O julgamento de Gisèle Pelicot chega ao Panteão Nacional

“A vergonha deve mudar de lado.” Em 2024, num tribunal francês, Gisèle Pélicot tornou-se um marco na luta feminista. Esta mulher, que foi drogada e violada por pelo menos 51 homens durante uma década, tomou uma decisão pouco comum: renunciar ao anonimato. Gisèle Pelicot, 71 anos, abriu as portas do tribunal reclamando a vergonha não para si, mas para quem cometeu o que foram descritos como atos hediondos contra ela durante 10 anos.
O caso de violação ocorrido em Mazan, pequena cidade no sul de França, inspirou The Pelicot Trial (em português “O Julgamento de Pelicot”), uma vigília performativa de várias horas em que a cena se transforma num tribunal expandido, numa reconstrução do histórico julgamento a partir de centenas de horas de testemunhos, entrevistas, análises forenses, registos visuais, colagens e textos académicos. A peça, com encenação do suíço Milo Rau, mostrou-se esta sexta-feira no Festival de Avignon, naquela cidade francesa, antes de chegar a Lisboa a 10 de outubro, no âmbito da BoCA — Bienal de Arte Contemporânea.
Foi durante os ensaios de La Lettre em Paris, no início do ano, com a estreia em Avignon no horizonte, que Milo Rau viu crescer em si o impulso de se debruçar sobre o caso. “Parecia-me estranho vir a Avignon [onde decorreu o julgamento] e não falar da Pelicot. Parecia-me um silêncio estranho, quase político”, diz o criador e diretor artístico do Wiener Festwochen (Festival de Viena), ao Observador. “Foi nessa altura que falei com a Servane Dècle, dramaturga, sobre se conseguiriamos reunir rapidamente materiais do julgamento.”
Em França, como em Portugal, os tribunais permanecem fora do alcance das câmaras e dos microfones. Foi necessário recorrer a advogados, testemunhas, família, psicólogos e muitos jornalistas “de vários países, sobretudo franceses e alemães, que acompanharam o caso” para, a partir desse material, elaborar cenas altamente específicas, como o interrogatório de Dominique Pelicot, ex-marido da vítima, que organizou violações em série da mulher e que foi considerado “culpado” de violação agravada e condenado a 20 anos de prisão.

▲ Gisèle Pelicot tornou-se um símbolo feminista de coragem e luta contra a violência sexual por ter recusado o pedido de sigilo judicial
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Não é a primeira vez que Milo Rau, figura central na cena teatral europeia atual, leva um julgamento para o palco. Fê-lo com o genocídio na República Democrática do Congo em The Congo Tribunal (2015), ou com as ações das Pussy Riot em The Moscow Trials, 2013. Anos antes, em 2009, já encenara o processo judicial de 1989 contra o ditador romeno Nicolae Ceausescu e a sua mulher, em The Last Days of the Ceausescus. Mas, desta vez, Rau não quis transformar o caso numa peça totalmente encenada. “É demasiado cedo. Diz-se que é preciso pelo menos uma geração de distância e eu concordo”.
Por isso, The Pelicot Trial não deve ser entendida como uma recriação clássica do julgamento, argumenta. Até porque começa antes: entre 2020 e 2024, quando a investigação do caso já está a decorrer. “Nesses quatro anos acontece muita coisa. A Gisèle Pelicot quer desaparecer, mudar de nome, vai para uma aldeia em que ninguém a conhece, mas depois, aos poucos, decide fazer o que ela fez: abrir o julgamento ao público, tornar-se uma pessoa pública, fazer do nome Pelicot o nome de uma heroína. Isso é muito impressionante.” Mais do que reconstituir os factos, a peça procura impor-se como uma estrutura de escuta que coloca o público como testemunha. A vigília, que quando se estreou em Viena em maio teve uma duração de sete horas, contempla textos feministas, um coro, e uma série de elementos além do julgamento que contam a história que já se escrevia antes mesmo de chegar à barra dos tribunais e às páginas dos jornais.
Em Avignon, onde se apresentou esta sexta-feira, na imponente Cloître des Carmes, o público viu uma versão reduzida de quatro horas da criação original. Em Lisboa, onde se mostra a 10 de outubro no Panteão Nacional, terá cinco horas de duração. Tanto na cidade francesa como na capital portuguesa, assistir à performance é gratuito. “Todos os jornalistas, as famílias, todos nos deram uma imensidão de material de graça. O que foi surpreendente, mas também lógico, porque é um prolongamento do que Gisèle Pelicot fez”, enuncia Milo Rau. “Ela fez do tribunal algo público, os vídeos são públicos, tudo é público. Ela abriu esse espaço. E teve de lutar por isso. Aqui fazemos o mesmo, numa escala maior”, afirma, notando que em Avignon foram 500 pessoas a poder assistir ao espetáculo, apesar da transmissão no site do festival. Já no Panteão Nacional, em Lisboa, haverá 250 cadeiras e espaço para quem possa assistir de pé — sem necessidade de reserva e dada a extensão da performance, as pessoas poderão entrar e sair, confirmou o Observador junto da organização.

