O desagravamento de IRS de que o país precisa

A reforma do IRS deve torná-lo mais competitivo na UE, mais justo socialmente e mais eficaz na valorização do trabalho e no aumento da produtividade.
Se a proposta de descida transversal do IRC do governo da AD gerou muita discussão no último Orçamento de Estado, o desagravamento do IRS tem sido um tema mais consensual nos últimos anos, com algumas nuances que recordo, mas falta fazer um ponto de situação a esse nível, que aqui apresento.
Antes desse ponto de situação, relembro que o tema do desagravamento do IRS ‘aqueceu’ o início da anterior governação da AD devido à ‘paternidade’ da descida em 2024, num ‘concurso de popularidade’ que se deveu à perspetiva de que, a qualquer momento, poderia haver novas eleições antecipadas, como veio a suceder (embora não por rejeição do Orçamento de Estado, mas por um caso exógeno).
Não vou voltar a maçar os leitores com os números. Mas, apesar do PS ter, de facto, decidido uma parte relevante da descida de IRS em 2024 no Orçamento de Estado desse ano (antes da dissolução do último governo de António Costa) – reforçada depois em 2024 pelo governo AD, embora o Parlamento tenha aprovado uma configuração diferente da que pretendia –, a verdade é que tal aconteceu porque o então governo de PS igualou a sua proposta à mais generosa que o PSD, então na oposição, levou ao Parlamento, o que é fácil de comprovar pela descida substancialmente inferior que o PS tinha inscrito no Programa de Estabilidade de abril de 2024. Juntando o reforço de baixa de IRS por iniciativa da AD, enquanto governo, ao que o PSD na oposição ‘forçou’ o PS a adicionar à sua previsão inicial, chega-se à conclusão que, efetivamente, o PSD/AD foi o maior responsável, de forma direta e indireta, pela relevante descida de IRS em 2024.
Em 2025 volta a haver um desagravamento, desta vez devido, sobretudo, ao entendimento a que chegaram AD e PS quanto ao novo modelo mais generoso de IRS Jovem – do qual discordo, preferindo um modelo unificado de retenção e atração de talento, a que regresso mais abaixo –, que passou a abranger também jovens sem o 12º ano de escolaridade. Esta alteração é um erro, pois desincentiva as qualificações e faz da escolaridade mínima ‘letra morta’, promovendo o abandono escolar precoce, como já tive oportunidade de salientar. A injustiça de base permanece, pois, o benefício só é acessível a quem tenha menos de 35 anos, o que gera injustiças, e o custo da medida aumentou muito, sendo muito duvidoso o efeito na retenção de talento jovem.
No programa da AD que ganhou as eleições de 2025 está a continuação do desagravamento geral do IRS. O PS, que antes seguia a mesma orientação de baixa do IRS, abandonou a medida e passou a focar-se antes na redução do IVA, sobretudo em bens alimentares básicos – que também beneficia as famílias de maiores rendimentos –, o que foi um erro, a meu ver, contribuindo para o desaire eleitoral dos socialistas.
Passo agora ao ponto de situação do desagravamento do IRS ao nível das taxas marginais gerais – a situação dos jovens até aos 35 anos teria de ser vista à luz do novo IRS Jovem, que não vou analisar –, que tem como justificação o nível elevado em que ainda se encontram, o que não tem sido bem explicado.
A tabela mostra que, apesar da redução de taxas de IRS nos anos mais recentes, uma boa parte das taxas marginais em 2025 (sobre os rendimentos de 2024) está ainda acima das que se verificavam em 2010 (sobre os rendimentos de 2019), antes do “grande aumento” absolutamente necessário durante o programa de ajustamento da Troika de credores – que impediu a bancarrota do país –, com realce para as que estão acima do 6º escalão de rendimento coletável.
