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Sudoeste

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O meu Alentejo, e chamo-o de meu do mesmo modo como trato o meu braço direito, foi nascendo muito antes de eu sequer imaginar o que viria aí. Começou, penso eu, com o meu irmão mais velho que, partilhando o mesmo primeiro nome próprio que eu, e sendo grande, maior mesmo que o nosso Pai, com o meu nascimento ganhou a alcunha de Nunão. Já eu, por oposição, nasci Nuninho e, por maior que fosse ficando, assim continuei. Cresci em Cascais, a ver o mar, isolado na encosta da Serra de Sintra, na casa, como o meu Pai costumava dizer, “mais perto do mar”. Tirando um vizinho mais ou menos da minha idade que, tendo os pais separados, aparecia ao fim de semana, como amigos e companhia, tinha quatro cães, uns pastores alemães enormes, mas brincalhões, pachorrentos com a criançada, em particular comigo que viam como uma espécie de equivalente humano.

Nesse tempo, o meu irmão Nunão, o filho mais velho do primeiro casamento do meu Pai que vivia em Amesterdão, na Holanda, vinha todos os anos passar umas semanas connosco, tanto no Verão como pelo Natal. Para mim, desde que me lembro de vir a este mundo, eram as melhores alturas do ano. O meu irmão não só trazia sempre um qualquer reforço para o meu equipamento futebolístico — bolas, luvas de guarda-redes, caneleiras, meias, chuteiras, etc. — como também se prestava a jogar à bola comigo, substituindo os muros contra os quais, sempre trajando a rigor, eu normalmente tabelava a bola em geniais passes rasgados. Paciência do meu irmão, prazer o meu, alívio dos cães que, doutro modo, à falta de companhia, eu fintava, rabiava e por cima dos quais fazia saltar a bola, sem que, entre bocejos, percebessem a complexidade dos enredos de conquistas gloriosas nos quais participavam, como adversários, mesmo que indirectamente — tirando, naturalmente, quando o esférico acertava nos desgraçados.

A casa, grande e em parte normalmente vazia, nessas ocasiões em que o Nunão vinha visitar e ocupava o “quarto lá de baixo”, ganhava uma vida familiar à qual eu não estava habituado tendo-me gerado, em particular no Natal, impressões ainda hoje tão vivas quanto as centenas de memórias guardadas nos álbuns — aqueles em que se tinha que enfiar os cantos das fotografias nuns fugidios triângulos de plástico — que guardo ainda aqui na biblioteca, numa prateleira reservada especialmente para esse efeito. E o mundo assim girou, na sua tranquila e repetitiva normalidade, durante a maior parte da minha infância.

Em 1988, tinha eu dez anos, o mundo mudou. O Nunão, depois de visitar uma amiga exilada no Sudoeste alentejano, ali para os lados do Cercal, decidiu que seria boa ideia comprar um velho monte vizinho que, incorporando uma taberna, um mini-mercado e algumas dependências agrícolas, estava para venda. A ideia, original à época, era transformar o monte naquilo que hoje se chama um turismo rural, mas que, na altura, fruto da novidade, ainda não tinha nome. O meu irmão, creio eu, foi o pioneiro nessa actividade que agora por aqui abunda e que consiste numa das forças económicas da região.

Mas naqueles dias ainda não era assim. O Alentejo litoral mantinha grandemente o seu carácter inóspito, em muitos casos de abandono, povoado por pequenos montes onde a taipa, encarniçada, esburacada, se misturava com a cal e o tijolo mais moderno, muitas vezes à vista, criando barracas, a maior parte das quais sem casas de banho, espalhadas pelos campos e servidas por poeirentas estradas de “caminho velho”, ou seja, terra batida. Os aglomerados eram pequenos, “levantados do chão” com actividade centrada na taberna, no mini-mercado, ou no posto dos correios, local onde, invariavelmente, residia também o telefone, sendo que em muitas ocasiões um estabelecimento apenas acumulava todas as funções — no caso das Casas Novas, era a venda da D. Guiomar. Fechados dentro das casas e tabernas, de janelas pequenas quando não limitados aos postigos das portas de madeira antiga queimada pelo sol, o refúgio face ao frio húmido no Inverno ou o calor seco no Verão, enfiava os nativos naqueles casulos sombrios, fechados, claustrofóbicos, que, junto com o copo de tinto, a média de cerveja e o tirinho de aguardente de medronho vendidos ilegalmente, os protegiam dos caminhos desertos e poeirentos.

