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"Killer Joe": uma peça decadente, violenta e atual

"Killer Joe": uma peça decadente, violenta e atual

Bem-vindos ao Texas profundo — ou ao quintal do nosso vizinho, porque esta história podia perfeitamente passar-se aqui ao lado e em pleno 2025. E passa — pelo menos entre 14 e 22 de junho, dias em que Killer Joe estará na Sala Mário Viegas, do Teatro São Luiz, em Lisboa.

Em cena está uma rulote velha e maltratada, à qual Chris (David Esteves) chega esbaforido, em busca de ajuda. Lá dentro vivem o pai, Ansel (Pedro Caeiro); a madrasta, Sharla (Inês Pereira); e a irmã, Dottie (Madalena Almeida). Com uma dívida para pagar a um gangue que lhe ameaça a vida, Chris sugere ao pai a morte da mãe (primeira mulher de Ansel), cujo seguro de vida tem como beneficiária Dottie. Numa realidade precária e decadente onde o dinheiro nem para as necessidades básicas chega, quando surge a oportunidade de ganhar e dividir 50 mil dólares, o facto de isso implicar matar alguém passa a ser um mero pormenor. A ideia é então recorrerem a um assassino a soldo, Joe (Dinarte Branco). Porém, como não há dinheiro para pagar adiantado, Joe reclama uma caução: Dottie.

A história está apresentada e em nenhum momento (nas duas horas de duração) parece datada, ainda que Killer Joe tenha sido escrito em 1993. Essa é uma das grandes mais valias do espetáculo, que se funde no tempo em que vivemos e num espaço que nos é familiar sem ter de abdicar das referências a uma América white trash — com direito a bandeira patriota e tudo —, onde a perda de valores morais se mistura com violência e egoísmo. Joe não tem qualquer problema em querer usar Dottie como um objeto sexual e, numa primeira instância, nem o pai nem o irmão dela têm remorsos de a entregar como se fosse um objeto.

Pedro Caeiro foi o primeiro a deparar-se com o texto de Tracy Letts — vencedor de um Pulitzer e de vários Tony, é também o autor de Um Quente Agosto (peça que deu origem ao filme com Meryl Streep e Julia Roberts). “Vi o filme há uns anos e, na altura, liguei ao Miguel [Graça, o encenador] e disse-lhe para ver. Passaram-se uns anos e ele nunca viu o filme, até que um dia me ligou a dizer: ‘Pedro, tens de ver este filme, é inacreditável, chama-se Killer Joe’. E eu respondi: ‘Foi esse o filme de que te falei há não sei quantos anos’.”, conta ao Observador.

A ideia de o transformar em espetáculo ficou a marinar, sobretudo depois de terem percebido que Killer Joe tinha começado por ser uma peça de teatro, e ganhou finalmente forma através da Urso Pardo (companhia fundada em 2022 por Cláudia Teixeira, David Esteves, Madalena Almeida, Miguel Graça e Pedro Caeiro).

“Decidi encomendar o texto para ver as diferenças que havia em relação ao filme, e eram muitas. Fiquei muito entusiasmado com a ideia de um dia o adaptarmos”, recorda Miguel Graça. “Quando o Miguel Loureiro foi nomeado diretor artístico do São Luiz, esta foi uma das propostas que enviamos.”

Só foi possível avançar com esse apoio do teatro. “Se não, não teríamos capacidade de fazer uma coisa com tantos custos. Não só de cenário, mas de luta cénica, de figurinos, de tudo.”

A peça estará em cena pouco mais de uma semana e esse é o lado ingrato. “Infelizmente, há uma política determinada pelo governo ou pelo Ministério da Cultura, não sei exatamente quem, que privilegia, no fundo, esta mentalidade de festival. Ou seja, há coisas a saírem constantemente, outras novas a entrarem. Cria-se a sensação de que há imensa variedade.”

Após dois meses de ensaios e de todo o processo de pré-produção que começou antes disso, Killer Joe terá sete sessões no São Luiz — e mais uma em Lagos. A partir daí, o cenário ideal seria levar o espetáculo a outros pontos do País. “Esperamos que algum produtor nos veja e tenha a capacidade de comprar o espetáculo.”

“É uma história transversal e se calhar hoje faz mais sentido do que nunca usarmos uma lente sobre estas pessoas. Logo depois das eleições ouvi o José Manuel Fernandes na rádio Observador dizer algo com que concordei em absoluto e que acho que também define isto. Nós ficamos muito espantados com os resultados das eleições, não conhecemos ninguém que vote no Chega, mas então isso talvez signifique que eu não conheça o país real, se calhar eu não conheço a realidade do Alentejo, do Algarve, etc. E, por isso mesmo, vivemos numa espécie de bolha, não é? E temos que começar a perceber que isto não é só uma coisa distante, e lá nos confins da América, isto também existe aqui.”

Miguel Graça simplifica ainda os objetivos deste projeto. “Há algo que também me chateia um bocadinho hoje em dia no teatro. Para se fazer um espetáculo, ele tem que ter um objetivo ideológico, tem que marcar uma posição, seja ela em relação à igualdade de género ou a outra coisa qualquer. Na verdade, aqui o que nos interessou aqui foi a parte artística de construir um espetáculo, de ser um grande desafio para os atores, de ser um grande desafio para mim e para toda a equipa envolvida.”

O projeto avançou sobretudo porque o texto era bom mas, curiosamente, nos ensaios foram surgindo cada vez mais paralelismos com a realidade portuguesa. “As pessoas que convivem e coabitam connosco se calhar são as mesmas. Pode estar ali a bandeira dos EUA e todas as referências, mas as motivações e as atitudes destas pessoas determinam situações que podiam perfeitamente passar-se cá.”

observador

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