Aprender a vencer, no país do futebol

Sim. Quando perdemos, vale a pena lembrar que é só futebol; quando ganhamos, também. Antes, durante e depois, incomoda-nos o que passa por proximidade excessiva dos representantes políticos do país com os que, por praticarem uma modalidade desportiva, vestem uma camisola que representa, simbolicamente, esse país. É só futebol, dizemos então, outra vez – que fazem o Presidente da República e o primeiro-ministro em flash interviews, antes e depois, a darem a suposta táctica para o jogo, a comentarem as incidências no final, de cachecol de adepto ao pescoço, a torcerem na bancada como outros espectadores quaisquer, enfiados no balneário no fim do jogo, com jogadores e equipa técnica? Se até aqui há bem pouco tempo o que era comum era ver os titulares de altos cargos públicos guardarem prudente e higiénica distância das incidências da bola, tão atreitas a desvarios sentimentais, onde se passa de besta a bestial antes que uma pessoa tenha tempo de ler a primeira página do orçamento de Estado, quanto mais de fazer uma reforma?
Não são só os tempos que mudaram e os políticos que passaram a querer ser percepcionados como cidadãos comuns, próximos dos interesses do contribuinte sofredor, em vez de uns privilegiados isolados num Olimpo sem comunicação com o mundo real. Não é apenas política-espectáculo para uma civilização de muitos ecrãs e poucos dossiers. É porque o futebol deixou de sujar; o futebol, no nosso caso, português, passou a prestigiar. O futebol já não é bem “só” o futebol; o futebol tornou-se melhor do que o país.
Sim, é estranho – e certamente um pouco preocupante. Temos bem presente que o futebol português (talvez o futebol profissional em geral) está longe de ser um poço de virtudes. Muito do que de pior o país tem lhe surge plasmado, ou não fosse a paixão mais assolapada da nação: as suspeitas de corrupção, tráfico de influências, compras de lugares, trocas de favores, agressões, vandalismo quotidiano regular e aceite, os truques de secretaria, os resultados falseados, mesmo quando não de forma directa, de forma indirecta pelo modo como tantas vezes os clubes pequenos dependem dos grandes para sobreviver. Escândalos sexuais nos estágios da selecção, jogadores que agridem treinadores, que agridem árbitros, que fazem viagens facturadas a clubes, comissões inexplicáveis pagas a intermediários misteriosos, empresários que parecem mandar mais do que treinadores, doping, falências contornadas com falsas invenções de clubes novos, alianças feitas e desfeitas com empresários e autarcas, ao sabor de encontros de interesses que pouco parecem ter a ver com o desporto que o povo, há mais de um século, aprendeu a amar, domingo após domingo. Nada disto escapará ao espectador medianamente atento do fenómeno – e, no entanto, mesmo crescendo entre todas estas falhas e pecados, a bola tornou-se uma das mais bem-sucedidas indústrias da nação.
Nos últimos 30 anos, o futebol português, que antes festejava como feito nacional as raras ocasiões em que se apurava para uma grande competição, fez da presença em fases finais de europeus e mundiais o mero cumprir de uma formalidade. Verdade que as competições passaram a ser jogadas por muito mais equipas e que, portanto, se tornou muito mais fácil conseguir um lugar, mas raramente a selecção tem feito menos do que terminar entre as oito ou 16 melhores. Mesmo no tempo de Eusébio, em que Portugal teve talvez a sua melhor geração de jogadores de sempre e em que podia recrutar livremente nos então territórios ultramarinos africanos, não conseguiu mais do que apurar-se uma única vez para um Mundial. No mais, celebrávamos como proezas uma meia-final no Euro 84 em que só Bento nos manteve em jogo até ao fim e um sofrido “deixem-me sonhar!”, de José Torres, que valeria o apuramento à última para o Mundial do México, consubstanciado no remate do meio da rua de Carlos Manuel para o fundo de uma baliza alemã que, então, parecia de mármore, de tão longínqua e inatingível se nos afigurava.
Apesar de continuar a ser uma actividade de exportação, do mesmo país pequeno e periférico de sempre, o futebol nacional conseguiu tornar-se, de facto, um dos melhores do continente. Com uma das melhores selecções nacionais, candidato credível aos títulos, fabricante regular de grandes jogadores – e agora também de treinadores e até, ao que parece, de “directores técnicos” e afins. Capaz de organizar grandes eventos, potência ao nível dos escalões de formação, e de ter uma equipa ou outra que, de vez em quando, até faz uma gracinha na Champions ou prima menos abastada. Quando vemos a forma como ganhou a sua segunda Liga das Nações este domingo que passou, chama à atenção a naturalidade com que o fez. Não houve “deixem-me sonhar”, nem apelos à Nossa Senhora de Fátima, não foram precisos jogadores em lágrimas, nem remates salvíficos do meio da rua, de heróis improváveis. Ganhou-se com segurança e talento, porque se foi melhor, numa equipa onde se perde a conta aos jogadores que já foram campeões europeus de clubes e aos que, em geral, por aí andam, cidadãos do mundo, actuando no equivalente às maiores empresas multinacionais da especialidade.
Continua a ser só futebol? Continua. Mas quase todo o resto do país parece ter qualquer coisa a aprender com um meio onde, apesar de ter todos os defeitos congénitos da nação, apesar de também ele ter de exportar quase todo o seu talento, se encontrou forma de receber algum retorno disso. Prestigiando o sector, atraindo investimento, continuando indiscutivelmente – o cronista não percebe nada do assunto, mas é o que se vê à evidência – a ser capaz de descobrir e formar talento geração após geração; e a oferecer aquela comovente possibilidade de ascensão social que faz com que um puto da linha de Sintra, que cresceu a jogar no Despertar da difícil Casal de Cambra, se torne príncipe, na mesma semana, em Paris e em Munique.
Não se podem fazer selecções nacionais de cientistas, engenheiros, enfermeiros, programadores, economistas e tanto outro talento nacional que deixamos partir, ano após ano. Que voltem cá uma vez por mês, vistam a camisola e façam qualquer coisa pelo país que não os soube segurar. Mas ou começamos a tratar esta como a mais decisiva questão para o futuro de Portugal ou, pouco a pouco, só nos restará mesmo o futebol. Só futebol. E políticos como líderes de claque.
observador