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Kalorama, dia 1: dançar como miúdos pop

Kalorama, dia 1: dançar como miúdos pop

Antes de mais nada, encaremos o elefante na sala: é sempre motivo de celebração ter uma banda do calibre dos Pet Shop Boys em Portugal, mas a sua atuação no palco principal neste primeiro dia do MEO Kalorama foi a segunda que o duo londrino teve no espaço de dois anos no nosso país, ainda no âmbito da mesma digressão de grandes êxitos, Dreamworld. Em 2023, vieram ao Primavera Sound no Porto; antes disso, é preciso recuar até 2010. Será caso para usar o cliché “não há fome que não dê em fartura”? Talvez, mas a pertinência de sermos brindados com um alinhamento quase idêntico e o mesmo espetáculo visual é questionável — especialmente tendo em conta que, entretanto, lançaram Nonetheless em 2024, álbum que não teve direito a qualquer canção esta noite.

Não obstante, esta é uma crítica provavelmente negligenciável dada a forma como o público — longe de apresentar-se em números avassaladores, mas enérgico — se entregou à quase hora e meia de concerto. E quem esteve no Porto há dois anos e voltou a marcar presença aqui ao menos pôde assistir a um concerto melhor, sem a frouxidão sonora que caracterizou o anterior. É verdade que as batidas pediam outra potência e que a voz de David Tennant — que nunca foi um portento — revelou-se a espaços quebradiça, mas o desfilar de êxitos que os Pet Shop Boys trouxeram é inegável e pôde aqui soar com o triunfalismo que se exige.

Falamos, afinal de contas, de uma instituição da synth pop, que fez da música despudoradamente sintetizada arte maior — e, por consequência, têm as suas impressões digitais espalhadas pelas tabelas das canções mais ouvidas, de Lady Gaga aos Disclosure. Sim, é certo que o que outrora pudesse soar futurista hoje pareça carinhosamente associada a uma determinada época, mas serão sempre conclusões precipitadas e que durante a atuação se tornam curtas. Algumas das canções não podiam soar mais a “hoje”: Vocal, a fechar, de pulsão quase techno, é uma delas; já a saudosista The Pop Kids — porventura a mais recente que tocaram — é exemplo disso: recorda o passado da banda e soa ao mesmo.

Pet Shop Boys

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

A atuação teve início com a melancolia muito própria de Suburbia, com Tennant e Chris Lowe munidos de máscaras futuristas, debaixo de dois focos de luz a imitar candeeiros, parte de um espetáculo visual formidável (ou não fosse essa uma das suas marcas). Assim se manteriam até o painel na retaguarda subir e revelar mais três elementos, dois na percussão e uma teclista, Clare Uchima, que teve um momento alto ao ter de fazer as vezes de Dusty Springfield ao cantar em dueto What Have I Done to Deserve This?

Enumerar os clássicos que a banda apresentou em palco é uma tarefa tão extenuante como infrutífera, de tantos que foram. No entanto, destaque-se a pertinência que Panimero e Rent continuam a ter (não obstante a sua aparente simplicidade), a forma como as versões de Where the Streets Have No Name (I Can’t Take My Eyes Off You) e You Were Always on My Mind puxaram pela cantoria de uma audiência que nunca parou de gingar e o puro delírio causado por Domino Dancing e It’s a Sin. O encore de West Side Girls e Being Boring não precisou de elevar os níveis de energia para um público que já estava rendido.

Feito o aquecimento, a sessão de dança de dança continuaria no Palco San Miguel. Depois de Paredes de Coura, dificilmente os L’Impératrice conseguiriam ultrapassar-se a si próprios. Enquanto protagonistas de uma das performances mais magnéticas e acarinhadas do ano passado em festivais portugueses, nunca o Parque da Bela Vista teria capacidade para se transformar no anfiteatro natural minhoto — até porque estamos na cidade, sem toda a envolvência (e magia) de um festival que nos permite escapar do quotidiano, e esta sexta-feira é dia de trabalho para muitos.

Além disso, havia outro desafio a ultrapassar por parte dos franceses. Os L’Impératrice perderam entretanto a vocalista, Flore Benguigui, que decidiu sair do grupo após uma série de divergências internas. Não sendo a peça mais importante para as composições e a música da banda, ainda assim era um elemento bem relevante pelo seu carisma nas performances.