Taxas marginais de IRS aplicáveis em 2010 e em 2025 e escalões comparáveis
Fonte: Ministério das Finanças e Pordata. OE = Orçamento de Estado. Notas: o IRS total a pagar resulta da média ponderada dos intervalos dos vários escalões pelas taxas marginais de imposto até ao rendimento coletável de cada um. * Escalões comparáveis, aplicando a inflação entre 2009 e 2024 medida pelo IPC (30,9% =121,13/92,57-1= IPC2024/IPC2009-1) – tal representa um cenário hipotético sem alterações na tabela de IRS, mantendo as taxas marginais e atualizando os escalões pela inflação.
Para tornar os escalões comparáveis, na tabela assinalo entre parêntesis os escalões de 2010 atualizados pela inflação entre 2009 e 2024 (ver notas da tabela). Tal traduz uma situação hipotética sem alteração da tabela de IRS, com as mesmas taxas marginais e os escalões ajustados para evitar a perda de poder de compra, de modo a comparar com a situação em 2025, evidenciando o efeito das alterações desde então.
A taxa mais baixa de 10,5% do primeiro escalão ajustado de 2010 (abrangendo os primeiros 6.722 euros de rendimento coletável, após ajustamento pela inflação, ou 4.793 euros na tabela original) já não existe em 2025 – o 1º escalão atual (até 8.059 euros) começa agora em 13,0%, que era a taxa do 2º escalão em 2010 (6.722 a 9.487 euros após ajustamento pela inflação). Contudo, essa alteração acaba por ter pouco significado no cálculo do imposto, por se aplicar a um valor relativamente pequeno de rendimento.
O desagravamento recente tem-se focado em taxas intermédias abaixo do atual 6º escalão.
As taxas dos atuais 3º, 4º e 5º escalões, entre 12.160 e 28.400 euros, com valores de 22,0%, 25,0% e 32,0%, respetivamente – são agora inferiores em escalões comparáveis (o 3º e o 4º em 2010, entre 9.487 e 54.106 euros ajustados, com taxas de 24,5% e 35,5%), após vários desdobramentos de escalões e aplicação de taxas inferiores em anos recentes.
A taxa do atual 6º escalão, aplicável a rendimentos entre 28.400 a 41.629, é a mesma (35,5%) de 2010 para rendimentos comparáveis (entre 23.526 e 54.106 euros).
Os escalões superiores, que sofreram agravamentos muito acentuados desde 2010, não foram abrangidos e continuam a ser fortemente penalizados, dificultando a retenção de talento, o que AD e PS tentaram compensar com o referido IRS Jovem, mas que não abrange pessoas acima de 35 anos e apenas introduz mais injustiça e complexidade no sistema – que devia, pelo contrário, ser simplificado.
É o que proponho com o regime unificado de retenção e atração de talento IRS Novo Talento – substituindo os regimes especiais do IRS Jovem (até aos 35 anos), o IFICI+ (para imigrantes qualificados), e o Programa regressar (para emigrantes), que não são acessíveis a todos –, uma dedução de IRS sobre rendimentos do trabalho aplicável nos anos seguintes a novas formações superiores, funcionando como um incentivo a novas qualificações para todos no ativo. Ficaria acessível aos jovens, os mais beneficiados (pela maior propensão à formação superior), mas também às gerações anteriores no ativo – relativamente pouco qualificadas face à UE, tanto trabalhadores como empregadores, incentivando a aquisição de novas competências e o aumento da produtividade –, emigrantes (regressados) e imigrantes.
Prosseguindo a análise da tabela, os rendimentos coletáveis do atual 7º escalão, entre 41.629 e 44.987 euros, são hoje tributados a 43,5% – que compara com 35,5% em 2010 (no 4º escalão ajustado de 23.526 a 54.106 euros) –, enquanto os do atual 8º escalão (44.987 a 83.696 euros) o são a 45,0% e os do 9º escalão (mais de 83.696 euros) a 48,0%, quando antes o eram a 35,5% 37,0%, 40,0% e 42,0% (os quatro últimos escalões em 2010), considerando as porções comparáveis de rendimento.