Nas aldeias e vilas já maiores, a coisa era diferente. Em redor das praças centrais, ponto de encontro onde, normalmente, paravam os autocarros, os mais empreendedores, sem qualquer certificação da ASAE, abriam esplanadas e toldos onde serviam bifanas, pregos e sandes, sempre devidamente acompanhadas de vinho a copo, ou cerveja fresca. Aí, a vida social saía do negrume escondido para a claridade do dia, das trevas para a luz, revelando toda uma sociedade pobre, mas cuidada. Eles, de boné, casaco quadriculado de lapelas com dois botões, camisa e gravata; elas, de aventais e batas coloridas, cabelos muitas vezes curtos, ou pelo menos apanhados, isto as mulheres de meia idade. Já as mais velhas, essas vestiam preto, com lenços a condizer, isto enquanto as mais novas mostravam ares de modernidade com longos cabelos negros e trajes mais arrojados.

Nenhuma desta gente ia à praia. Muito deles, mesmo vivendo em linha recta a 15 ou 20 quilómetros da costa, não tinham carro nem burro, andavam sempre a pé e nunca tinham sequer visto o mar — e que mar esse, o do Alentejo litoral. Azul, desde a praia até um horizonte pincelado por cristas enormes, poderosas, mitológicas, de espuma branca, tal como cristalino, senão esverdeado, sempre pejado de algas multicolores por entre as poças dos rochedos marítimos. Na costa, por cima de praias desertas e dos aromas das ondas, não havia mais que umas pequenitas vilas piscatórias, com ruas de alcatrão, fervilhante no Verão, ladeadas por uns quantos cafés e variadas lojas de conveniência estival. Lá em baixo, no findar de cada vale, cada qual com o estuário da respectiva ribeira, sem pontes, éramos forçados a atravessar as águas correntes, rasas, de carro ou a pé, para, finalmente, chegar aos areais puros, praticamente vazios, das múltiplas praias que, em pequenas enseadas sucessivas, compõem grande parte da costa Vicentina.

Nesses tempos, nos areais maioritariamente desérticos, onde inclusive se podia ainda acampar para pernoitar, a fauna humana, separada por zonas informais, eram uns poucos jovens locais, turistas aventureiros, em muito casos nudistas, e alguma dose de lisboetas e demais portugueses citadinos, invariavelmente de calções às riscas e fio ao pescoço que, normalmente por ligações familiares, ali tinham na zona segundas casas onde costumavam veranear. À distância, perto dos portos sem areal e pejados de rochas — o do Canal, o das Barcas, o da Azenha —, invariavelmente encavalitado no topo de uma falésia e a ver o sol por-se no mar, a oferta gastronómica consistia numa ou duas barracas de madeira, com telhados de chapa forrados a canas velhas e chão de cimento pintado. Aí, sentados em cadeiras velhas, carunchosas, quando não bancos, servia-se em mesas de madeira, umas com plásticos pregados, outras cobertas a toalhas de papel, as mais diversas iguarias: desde o percebe abundante que servia de entrada, ao mais fresco dos peixes e a uma infinidade de mariscos diversos, uns e outros grelhados ou fritos, bem como, a tacho, feijoadas de búzios ou de choco, sem esquecer as caldeiradas, tudo sempre devidamente acompanhado de vinho fresco a jarro, tudo pago a preços modestos, bem anunciados em cartazes de xisto escrevinhados a giz branco.

