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O mundo depois de Brian Wilson

O mundo depois de Brian Wilson

Fez exatamente nove anos esta semana que peguei no que restava das minhas modestas economias e me dirigi para o Porto arremetido de amor, antes que fosse tarde – não, não é o amor de conotações românticas ou sexuais, que habitualmente atribuímos ao termos, não fui atrás de nenhuma tripeira que se recusava a ceder aos meus encantos. Fui, antes, ver o homem cuja música mais amei e dizer-lhe obrigado antes que fosse tarde demais: Brian Wilson, o eterno líder dos Beach Boys, tocava no Primavera Sound e algo me dizia que aquela seria a última oportunidade para o ver.

A maior parte das pessoas que conheço descreve o concerto como uma epifania – e eu lamento, mais ainda na hora da morte de Brian Wilson, talvez o único génio da pop da segunda metade do século XX – mas não partilhei o sentimento: achei que o som que a banda que o acompanhava produzia ficava a milhas do que eu conhecia dos discos, enquanto a voz de Brian mal se ouvia, tão frágil que ele estava, isto quando não entrava no momento errado ou se esquecia de cantar.

Não me quero substituir a ninguém, mas julgo que nem uma alma ali ouviu o concerto que tinha do palco – ouviu as canções imaculadas como nos discos ou ouviu com o filtro da gratidão; e foi isso que mais me comoveu: eu vinha agradecer ao homem que me ensinou a amar o rapazinho frágil que eu fora e a vida obrigou a arrumar num canto esquecido da mente – e de repente deparei com uma colina de devotos expectantes por uma missa onde a palavra do Senhor era irrelevante: bastava ele estar ali para podermos sentir que um dia, por umas horas, partilhámos a mesma latitude e longitude.

Morreu Brian Wilson, fundador dos The Beach Boys, mestre da arte da canção. Tinha 82 anos

A idade é terrível – nos dias que correm eu mal me recordo do que almocei ontem e tenho de apontar tudo para não falhar; se calhar a banda era ótima e Wilson cansou na perfeição, disso não me recordo com tanta precisão. Mas sei exatamente o momento em que me tornei devoto dele. Tinha acabado de ler um texto de Fernando Magalhães sobre a reedição de Pet Sounds, dirigi-me a uma loja de discos como que a caminhar em nuvens de açúcar, tamanho era o amor que o Fernando debitara pela obra no seu texto, comprei a reedição, cheguei a casa, pus o primeiro CD na aparelhagem e, santo Deus, não há palavras para descrever a convulsão emocional e o mar de lágrimas que derramei nas horas seguintes, nos meses seguintes, nos anos seguintes.

O meu amor pelos Beach Boys é de tal monta que passei a dizer mal dos Beatles só porque nunca ninguém se cala com os Beatles e nunca ninguém fala dos Beach Boys, muito menos nos termos que se fala dos Beatles: inovadores, sofisticados, criadores da música do futuro. Para a minha geração, os Beach Bpys eram Barbara Ann e Surfin’ USA, uns velhadas que um dia fizeram música sobre surf e raparigas. Não havia nada de sofisticado neles – não mostravam o futuro, eram um passado vagamente (como se diz hoje) cringe.

Mas não foi isso que saiu das colunas da minha aparelhagem: o que atingiu os meus ouvidos foram as mais arrepiantes melodias, rodeadas das mais extraordinárias e complexas harmonias, vozes tão puras que se assemelhavam a anjos que viessem pegar-nos pela mão e conduzir-nos a um lugar que desconhecíamos: um lugar onde a tristeza, o sentido de inferioridade, o amor não correspondido, a procura da inocência, a vulnerabilidade eram possíveis mas estranhamente a dor que causavam, as lágrimas que provocavam, traziam um estranho conforto. Como se aquela música fosse uma espécie de líquido amniótico em que podíamos baixar a guarda e simplesmente sentir.

Outros obituários oferecer-vos-ão mais detalhes e factos, eu prefiro ir direto ao assunto: Brian Wilson foi um miúdo abusado (violenta e emocionalmente) pelo seu pai e, por acaso, tinha jeito para a música. Os Beach Boys capitalizaram esse talento inicialmente através de canções surf que eram, sobretudo, imitações de outras canções (ou um plágio adocicado quase ipsis verbis de Chuck Berry), mas isso não era suficiente para Brian, para quem o espartilho da música surf e a obrigação de criar hits eram obstáculos à sua demanda: a procura obsessiva de dar vazão à música que ouvia dentro da sua cabeça.

Um dia Brian estava a conduzir e ouviu algo a sair do rádio do carro que o obrigou a parar o veículo e chorar de alegria e confusão: era Be my baby, das Ronettes, a segunda melhor canção de sempre, produzida por Phil Spector. O que o deixou estonteado foi a grandeza do som, o detalhe, a forma como umas castanholas se ouviam com a força e a precisão de um timbalão, como debaixo daquela rajada sónica surgiam as mais puras vozes conduzindo uma melodia desesperada ao lugar da mais alta beleza.