Chamo a atenção que os rendimentos do 7º escalão e mesmo os dos início do 8º escalão, que em Portugal são considerados elevados pelos nossos governos, estão na média ou pouco acima da média no contexto da UE, onde se movem, cada vez mais os nosso trabalhadores – sobretudo os mais qualificados, mesmo aqueles acima de 35 anos, não abrangidos pelo IRS Jovem –, penalizando a retenção e atração de talento para quem não seja abrangido pelos atuais regimes especiais do IRS Jovem, IFICI+ e programa Regressar, que criam complexidade e injustiça.
Após algumas simulações, verifico que, a partir de 44 mil euros de rendimento coletável, que é sensivelmente o valor médio na União Europeia (UE) em 2024 – em linha com o final do nosso 7º escalão e início do 8º – para o referencial habitual (solteiro sem filhos), a tabela de 2025 gera valores de imposto superiores aos da tabela de 2010 ajustada e com um diferencial crescente. Abaixo desse limiar, a tabela de 2025 produz níveis de imposto inferiores, mas a diferença é pequena em termos absolutos.
Ou seja, o desagravamento fiscal dos últimos anos já contrariou os aumentos durante o período da Troika, mas apenas para rendimentos inferiores à média europeia. Contudo, numa perspetiva de competitividade fiscal, não tenho grandes dúvidas que Portugal deverá continuar a desagravar o IRS nos vários escalões.
Tal exigiria uma análise comparativa na UE que não cabe neste artigo, focado numa evolução temporal das nossas tabelas de IRS. Da última vez que analisei os dados a nível europeu, Portugal tinha dos maiores níveis de esforço fiscal da UE no IRS para pontos comparáveis da distribuição de rendimentos (com os dados disponíveis). Creio que tal continuará a suceder, mas teria de confirmar.
Chamo ainda atenção que essa análise é feita com o imposto final pago, incluindo o efeito das deduções à coleta (nomeadamente, a associada ao IRS Jovem), sendo, por isso, mais completa do que a análise temporal das taxas de imposto que aqui trago, um exercício antes da aplicação dessas deduções.
Concluindo a análise da tabela, para rendimentos acima de 80 mil euros, há ainda a ter em conta a taxa adicional de solidariedade, que ‘atira’ a taxa marginal para 47,5% entre 80.000 e 83.696, 50,5% entre 83.696 e 250.000 euros e 53,0% acima desse limiar. Faço notar que o Tribunal Constitucional da Alemanha considera que taxas marginais efetivas acima de 50% podem configurar confisco, no sentido em que a tributação não deve anular a substância do rendimento.
Gostaria de ver uma análise semelhante do nosso Tribunal Constitucional nesta matéria ou, preferivelmente, a proibição de confisco na revisão constitucional que Luís Montenegro resolveu adiar mal foi indigitado Primeiro-ministro, começando, a este nível, mal o novo mandato.
Se é certo que a progressividade do IRS é um preceito constitucional que deve ser mantido para preservar a redução de desigualdades, não é menos certo que um IRS demasiado progressivo e com taxas marginais excessivamente altas nos escalões superiores constitui um claro desincentivo ao esforço e retenção e atração de talento, penalizando a produtividade.
Deveria haver um equilíbrio que se perdeu, a meu ver, pois temos hoje taxas marginais mais elevadas do que há 15 anos a começar em níveis de rendimento que são médios no contexto europeu, como referido – e podendo mesmo ser consideradas confiscatórias (acima de 50%) nos escalões de rendimento mais altos –, contrariando a tendência de desagravamento generalizado que ocorreu na UE.
Deixo mais algumas notas que também me parecem relevante e que emanam da tabela analisada.
Portugal precisa de atrair grandes empresas, como tenho escrito, e a derrama estadual de IRC progressiva, sem paralelo na Europa, deve ser eliminada para conseguirmos atrair investimento estruturante. Acrescento agora, após esta análise, que também não conseguiremos atrair os gestores de topo dessas grandes empresas, pois necessariamente ganham valores em que se aplica o adicional de solidariedade e não quererão vir para um país com taxas marginais, que se podem considerar confiscatórias, aplicadas a uma boa parte do seu rendimento coletável.