Nos centros das vilas, as casas, brancas e com barras de cores diversas — o amarelo de Milfontes, o azul da Zambujeira, por exemplo — organizavam-se em ruelas de alcatrão velho, permanentemente decoradas com os então tradicionais cartazes, escritos à mão e pendurados nas janelas, anunciando quartos para alugar a quem quisesse passar a noite, ou a semana. Naturalmente, com a mira posta nos estrangeiros que vinham espraiar-se nas areias já famosas de Vila Nova de Milfontes e Porto Côvo, predominavam os escritos em inglês e alemão — “Room”, “Zimmer”, diziam eles, livres de impostos, ratings, livros de reclamações, ou sequer das garantias de conforto inclusivo, integrado e digital do Airbnb. Pelo contrário, a melhor crítica era mesmo a sugestão do dono do restaurante central, esse, por oposição aos dos “portinhos”, já com direito a luxos variados, tais como uma vistosa toalha de pano por baixo da de papel, menu escrito à mão, mas encadernado a couro, mosquiteiro eléctrico com luz negra letal para mosquitos, moscas, besouros e demais insectos, azulejos a meia parede de cores variadas compondo desenhos geométricos, bem como quadros ou fotografias da própria zona decorando as salas, muito mais amplas, normalmente corridas ao longo de balcões de inox onde os velhos, pela tarde, se encostavam a beber cerveja e medronho enquanto ouviam, primeiro rádio, mais tarde televisão — uma praga que, sempre ligada, ainda infecta o país inteiro.

Mas divirjo. Certo dia, em 1988, o Nunão levou-nos a ver o tal monte que queria comprar. À primeira vista aquilo não prometia muito. Telhado velho, bambo e com falhas de telhas, sem casa de banho, os tectos com barrotes antigos, pouco confiantes, forrados, nos intervalos, a cana seca, lascada e, de tão seca, já mais cinzenta que amarela. Pior que isso, mal o meu Pai, o convidado principal na medida em que se prestava à condição de potencial fiador, passou a sala principal da taberna — ainda em funcionamento e onde diversas mesas com tampos de mármore e algumas cadeiras desirmanadas pareciam co-existir há décadas —, entrou para inspeccionar um corredor esconso e eis quando, no meio da escuridão, ainda nem tinha entrado na casa há dois ou três minutos e já ele tinha esmurrado a cabeça na aduela de uma porta pensada, imagino eu, para pessoas com metro e meio, metro e sessenta de altura, isso na melhor das hipóteses.

Naturalmente, o meu Pai não ficou impressionado. Nem eu, para ser sincero. Não gostei do cheiro, quer da tasca, quer do mini-mercado. Tudo me pareceu velho e porco e preferi ficar do lado de fora, ao sol, ou debaixo do alpendre, onde uma imensa parreira fazia sombra, entretido com uma espingarda de plástico da qual gostava particularmente porque o gatilho estalava mesmo e a madeira fingida da coronha, oferecendo ares de grande realismo, lembrava a caçadeira verdadeira que o meu Pai guardava no armário grande do hall da nossa casa do Guincho. Verdade seja dita, lá, naquele meu mundo hoje perdido, mas em que então ainda vivia, não me ocorreu que, naquele mesmo momento, enquanto os adultos se acertavam em pormenores, valores e prazos e eu brincava com a espingarda mirando inimigos imaginários para além da ribeira das Casas Novas, nascia algo que, a seu tempo, dentro de mim, com os anos, em germinando, iria definir muito daquilo que é a minha vida hoje em dia.

O meu irmão comprou, portanto, o monte e, desculpando-se a aliteração, montou o estaminé. Lavou, pintou, arranjou, reconstruiu, recuperou e, no Verão de 88, a coisa abriu. Esteve meses cheio de amigos, amigos de amigos e, para bom augúrio dele, amigos de amigos de amigos, na maior parte dos quais holandeses à descoberta da aventura prometida por uma terra de uma Europa distante, ainda perdida no espaço e no tempo. Nesses Verões primordiais, durante o dia ia-se para a infinita Praia do Malhão ou, em ficando no monte, refrescávamos as almas estarrecidas pelos mais de quarenta e cinco graus num duche instalado no meio do jardim, composto por quatro barrotes enfiados no chão forrados por três tábuas largas de madeira e uma cortina, um conjunto pitoresco que hoje talvez passasse por chic freak, mas que deixava à vista as pernas do utilizador — e não só, isto para quem tivesse menos de metro e meio de altura como era o meu caso. De tempos a tempos, também havia banhos num pequeno tanque junto ao poço e que, lavado e desinfectado, mesmo sem filtragem, dava para uns quantos dias a banhos. Nos intervalos, passeava-se pelo campo onde o amarelo da seara havia já substituído o verde que nos Invernos e Primaveras, ao sabor do vento, ondulava levemente como um infindável, desértico, solitário, mar — um Verdemar, o nome com o qual o meu irmão baptizou o seu hotel rural. De resto, o campo. O infinito campo alentejano. Aos ouvidos, além da brisa que espraia a solidão dos montes, não chegava nada além de um encantado isolamento, uma curiosa comunhão com o mundo, um mundo que ali parecia tal qual aquilo que é — enorme, gigante, cósmico, mas de algum misterioso modo também parte de nós.