L'Imperatrice

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

No MEO Kalorama, perante uma multidão de pessoas dispostas a dançar mas sem o ânimo de festival remoto de verão, os L’Impératrice fizeram o que puderam, apostando nos seus trunfos mais fortes. Eles são herdeiros do French Touch, a música eletrónica francesa funky e bem-disposta, com linhas de baixo sedutoras e batidas irresistíveis. Ao vivo, conseguem dar corpo a isso com um virtuosismo especial, já que são uma autêntica orquestra de música de dança.

Em palco, os multi instrumentistas vão trocando entre si guitarras, baixos e sintetizadores, conferindo uma dinâmica excecional ao concerto. Posicionados de forma majestosa, com o baterista em cima de uma estrutura reluzente com os teclados a sair de lado, apareceram envoltos em muitas luzes — e os próprios empunhavam uma ao peito, que ia mudando de cor conforme os temas.

A nova vocalista, Maud “Louve” Ferron, pode ainda estar verde mas conseguiu cumprir o seu papel enquanto frontwoman, incentivando o público — e, afinal, a voz não é de todo o elemento mais determinante na música dos L’Impératrice, onde reinam os grooves e os ritmos. Música dançável de tão contagiante, que curiosamente até teve um dos seus momentos mais altos com a única canção lançada nesta nova fase do grupo, Entropia, revelada este ano e que poderá ser um ótimo prenúncio para o futuro do coletivo. Desafio superado, mesmo que a missão de ultrapassar a glória de 2024 fosse verdadeiramente impossível.

Reflexões em línguas mortas e legados iranianos

“Será que o tempo faz de nós tolos?” A questão estava na boca de Josh Tillman quando voltou a encarnar Father John Misty no seu regresso a Portugal. É verdade que o norte-americano já não inspira o mesmo tipo de dedicação canina de quando apareceu como a nova grande cara do cançonetismo indie — e talvez isso de reflita na posição no alinhamento, ao fim da tarde — mas nunca deixou de saber dar um bom concerto, como bem demonstrou.

Tillman esteve há relativamente pouco tempo no nosso país — tocou em 2023 no Meco —, mas entre estes dois anos aconteceu algo: aconteceu Mahashmashana, o seu sexto disco, celebrado como uma espécie de regresso e cuja denominação, em sânscrito, significa “grande terreno de cremação”. Se tal termo sugere introspeção, não é por acaso. O que vimos no palco Kalorama foi um artista mais maduro e menos badalado, parco em interação com público, mas mantendo aquele jeito debonair de mestre de cerimónias que não precisa de muito mais do que um ligeiro abanar de ancas e deixando as letras — carregadas de observações, ora sarcásticas, ora introspetivas — falar por si.

Father John Misty

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Encaixando no alinhamento como os fatos feitos à sua medida, a qualidade dos temas novos compensou um concerto que pecou por curto e com muitos “êxitos” — se é que há “êxitos” no universo indie — de fora, como Holy Shit, Chateau Lobby #4 ou I’m Writing a Novel. I Guess Time Just Makes Fools of Us All, com um arranque meio lounge, transforma-se num portento de funk, ao passo que She Cleans Up mostrou um balanço rock como há muito não lhe víamos. Screamland, com um arranjo mais orquestral e de refrão dramático carregado em reverb, serviu como uma espécie de elemento central do concerto, e a faixa-titulo é um monumento que figura entre as melhores que já escreveu.

O que fica deste concerto é que, onde o seu trovadorismo podia soar oco e carregado de um misto de pretensão e honestidade (uma fronteira porosa que sempre soube conservar) há uma década, quando despontou aos olhos do grande público com I Love You, Honeybear, hoje, numa era de caos e incerteza o par de letras dessa canção que fechou o concerto — “Everything is doomed / And nothing will be spared” e “But everything is fine / Don’t give into despair / ‘Cause I love you, honeybear” — bate especialmente em 2025. O tempo pode fazer de todos nós tolos, mas não é desta que Father John Misty virou uma piada cansada.

Noutro tipo de reflexividade, esta mais física, as atenções voltaram a virar-se para o Palco San Miguel assim que Sevdaliza apareceu de rompante. Natural do Irão, mas criada nos Países Baixos, a artista de 37 anos fez uma atuação explosiva à sua imagem. Alta e de longos cabelos negros, Sevdaliza é uma figura sedutora e empoderadora com uma atitude descomplexada. “Portugal tem um lugar muito especial no meu coração”, disse a cantora que ainda no ano passado esteve no Sónar Lisboa e que mantém uma ligação sólida com o português, tendo já gravado temas em português, sobretudo pela relação que construiu com os fãs brasileiros.

