Governo desiste de contar com “tribunal de impostos” para turbinar arrecadação

Ao anunciar o congelamento de despesas e aumento no IOF para cumprir as metas fiscais, a equipe econômica do governo também informou ter desistido de uma das estratégias arrecadatórias menos frutíferas da administração Lula 3: os recursos advindos dos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf, uma espécie de "tribunal de impostos".
No início do ano, em mais uma tentativa de mostrar compromisso com a meta fiscal e interesse em tapar o rombo nas contas públicas, o governo federal tinha voltado a inflar a previsão de arrecadação com os julgamentos do Carf. A prática já havia sido adotada em 2024 com as mesmas inconsistências.
Para se ter uma ideia, no ano passado, o governo Lula projetou arrecadar R$ 55 bilhões com as sentenças proferidas pelo órgão. No entanto, o valor real arrecadado foi de R$ 308 milhões – ou seja, apenas 0,55% do esperado.
Mesmo diante do fiasco na arrecadação, o governo retomou o otimismo em seguida, ainda que de forma um pouco mais comedida. Na peça orçamentária de 2025, previu que a receita advinda das decisões do Carf chegaria a R$ 28,6 bilhões.
Mas precisou voltar atrás em face da evidente discrepância entre expectativas e realidade. Durante o anúncio do pacote de congelamento, o governo zerou as projeções arrecadatórias relacionadas ao órgão.
As apostas em arrecadação de dezenas ou centenas de bilhões de reais se fiavam no retorno do chamado voto de qualidade, estabelecido pela Lei 14.689 de 2023. No entanto, como os próprios integrantes da equipe econômica esclareceram, o mecanismo acabou favorecendo a extensão da contenda, tirando-a da esfera administrativa e levando para o Judiciário.
Antes mesmo da desistência, integrantes da equipe econômica já haviam afirmado que a arrecadação por meio do órgão era improvável.
O chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias, havia reconhecido que o governo errou ao utilizar projeções superestimadas, e que o valor projetado para este ano havia utilizado a mesma metodologia como base, desenvolvida pelo próprio Carf.
Processos sobre ágio se tornaram o principal foco do CarfBoa parte do otimismo arrecadatório do governo se baseou em julgamentos relacionados ao ágio — que é o montante pago acima do valor contábil dos ativos nas negociações para compra ou reorganização societária de uma empresa, com base em expectativas futuras de lucratividade.
Em 2024, a Câmara Superior do Carf julgou 122 processos a esse respeito, 100% a mais que em 2023, quando foram proferidas 61 decisões sobre o tema. Considerando as câmaras inferiores, as turmas ordinárias, o número sobe para 172.
Legislação prevê descontos de IR e CSLL em operações de ágioA legislação brasileira permite a amortização do ágio para reduzir a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
O benefício fiscal foi introduzido pela Lei 9.532/1997 para, supostamente, incentivar grupos econômicos a adquirirem com ágio as estatais leiloadas no programa de desestatização em curso naquele momento, lembra Helder Santos, especialista em gestão tributária na Fipecafi.
Ele destaca que, até 2014, com a publicação da Lei 12.973/2014, quando foram introduzidas mudanças nas regras, não havia limitação legal para o uso do ágio em reorganizações societárias dentro de um mesmo grupo econômico.
Nova legislação restringiu ágio entre empresas do mesmo grupoAs ações sobre ágio no Carf têm por base essa nova legislação, pois, entre outras modificações, ela proibiu a amortização do ágio interno – quando é feito na negociação ou reorganização societária entre empresas do mesmo grupo.
Além disso, a nova norma passou a exigir que haja propósito negocial quando há a constituição de uma empresa-veículo – uma companhia criada especificamente para viabilizar a aquisição de outra, como ocorre com a criação de holdings para captação de investimentos internacionais, por exemplo.
Priscila Dias, advogada do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), afirma que, nos últimos anos, a Receita Federal adotou uma postura mais rigorosa em relação ao ágio interno e às empresas-veículo.
