José Neves. ‘As empresas portuguesas já desenvolvem e operam satélites’

Como é que tem evoluído o cluster?
A ideia surge em 2016 como resultado da fusão de três associações. As pessoas eram as mesmas, iam às mesmas reuniões, mas por diferentes associações, mas no final, cada vez mais se percebia que as áreas intercalavam-se, portanto, articulavam-se muito bem. Há muita simbiose. O cluster facilitou o trabalho e ganhámos dimensão. A faturação atual está em 2,1 mil milhões de euros.
A faturação conjunta?Conjunta. E as próprias empresas têm atividades na área do espaço, na aeronáutica, na marinha, com o exército. Há muito dual use de tecnologias. E isso é transversal a todas as empresas. Muitas vezes é difícil separar o que é que é defesa, aeronáutica, espaço. O que é bom.
Mas há alguma tendência de algum setor que se desenvolva mais?Os três setores desenvolveram-se muito bem, mas de formas diferentes. A partir de 2012, com o estabelecimento de duas fábricas da Embraer em Évora houve um grande investimento no desenvolvimento de etruturas aeronáuticas em Portugal. Na componente do Espaço, as empresas portuguesas já são integradoras finais. Desenvolvem e operam satélites. O espaço tem uma multiplicidade de utilizações e dinâmica. 75% das empresas do cluster trabalham nessa área. Mais de 1.500 postos de trabalho, com um forte crescimento. E tem sido um dinamizador enorme para outros segmentos de mercado. Há muita tecnologia espacial que vai para a aeronáutica e para a defesa.
E onde é que estão os grandes constrangimentos? É no financiamento? É no investimento? É na dificuldade de atrair talento?Nunca há só um fator. Em Portugal temos muito talento. Infelizmente muitas vezes sai, mas os desafios que temos tido, com a criação de projetos com maior dimensão, mais visíveis, como lançarmos satélites feitos em Portugal, faz com que as pessoas pensem duas vezes antes de ir para fora. Porque há a questão salarial mas também há os desafios que temos para a carreira. E hoje em dia temos esses desafios em Portugal.
O cluster permite uma complementaridade entre os vários setores?Esse é um dos grandes desafios: colocar as empresas, mesmo concorrentes, a trabalhar em conjunto. Nós temos projetos de espaço, como de defesa, como aeronáuticos, que são tipicamente de milhões de euros. O nosso ecossistema, e bem, é pulverizado por PME sem capacidade de investir 10, 20 ou 30 milhões de euros. Mas se trabalharem em conjunto e se associarem, têm.
As empresas são relutantes em pertencer ao cluster ou há um interesse cada vez maior em fazer parte?
Temos uma visão muito holística do ecossistema e as entidades olham para nós como agregadores. Outro grande desafio que temos é o que fazemos em Portugal e como é que o projetamos lá fora. Dentro de duas semanas vamos estar no maior setor de aeronáutica, espaço e defesa – o Paris AirShow. É a única forma de empresas médias estarem.
Não tinham outra forma…O custo do stand é caríssimo. Vamos em conjunto. Até é interessante para quem nos visita, que chega e vê Portugal a trabalhar em conjunto. Vê projetos de grande dimensão, seja um drone, seja um advanced air mobility, seja um satélite. Hoje não temos PowerPoints, temos produtos para apresentar, produtos finais.
Na questão do talento, existem parcerias que permitem às empresas recrutar talento?Temos muitas universidades, muitos centros tecnológicos integrados no cluster, o que é ótimo para essa parceria de proximidade. As empresas já conhecem os stakeholders do Sistema Científico e Tecnológico e têm-nos utilizado no desenvolvimento de atividades. As empresas têm uma orientação business, mas aqui falamos de inovação, que é o que nos distingue de todos os outros. E a inovação só vem quando nós fazemos parcerias fortes com o Sistema Científico e Tecnológico Nacional. E aqui salientar o pilar de defesa, no qual há um boom. Muitas empresas contactam para integrar o cluster porque querem trabalhar mais com as Forças Armadas.