Sevdaliza

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Não há que enganar: esta é uma música agitada e intensa, que transforma a angústia em combustível, como se pode ver pelas muitas palavras que passam atrás no ecrã — “raiva”, “as raparigas estão zangadas”, “feita na dor” — intercaladas com imagens de armas, explosões, o reboliço da cidade, as conturbações da vida moderna. As luzes complementam o quadro: um espetáculo não aconselhável aos mais sensíveis, mas que ajudaram a tornar o palco secundário do MEO Kalorama numa vibrante pista de dança. Embora com raízes no Irão, e das bandeiras da Palestina que se avistaram na plateia, não houve qualquer menção à guerra que está a acontecer no Médio Oriente.

Com uma performance atraente e sem nunca parar de dançar, Sevdaliza prova a sua eficácia a conquistar o público. Mas a sua música pop de vanguarda, cada vez mais eletrónica à medida que o concerto avança, parece tentar ir a demasiados sítios, o que por contraste acaba por a tornar algo genérica — o piscar de olhos ao funk brasileiro, ao reggaeton e a diferentes sonoridades da música eletrónica, desde uma batida das profundezas do techno a uma estética mais leve que parece saída da Eurovisão.

Acompanhada por bateria, teclados e uma bailarina, Sevdaliza esteve a antecipar o seu terceiro álbum de originais, Heroina, que deve chegar em breve — Messiah, Eternity e Stripper foram canções apresentadas em primeira mão ao público português e que também serviram certamente para a apresentar pela primeira vez a muitos dos festivaleiros.

Relações de proximidade

“Obrigado por estarem aqui com este calor, amigos, enquanto estiverem aqui eu não tiro o casaco”, afirmou David Bruno perante a temperatura inclemente que se fazia sentir durante a tarde à frente do palco Kalorama. Mas “quando o tirar, nunca mais se vão esquecer”. Foi o que aconteceu antes de cantar Bebe e Dorme, mostrando que, no forro interior, estava uma imagem da Capela do Senhor da Pedra em Gulpilhares, “onde a Nicole Scherzinger foi pedida em casamento”.

David Bruno

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Se tudo isto lhe parece esquisito, é porque nunca viu um concerto do rapper e produtor ao vivo. Não se espera virtuosismo numa das suas atuações, a não ser nos leads de guitarra de Marco Duarte, carinhosamente conhecido por Marquito, mas sim um carisma natural e um humor desarmante, capaz de deixar muitos comediantes com inveja — “cada vez que vou fazer uma alheira, eu sigo o tutorial dele”, comenta, quanto a Isaltino Morais. A coroar tudo isto, conta com um hypeman de excelência, António Bandeiras, o “Robert de Niro de Caxinas”, que puxa pelo público de formas que julgámos inimagináveis, desde comer uma banana, dançar a Macarena e atirar rosas do palco até rasgar as calças para ficar com um híbrido saia-calções e mandar as sobras para o público.

A fórmula tem sido mais ou menos a mesma desde a estreia a solo — é um dos elementos do Conjunto Corona — com O Último Tango em Mafamude, em 2018: beats lânguidos, melodias delicodoces a roçar o azeiteiro e explorações das ideossincracias regionais deste nosso belo país, nas suas vertentes mais sui-generis. Ao vivo, no entanto, é que tudo se transfigura. Veja-se, por exemplo, quando chega munido de uma travessa de inox, a mesma que usa para apresentar Mesa para Dois no Carpa e pedir para que os influencers “deixem os tascos em paz”: “quem é que pede um giveaway onde servem diárias?”, indaga.

Ao contrário do que aconteceu uma semana antes, no Primavera Sound, não pôde contar com Rui Reininho para cantar consigo Tema de Sequeira, mas voltou a recrutar Presto, dos Mind da Gap, para 10 em 10, e Mike El Nite para Interveniente Acidental e Inatel, esta última abrilhantada com o facto dos dois terem ido cantar para o meio do público. No final, depois de belos momentos de cumplicidade com os poucos que enfrentaram “temperaturas lixadas [não foi esta a palavra]” para estar consigo, deixou o mote: “Tenham orgulho na vossa portugalidade, sem desprezar os outros”.