▲ Em Viena a peça decorreu na Saint Elizabeth church, uma igreja no centro da cidade. Em Lisboa, o espaço escolhido foi igualmente simbólico: o Panteão Nacional
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“Tornou-se um julgamento icónico”, diz Milo Rau, que admite que teve convites para levar o espetáculo a cerca de uma centena de países. Escolheu dez para já. “Optei por sítios onde temos tempo para contactar pessoas, fazer um casting e perceber qual é o contexto de cada cidade e como é que este caso ressoa”, justifica. The Pelicot Trial terá atores e ativistas locais, estando os portugueses ainda por designar, pois Rau e Dècle ainda estão a trabalhar na versão final do texto para apresentar em Portugal.
No cenário simbólico do Panteão Nacional estará um cenário evocativo de um tribunal, com testemunhas de um lado e do outro. À vez, vão suceder-se discursos com uma duração de entre cinco e seis minutos. Apenas o de Gisèle Pelicot é mais extenso, com cerca de 15 minutos. “O mais difícil são as descrições dos vídeos. São muito explicitas e gráficas”, aponta o encenador.
Violada 100 vezes por 80 homens a mando do marido. O caso de Gisèle Pelicot que chocou França
A dimensão da peça tem motivações claras: fazer notar a morosidade da justiça, numa primeira instância, mas também expor a banalidade da violência e o silêncio cúmplice que a sustenta. “Quando se vê quatro ou cinco horas começa-se a ver uma estrutura. Começa-se a ver o universalismo do caso”, diz Milo Rau. “Começamos a pensar: porque é que de 50 homens, só um é que disse que não? Porque é que há homens de todas as classes, de todas as profissões, um jornalista, um bombeiro… Há 25 pais de família, há homens jovens, há homens velhos, há até um homossexual. Não faz sentido. Começamos a pensar: que cultura é esta? Que natureza é esta?, o que nos estão a fazer? É um mix de ambas? Isto acontecerá milhões de vezes. Só soubemos desta porque a Gisèle Pelicot decidiu abrir o julgamento.”
O encenador lembra os números que apontam para uma taxa mínima de condenações em casos semelhantes. “Nunca há prova. Ou, na maioria das vezes, mesmo que se tenha provas, não se consegue provar. O marido dela foi louco o suficiente para filmar tudo. Se não tivesse filmado, toda a gente estaria livre”, critica.

▲ Milo Rau, um dos grandes nomes do teatro europeu dos nossos dias, voltou a escolher um julgamento como matéria para a criação artística
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“Temos um texto na peça que descreve como 90% dos rapazes de 13 anos passam três horas diárias a ver pornografia. Isso… transforma-lhes o cérebro. Esta geração, e já a anterior, está completamente transformada pela pornografia na internet”, alerta. “A forma como abordam as relações sexuais já não é pelo romantismo, ou por pessoas reais que queres conhecer beijar e ter sexo. É de uma objetificação completa e é assim que estão a ser educados. É por isso que também temos mais e mais violações. É difícil… O que podemos fazer para sermos mais fortes que a internet?”, atira, ciente de que não tem a resposta.
Mesmo diante da incerteza, sabe que “é importante trabalhar sobre estes casos”. “Acho que até este julgamento… Ainda há homens que têm dificuldade em perceber que algo como consentimento existe, que não é fun fazer sexo com alguém quando está a dormir, mesmo que na pornografia isso esteja nas categorias mais procuradas”, adverte.

▲ Com um cenário que evoca o tribunal, “O Julgamento de Pelicot” coloca o público como testemunha do mediático caso
DR. BoCA
As estatísticas dizem-nos para ser pessimistas, sabe. “O sul de França é uma das regiões mais ricas do mundo, está num dos seus melhores momentos na História. Nunca os homens foram tão instruídos. Nunca as mulheres foram tão livres. E, no mês passado, um site onde indivíduos se encontravam para violar mulheres, uma pequena plataforma francesa encerrada no mês passado, tinha um milhão de pessoas. Há uma sociedade paralela cheia de violência”, relata. “Não há grandes razões para otimismo…”
E, ainda assim, um julgamento vai começar — mas, desta vez, não é apenas o réu que se levanta. “A sociologia diz-nos que quando um se levanta, os outros também o fazem. É uma regra sociológica. Não ficamos sozinhos”, afirma Rau, com o que lhe resta de otimismo. “Devíamo-nos focar nisso. Não vamos contrariar a natureza, não vamos ser mais fortes que a internet, não conseguimos colocar a tecnologia de volta onde estava há 50 anos. A minha única esperança é essa.”
O Observador viajou a convite do Centro Cultural de Belém, Culturgest e Teatro Municipal do Porto
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