E o PRR é um game changer?O PRR é um catalisador. Temos o projeto New Space, onde se estão a estão a desenvolver satélites em Portugal. Na aeronáutica a primeira aeronave desenvolvida e industrializada em Portugal. Temos vários drones também a ser desenvolvidos neste âmbito deste projeto. É um game changer, não só no desenvolvimento tecnológico, mas também em spinoffs que vão resultar a nível de capacidades que se estão a agregar.
O valor acrescentado é criado cá?Sim. A aeronave está a ser desenvolvida cá, industrializada cá, os drones estão a ser desenvolvidos cá, industrializados cá, os satélites estão a ser desenhados, desenvolvidos e industrializados em Portugal. O potencial de crescimento é enorme.
Porque o mercado é global?O mercado nestes setores é global. O que é ótimo, porque permite que as empresas ganhem dimensão. E depois ficam muito menos atenuadas por eventuais decisões políticas, porque estão no mercado global.
A nível europeu, quantos postos de trabalho que existe na Aeronáutica, Espaço e Defesa?Ummilhão de postos de trabalho. Diretos. Indiretos chegam aos 3 milhões. Os salários são 43% superiores a áreas como por exemplo o automóvel.
E em Portugal são?Em Portugal são cerca de 20 mil postos de trabalho diretos. Não conseguimos calcular os indiretos. Já é bastante interessante. E a crescer.
O cluster não é só tecnologia, não é só software…Temos muita diversidade. O software é uma componente muito pequena versus as estruturas aeronáuticas. E agora há a componente da produção de SAF (Combustível Sustentável para a Aviação) no setor aeronáutico, uma área de grande aposta, não só do cluster, mas também do próprio Governo. O grande impedimento de mais SAF nas aeronaves é o preço. É caro, porque há pouca produção. Há muita procura, pouca produção.
Concorda que seja interessante as próprias companhias aéreas terem a sua própria produção de SAF?O mais importante é organizarmos uma cadeia de fornecimento. E daí a importância do Governo aqui é também ajudar a indústria nesta fase inicial do ramp up, porque vai ser necessário grandes investimentos.
Como é que o recente roteiro tecnológico para a aeronáutica inova?Olhamos para as tecnologias como Advanced Air Mobility, um game changer na tecnologia que vai acontecer nos próximos anos. Temos a componente manutenção de aeronaves, em mudança de paradigma para manutenção preventiva, preditiva, com base em algoritmos de IA. E depois o pilar da sustentabilidade, com as aeronaves elétricas , híbridas, hidrogénio e outros combustíveis. Temos um plano até 2030 e os investimentos necessários do ponto de vista industrial e do sistema científico-tecnológico.
E, tendo em conta essas questões que colocou, como comenta a decisão do novo aeroporto de Lisboa?Não posso comentar a decisão. O que posso comentar é que ainda bem que temos uma decisão. Isso é que é importante para a indústria. Haver uma decisão e a indústria começar-se a posicionar em volta de uma decisão sobre o desenvolvimento dessas tecnologias. A infraestrutura do hidrogénio já é contemplada pela própria NAV neste novo aeroporto. A infraestrutura elétrica vai ter que ser contemplada. E como o aeroporto demora 6 a 8 anos, é importante que haja uma decisão, e já que houve decisão, que siga para esta decisão.
Sim, mas havendo estes combustíveis mais sustentáveis e menos poluentes…O problema é que estamos a olhar um timeframe ainda a 10, 20 anos, a 2050. O mais importante é a tomada de decisão. Não só para a localização, como também para quem é o futuro player da TAP. Se vamos caminhar para aeronaves mais limpas, Lisboa pode ter um posicionamento muito mais importante com combustíveis ecológicos. Temos de pensar nesse capítulo quando pensamos no futuro da TAP e no futuro do novo aeroporto de Lisboa. Porque vai ser provavelmente um novo aeroporto europeu que já vai ser construído nesta base, importante para que Lisboa seja central.
Jornal Sol