Cara de Espelho

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Se essa é uma característica mensurável, os Cara de Espelho transpiram-na. Um ano volvido, a banda continua na estrada a apresentar o seu álbum de estreia homónimo. Vestidos de negro, com exceção para a vocalista Mitó que ostentava um vestido vermelho, em palco provam que o título de super-banda não é exagero. Afinal, foi com esse estatuto que apareceram em cena ao reunirem no mesmo grupo Pedro da Silva Martins (Deolinda), o irmão Luís J. Martins (também dos Deolinda), Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa), Sérgio Nascimento (Humanos, David Fonseca e Sérgio Godinho), Mitó (A Naifa) e Nuno Prata (Ornatos Violeta).

“Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir”, começou por enunciar Mitó na sua voz límpida e irrepreensível, sem uma única sílaba fora de sítio ao longo da hora de concerto. Esta é uma música sofisticada, sobretudo composta por Pedro da Silva Martins mas com os arranjos soberbos de toda a banda. Não há como não destacar as proezas de Carlos Guerreiro, inventivo construtor de uma série de instrumentos musicais, colocados sobre uma mesa, que vão sendo manuseados pelo espetáculo fora. Evocam um lado popular, uma aura mística entranhada nas gaitas de foles ou nas flautas, quase ao nível do pagão.

As letras, provocadoras, refletem a sociedade contemporânea mas sobretudo o momento deste jardim à beira-mar plantado. São inteligentes, criativas, elevadas mas com humor. Metem o dedo na ferida com classe, são politizadas mas com uma subtileza elegante, e canções como Paraíso Fiscal, Fadistão, Dr. Coisinho ou os novos singles — já deste ano — Elefante no Hemiciclo e O Que Esta Gente Quer foram precisamente das mais aplaudidas. Música indispensável de gente como a gente e que tão bem reflete este tempo.

Elogio da Loucura

Num dia em que não se registou propriamente uma enchente — o Observador pediu números oficiais à organização, não os tendo recebido antes da publicação deste artigo — os The Flaming Lips poderiam ter sido sentido desmotivação ao ver o número de pessoas a abandonar o recinto depois do concerto de L’Impératrice. Atente-se, porém, no tempo verbal — isso não só não aconteceu porque, francamente, desconfiamos que Wayne Coyne e companhia contentar-se-iam a tocar para cinco pessoas, como houve um grupo ainda jeitoso de indefetíveis para quem o melhor estava reservado para o fim.

O Observador esteve em reportagem no MEO Kalorama. Flaming Lips atuou no Palco Meo., Lisboa, 19 de Junho 2025, ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR,

The Flaming Lips

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Uma das grandes instituições do rock psicadélico pós-anos 60, a banda liderada por Coyne está em digressão a tocar um dos seus mais celebrados álbuns, Yoshimi Battles the Pink Robots, na sua inteireza. No entanto, ao contrário de outras datas, os The Flaming Lips só tiveram tempo aqui para tocar exclusivamente as 11 canções desse disco, pelo que o tempo urgia. All We Have Is Now, um dos últimos temas tocados, selou esse mantra num dos momentos mais bonitos de comunhão de todo o dia, banda e público cantando em uníssono.

“Come on, come on, keep going”, foram as palavras mais repetidas pelo vocalista e líder ao longo de todo o concerto, algo que poderia parecer inseguro ou presunçoso se não fosse fruto da sua atitude tresloucada de estar sempre a puxar pelo público, que respondeu em conformidade. Essa saudável loucura, de resto, estava plasmada não só nos visuais berrantes que surgiam em palco, como nos insufláveis de robôs cor de rosa que se encheram em palco ou um balão gigante que dizia “Fuck Yeah Kalorama Lisbon”.

Se a parte 1 de Yoshimi Battles the Pink Robots inspirou saltos de alegria e genuína trepidação, Ego Tripping at the Gates of Hell, por exemplo, convidou a um momento mais contemplativo. Trompetes, demonstrações virtuosísticas de baixo, slide guitar e até batidas inspiradas em rap coroaram um concerto que teve tanto de bizarro como de revelador de como o rock é um mundo para lá de três acordes encadeados. Depois de revelar que tinham tido problemas na viagem e que arriscaram-se a perder o voo, Wayne Coyne deixou esta promessa: “Esperamos tocar 100 vezes mais no vosso festival”. Esperamos nós também.

observador

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