“A desconfiança se transforma em autuação quando o Fisco entende que não há um propósito negocial legítimo por trás da operação, ou seja, quando identifica que a aquisição ocorreu apenas para obtenção de benefício fiscal”, afirma.
Especialista afasta possível desalinho entre Carf e ReceitaQuestionado se a diferença entre as estimativas do governo para o Carf e o resultado dos julgamentos indica desalinho de perspectivas, Helder Santos, da Fipecafi, afirma ser improvável.
Ele avalia que os auditores agem no sentido de encontrar possíveis irregularidades na geração do ágio. E que é esperada uma avaliação rigorosa das provas apresentadas, podendo, inclusive, conduzir a uma decisão contrária àquela que motivou a oficialização da infração.
“Isso demonstra a necessidade de existência desse julgamento na esfera administrativa, reduzindo o excesso de judicialização desnecessária", avaliou. Ele ainda lembra que o Carf é composto por um número igual de representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes.
Carf adota postura cautelosaPor outro lado, Priscila Dias, do IBPT, avalia que, enquanto a Receita tende a autuar operações de ágio nas quais não identifica propósito negocial, o Carf adota postura mais cautelosa.
Segundo a advogada, o órgão reconhece que tais operações “podem possuir justificativa válida, ainda que não estejam formalizadas nos termos exigidos pela Receita”.
Além de frustrar as previsões de arrecadação, como, de fato, tem acontecido, ela alerta que as diferenças entre as perspectivas da Receita e do Carf podem, até mesmo, trazer insegurança jurídica para as empresas, que ficam expostas a autuações mesmo quando agem dentro da legalidade.
Estimativas governamentais pressionam Carf para mais arrecadaçãoPriscila Dias afirma que, obviamente, houve pressão governamental para aumentar a arrecadação via decisões do Carf, prevendo que a redução do estoque de processos pendentes no órgão levasse ao pagamento de multas.
Em 2024, o Carf julgou mais de 18 mil processos, representando aumento significativo em relação a 2023. A elevação das apostas no Carf veio das expectativas criadas com a instituição do voto de qualidade, trazido pela Lei 14.689/2023.
Segundo José Helder, a estimativa de R$ 55 bilhões em arrecadação em 2024 dependia do voto de qualidade — o desempate feito por representantes da Fazenda no Carf. Mas, na prática, o mecanismo teve o efeito contrário ao pretendido.
Voto qualitativo do Carf fez processo administrativo mais vantajosoNa visão do especialista, a legislação do voto de qualidade incentiva o contribuinte a abrir o processo administrativo e, caso a decisão não lhe seja favorável, levá-la para a Justiça.
Quando uma empresa é autuada, deve optar entre recolher o valor exigido pelo Fisco ou impugnar o auto de infração e discutir esse passivo na esfera administrativa, até chegar ao Carf. Para o pagamento da infração, é concedida uma redução de 50% da multa cobrada pelo Fisco.
Porém, a Lei 14.689/2023 estabelece que, se a decisão no Carf se der por meio do voto de qualidade, a empresa poderá pagar a dívida sem multa, parcelada em até 12 meses e, ainda, podendo utilizar prejuízos fiscais próprios ou de partes relacionadas (coligadas ou controladas) para quitar a dívida.
Além disso, caso opte por seguir com a discussão na esfera judicial, a empresa poderá ser dispensada da apresentação de garantias e terá a certidão positiva com efeitos de negativa liberada, afirma Helder Santos.
Contencioso tributário pode levar mais de dez anos para ser resolvidoO especialista ainda aponta que estudos da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) indicam um tempo médio superior a dez anos para contenciosos tributários na esfera administrativa – o que não deixa de ser um incentivo para resguardar o caixa das companhias.
De acordo com Helder, “o incentivo gerado é o de não pagar o auto de infração, discutir administrativamente e, após o voto de qualidade, avaliar se é vantajoso fazer o pagamento com todos os benefícios oferecidos ou continuar a discussão na esfera judicial, sem qualquer custo”.
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