Ao entardecer, depois dos banhos, o meu irmão ligava a aparelhagem e, ao som de rock e blues, todos se juntavam na esplanada enquanto ele, chef de profissão, cozinhava o jantar que, já de noite, lá fora, debaixo da parreira, todos os hóspedes, amigos e familiares partilhavam numa comprida mesa de madeira à luz de velas enfiadas em garrafas de vinho vazias, daquelas de um verde fosco e fino que hoje em dia já não se fazem e que os anos vieram a cobrir de cera derretida. O ambiente da refeição era de grande algazarra e feliz convívio, fazendo-se a cacofonia do português misturado com o holandês e o inglês, um caleidoscópio sonoro de opiniões e risos, todos bebendo do mesmo jarro de vinho, sempre cheio, o que ajudava à animação. O meu irmão servia o típico português, mas sempre com um toque de originalidade — aquilo que hoje, armando ao pingarelho, se chama “fusão” —, juntando o tradicional explanado numa primeira edição do Pantagruel devidamente assinada pela Berta da Rosa Limpo, e que ele ainda tem lá em casa, com tudo o mais que os anos de experiência a cozinhar em Amesterdão lhe tinham ensinado. Sempre a três pratos, capaz de mudar o menu por completo durante mais de três semanas, desde as saladas com os produtos da horta, grelhados, assados e estufados de carne e peixe combinavam com acompanhamentos variados, culminando sempre naquilo que as crianças inevitavelmente mais aplaudem — a sobremesa. Assim de memória, relembro como imbatíveis o cabrito assado, que ainda hoje é a minha referência quando a cozinhá-lo, o Gratin Dauphinois que me enchia as medidas, sempre gulosas, e as pêras bêbedas, iguaria que quando aparecia me levava sempre a ver se conseguia espremer os últimos traços de molho para o meu prato. De todas estas impressões não tenho eu a versão fotográfica, obviamente, mas guardo bem presentes, no coração, as memórias dessas noites passadas no Verdemar — e mal imaginava eu o quanto dos verões da minha infância e adolescência se iria passar naquela alegre, quase perpétua, rotina.

Em boa verdade, não sei como surgiu a ideia. No entanto, no Verão de 90, tinha eu doze anos, fui passar o mês inteiro de Agosto ao turismo rural do meu irmão. A razão da estadia foi a que decorreu de uma negociação familiar que me escapou, mas na qual se decidiu a minha promoção de convidado esporádico a ajudante de última categoria do Verdemar. Digo de última categoria porque abaixo de mim só mesmo as ovelhas e os cães, e esses, pelo menos da minha perspectiva, não contavam para a ordem hierárquica da situação, coisa que o facto de eu sentar-me à mesa com todos os outros para jantar, privilégio não conferido aos elementos irracionais da comunidade, confirmava. Na minha nova função, apanhava coisas da horta, varria a esplanada, actividade que detestava e evitava sob pretextos variados, bem como ajudava a pôr e a levantar a mesa ou, ainda, a lavar a loiça, aqui normalmente na função de secador. Também era o principal responsável por, sempre que necessário, ir buscar isto ou aquilo, ou seja, tornando-me numa espécie de auxiliar, um pouco mais útil que um alicate e, imagino eu, certamente acima de um comando televisivo humano, uma das poucas responsabilidades que já conhecia pois que, tal como toda a geração de 70, antes dos comandos electrónicos aparecerem, ao serão, e no meu caso a mando normalmente do meu Pai, era eu o responsável por levantar-me da mesa e ir rodar o botão para que se pudesse ver o que estava a começar a dar no “outro canal”, momento de mudança na programação que se apanhava por uns sinais ‘+’ anunciados no canto superior direito do televisor. De qualquer forma, a minha utilidade no Verdemar, mesmo que reduzida e, por vezes, recalcitrante, imagino-a comprovada histórica e empiricamente pelo facto de o convite se ter repetido no ano seguinte.