Por último, chamo a atenção que, após vários desdobramentos de escalões intermédios na nossa tabela de IRS, o seu número foi aumentando, atingindo um total de 9 na tabela geral, mas que passa a 11 contando com os dois escalões separados da taxa adicional de solidariedade, para rendimentos acima de 80 mil euros. Penso que é mesmo o maior número de escalões a nível europeu, colocando-nos como um dos países com maior progressividade formal. A existência de muitos escalões pode favorecer uma maior justiça redistributiva, mas as desvantagens são mais, a meu ver, como:
(i) Um desincentivo ao esforço, pois o rendimento adicional resulta num aumento líquido pequeno, além de que subir de escalão acarreta pagar mais imposto, desincentivando as progressões salariais;
(ii) Uma maior complexidade administrativa (para contribuintes, empresas e Administração tributária);
(iii) O favorecimento de alterações frequentes com fins políticos, criando incerteza fiscal;
(iv) Originar um maior número de ‘saltos de escalão’ e distinções arbitrárias entre rendimentos muito próximos com tratamento fiscal diferenciado.
A grande maioria dos países europeus opta por até 6 escalões e taxas marginais máximas claramente inferiores a 50%, pelo que o novo governo da AD deveria procurar seguir as melhores práticas no nosso sistema fiscal, isto se estiver mesmo interessado em o reformar.
Conclusão
O desagravamento do IRS não deve ser apenas um instrumento de alívio pontual da carga fiscal, mas uma peça central de uma verdadeira reforma do sistema tributário que promova justiça, simplicidade, transparência, e competitividade – via valorização do trabalho, das qualificações e do esforço em geral.
A análise aqui conduzida mostra que o desagravamento fiscal dos últimos anos já contrariou os aumentos durante o período da Troika, mas apenas para rendimentos inferiores à média europeia, na ordem dos 44 mil euros de rendimento coletável anual. Numa perspetiva de competitividade e esforço fiscal, tenho como certo que Portugal continua a precisar de desagravar o IRS nos vários escalões, mas tal exigiria uma análise atualizada no contexto da UE, que não cabe neste artigo.
Mesmo sem esse comparativo europeu, o que aqui mostro claramente é que Portugal mantém taxas marginais elevadas, que ficaram fora das medidas de desagravamentos dos últimos anos, a partir de um rendimento coletável médio na UE, alinhado com o final do nosso 7º escalão e início do 8º.
Considerando a taxa adicional de solidariedade, as taxas de imposto dos últimos escalões atingem mesmo valores acima de 50% – que o Tribunal Constitucional alemão considera confiscatório – e o número total de escalões sobe para 11 (o maior na UE), tornando o nosso sistema de IRS muito progressivo.
A elevada progressividade desincentiva o esforço, a qualificação, a progressão na carreira e a permanência de talento no país – problemas agravados por uma excessiva complexidade, escalões demasiado numerosos e regimes especiais sobrepostos e injustos.
Concluo que é preciso prosseguir a trajetória de desagravamento do IRS – de forma estrutural, programada e quantificada, após uma análise da competitividade e esforço fiscal de IRS face à UE –, com foco na redução de taxas marginais excessivas, em particular nos escalões superiores, e do número de escalões. Mesmo que se baixe a derrama estadual para atrair grandes empresas, como se atraem gestores de topo com taxas de IRS marginais máximas acima de 50%?
A revisão de benefícios fiscais deverá também fazer parte da reforma fiscal de IRS (e do sistema fiscal com um todo), incluindo a criação de um regime unificado de retenção e atração de talento, como o IRS Novo Talento que defendo, substituindo os vários regimes especiais nessa área, nomeadamente o IRS Jovem – cujo efeito não analiso aqui em termos quantitativos, mas relembro que gera injustiças (deixa de fora pessoas com mais de 35 anos) e um desincentivo às qualificações (incluindo o término da escolaridade mínima), já para não falar de um elevado custo e um impacto duvidoso na retenção do talento jovem.
Em suma, a reforma do IRS deve torná-lo mais competitivo na UE, mais justo socialmente e mais eficaz na valorização do trabalho e no aumento da produtividade.
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