezes, uma pequena mudança na versão original. A opção de Batiste por reiterar a frase foi entendida por muitos, entre eles a candidata derrotada Kamala Harris em manifestação na rede social, como um aviso ao presidente dos EUA, Donald Trump, presente ao estádio e empossado no cargo três semanas antes.
A primeira quinzena de fevereiro havia sido marcada por uma intervenção no The Kennedy Center, localizado na capital Washington e administrado pelo governo federal. Trump destituiu integrantes do conselho curador do centro cultural indicados pelo antecessor, Joe Biden, e acabou nomeado presidente do órgão depois de instalar apaniguados nas cadeiras vazias. Quebrou-se assim uma tradição de se compor o conselho com representantes de diferentes espectros políticos. Entre os integrantes afastados estava Batiste.
The Kennedy Center, sede da Orquestra Sinfônica Nacional, é palco obrigatório para artistas estrangeiros do universo da música clássica em turnê pelos Estados Unidos. A interferência de Trump foi vista como uma ruptura da diversidade e uma imposição da agenda política do novo governo. A reação foi imediata. Um dos maiores pianistas do mundo, o húngaro-britânico András Shiff, cancelou todas as suas apresentações no país. Na ocasião, afirmou se sentir “moralmente” obrigado a tomar tal decisão em meio às mudanças “sem precedentes” nos EUA. Outros artistas requisitados do universo da música clássica também cancelaram turnês, irritados com a política da Casa Branca, incluídos os alemães Christian Tetzlaff, violinista, e Schaghajegh Nosrati, pianista.
Ao mesmo tempo, outros músicos enfrentaram problemas para ingressar nos Estados Unidos após a entrada em vigor da nova política de vistos a estrangeiros. O ProgPower USA 2025, festival de metal progressivo e power metal que reúne ícones internacionais do gênero, sentiu na pele o endurecimento das regras. Integrantes de várias bandas listadas na programação do evento não tiveram permissão para entrar no país. Um comunicado da organização, por conta do ocorrido, informou o cancelamento de apresentações dos grupos Jelusick, da Croácia, All For Metal, formada por alemães e italianos, Temic, da Noruega, e The Night Flight Orchestra, da Suécia. Os alemães da banda Iron Savior haviam desistido anteriormente de se apresentar no festival, por discordarem das medidas anunciadas por Trump.
Músicos têm sido impedidos de entrar no país. Ou cancelam shows em protesto
Nem o famoso Coachella, na Califórnia, escapou. A cantora britânica FKA Twings foi obrigada a cancelar sua apresentação no festival, realizado em abril, por não obter o visto. O DJ Alok, única atração brasileira na edição deste ano, havia se mudado fazia pouco tempo para Los Angeles, um “alívio”, segundo relatou à imprensa. Anitta foi, no entanto, atingida em cheio. A estrela pop participaria do Michelada Fest, atração anual em Chicago, mas o tradicional festival voltado à música latina acabou cancelado. No comunicado, a organização alegou incertezas com a concessão de vistos a artistas latinos e o “clima político” interno.
Na capital federal Washington, que também realiza um evento anual no verão do Hemisfério Norte dirigido à comunidade latina, com apresentações folclóricas e bandas, o Latino Festival, igualmente optou pelo cancelamento. Os organizadores temiam o esvaziamento de público por conta da perseguição aos imigrantes.
Artistas mexicanos tornaram-se alvos constantes. O Grupo Firme, um dos mais populares do país, cancelou sua apresentação no La Onda Fest, em Napa Valley, na Califórnia, por problemas de visto. O cantor de música romântica, Julión Álvarez, teve sua permissão de trabalho revogada e também cancelou os shows em solo norte-americano.
Entre os artistas estadunidenses, Batiste não foi o único a protestar. Bruce Springsteen, apoiador declarado do Partido Democrata, desfiou críticas ferozes às políticas do governo Trump. O cantor e compositor chegou a lançar o EP Land of Hope and Dreams em forma de manifesto, no qual chama o governo de “corrupto, incompetente e traiçoeiro”. O trabalho, uma gravação de um show realizado, em maio, na britânica Manchester, irritou o presidente dos EUA, que ameaçou investigá-lo. Neil Young, Bono Vox e o grupo Pearl Jam se solidarizaram com Springsteen, considerado uma lenda do rock. E a banda Dropkick Murphys, que esteve no Brasil para apresentações e é uma referência do punk rock, participou em Boston dos protestos chamados Hands Off (Tirem as Mãos) em oposição ao governo, realizados regularmente em diversas cidades norte-americanas.
E tudo isso em apenas seis meses de governo. Faltam ainda três anos e meio de mandato, se Trump não tentar mudar a Constituição para permanecer no cargo. •
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra cultural’
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