Aliás, ao longo dos anos a tradição da minha estadia alentejana manteve-se e, não obstante permanecer no final da hierarquia do estabelecimento, as minhas responsabilidades até foram aumentando. Passei a tratar, por exemplo, de dar de comer aos bichos, tarefa realizada normalmente com sucesso, excepção seja dada a um determinado dia em que não tranquei a cerca devidamente e o raio das ovelhas fugiram todas para parte incerta, motivando horas de busca e captura por parte de toda a gente. Esse não foi um bom dia. Fui, também, incorporado no sector que se dedicava a renovar certas construções na quinta. Lavei telhas velhas, carreguei carrinhos e carrinhos de cimento, areia e tijolos, aprendi, inclusive, a fazer massa com uma enxada e, sob o sol quente de Verão, a suar, foi precisamente no meio dos dois vizinhos que compunham o grupo de ajudantes que me senti, creio que pela primeira vez, verdadeiramente útil. Poucas coisas farão um ser humano orientar-se num mundo que não lhe liga grande coisa como ajudar a fazer uma casa. Hoje, que já fiz várias, sei do que falo. Na altura, claro está, não imaginava tal coisa, sentia-me apenas feliz por poder estar com gente crescida, ajudar e aprender, bem como, pormenor muito importante, partilhar os momentos de descanso em que eles, os adultos, paravam para beber uma cerveja e eu, para não ficar atrás, imitando-lhes os jeitos, emborcava garrafas de Sumol pelo gargalo, umas vezes de laranja, outras de ananás. O esforço valeu a pena e o sacrifício. Ainda lá está, creio eu, uma casa em que as telhas, originais, foram lavadas, esfregadas, raspadas por mim — e a massa que faz o reboco tosco das paredes, parte dela foi também fruto do meu labor, bem como o transporte dos pesadíssimos sacos de cimento que, à torreira do sol, carreguei, um a um, desde a entrada da quinta, num velhinho carro de mão.

O meu Alentejo é por isso, como dizia no início, tão meu como o meu braço direito. Não porque a província me pertença, ou seja mais minha do que de quaisquer outros, mas porque tantas das memórias que fazem da pessoa que fui ontem aquele que sou hoje estão misturadas com um conceito mental, meu, que, para mim, é o Alentejo, no meu caso particular, o Sudoeste alentejano. É, nessa medida, nesse espaço abstracto onde residem os conceitos que compõe os sentidos e oferecem os significados das nossas histórias de vida particulares, meu, e apenas meu, tão apenas meu quanto as minhas memórias, mesmo aquelas que, espalhadas no tempo e partilhadas por tanta gente, não deixam ainda de serem memórias minhas e de mais ninguém.

No final, foi assim mesmo que o meu Alentejo me nasceu: em família, em paz e infantil felicidade, em sucessivos verões passados no Verdemar, sempre acampado lá fora, no jardim, atrás de um muro, para não estorvar os quartos destinados aos clientes, mas com direito a uma extensão, sempre a mesma, que me permitia, já noite fora, ligar o meu rádio e acender um pequeno candeeiro. Era assim que, à noite, já depois de todos se terem recolhido, após lidos dois ou três capítulos de um livro policial, ouvia música baixinho enquanto, deitado num velho colchão de espuma, com a cabeça do lado de fora da tenda, misturado com o canto dos grilos, olhava as estrelas que a vida da cidade não me deixava ver e sonhava com o futuro que o tempo haveria de trazer.

  1. do A – O presente conto auto-biográfico é uma versão revista, modificada, aumentada de um pequeno apontamento em tempos publicado no meu blog pessoal e que já não está disponível para leitura pública.
  2. do A (2) – Passados quase 40 anos, o Verdemar ainda lá está nas mãos do meu irmão, cunhada e sobrinhos.
observador

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