Se alguma vez viram um documentário sobre Pet Sounds ou ouviram as reedições que reúnem os inúmeros takes necessários para criar o disco, sabem que foi isso que Brian Wilson fez: Pet Sounds não é o som de uma banda adolescente a criar hits – é o som de uma orquestra de 40 e tais músicos a procurarem alcançar, através da repetição obsessiva, o som na cabeça de Wilson – um som em que melodias extraordinárias se combinavam com harmonias de vozes e orquestração complexa para criar a mais dolorosa obra pop sobre o mais doloroso dos temas pop: estamos a crescer, vamos perder a inocência, não tivemos o amor que precisámos, não sabemos dá-lo e tudo isso vem lá de trás, de um sítio onde é tão difícil aceder e onde, no lugar de uma palmada, devia estar um abraço de pai.

O que aparenta ser uma obra de melodias bonitas torna-se quase enlouquecedor quando percebemos o desespero de Brian: em Caroline, No ele canta explicitamente sobre o fim da inocência, em Wouldn’t it be nice ele fala sobre o amor por uma mulher de uma forma que já não é possível, quase infantil, quase só ternura tornada música – e ternura seria a palavra indicada para descrever Don’t Talk (Put Your Head on My Shoulder) se a palavra não parecesse escassa. I know there’s an answer revela a sua procura por saídas para o seu labirinto emocional, e God only knows é a canção mais perfeita alguma vez escrita, porque diz de forma simples aquilo que sentimentos de forma complexa.

É tão imaculada que me apetece repetir cada linha. Abre assim:

“I may not always love you But long as there are stars above you You never need to doubt it I’ll make you so sure about it

God only knows what I’d be without you”

É espantoso o que acontece aqui: uma canção de amor que abre com uma declaração de falha (“nem sempre consigo amar-te”) e que acaba com uma espécie de promessa que não consegue ser mais que uma manifestação de impotência: “Só Deus sabe o que seria de mim sem ti”.

E continua na mesma toada:

“If you should ever leave me Though life would still go on, believe me The world could show nothing to me So what good would living do me God only knows what I’d be without you”

E de novo é espantoso o quão sofisticado tudo isto é: aqui temos um homem que sabe que o mundo continuaria se ela o deixasse, é o que o que é, a vida é assim – mas assim sendo, de que valeria continuar a viver?

Wilson encontrou na música o amor puro, que nunca arreda pé, que acredita em si mesmo e que acredita que talvez o amor tudo salve. Wilson colocou na sua música que fez todo o amor, toda a beleza que lhe roubaram na idade em que não se nega nunca amor: a infância. E o que ele cria com estas melodias em ascensão, com estas harmonias complexas, é uma beleza de tal modo asfixiante que parece que deixámos este mundo e voltámos ao mais benigno dos úteros.

Pet Sounds correu mal em termos de vendas, e a entre a pressão da editora (e da própria banda), demasiadas drogas e a sua já frágil saúde mental, associada à sua obsessão com levar a música pop onde nunca tinha ido, ele quebrou – Smile, o disco seguinte, só foi acabado dezenas de anos depois (e por colaboradores, não por ele); em seu lugar saiu Smiley Smile, que mantém algumas das gravações iniciais de Smile e junta canções do resto da banda. É um belo disco – como aliás são todos até Surf’s Up (de 1971, um discaço).

Mas o mundo mudou, o verão do amor acabou em guerras e morte, os Beach Bpys passaram a ser vistos como um anacronismo mesmo que os discos fossem ótimos, e a saúde mental de Brian deteriorou-se ao ponto da sua vida ser durante décadas dominada por um psiquiatra que pouco faltou para lhe roubar a roupa do corpo.

Houve semi-recuperações, ocasionais discos a solo, aquela digressão que passou pelo Porto mas pouco importa: o que Wilson tinha a fazer estava feito, a começar em Pet Sounds, de 1966, e a acabar em Surf’s Up. Brian Wilson, um tipo que cresceu a levar porrada de criar bicho do seu pai bully, tentou, através da música, criar beleza que vencesse a dor com que cresceu, tentou criar música que substituísse o amor que não recebeu.

É possível que não tenha resultado para ele, que levou uma vida de sofrimento – mas foi o exato unguento que milhões de nós, pelo mundo fora, pelas décadas dentro, precisávamos para conseguir viver com a nossa própria dor. Tantos anos depois, Pet Sounds ainda é um mistério, ainda me leva às lágrimas, ainda me faz sair do corpo e acreditar que algo de mais belo é possível.

Brian Wilson, génio absoluto, talvez o único da segunda metade do século XX, recebeu duques à nascença e devolveu-nos ases: amem-no como amam os vossos maiores amores, não deixem esta música morrer, ensinem os vossos filhos a não ter medo da vulnerabilidade porque foi ela que nos deu God only knows. Só Deus sabe o que seríamos sem Brian Wilson.

observador

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