Selecione o idioma

Portuguese

Down Icon

Selecione o país

Portugal

Down Icon

João e Maria

João e Maria

Amin Mohmed. Alfusseine Jaló. Juarez. Delano Chiatonne. Waleska Daniell. Cibelli. Kellyane. Andrew Jeffrey. Anaisa. Angelina Holovko. Luc Ngambo. Anny Christine. Umid Shihimardonovitch. Os nomes aqui listados não são de crianças de uma escola em Lisboa, nem uma enumeração aleatória gerada pelo ChatGPT, mas exemplos de candidatos do Chega à Assembleia da República e às autarquicas. Pelos nomes não é possível aferir a religião, a etnia, nem tão pouco a nacionalidade, mas, pelos critérios de Ventura, aparentemente são nomes pouco portugueses. Sejam com ésse ou, menos ainda, com zê. Portanto, podem não ser portugueses, mas são certamente de bem.

Avancemos, esquecendo a falácia da origem dos nomes e dispensando limpezas de lista de base etimológica. O Chega tem direito a convidar quem quiser como candidato. Ventura é contra a imigração desregulada e, até, a regulada. É por isso normal (e legítimo) que alerte — dentro da latitude da sua ação política — para aquilo que considera serem os problemas daí decorrentes e que possam vir a provocar no futuro. Se considera que podem existir choques culturais que prejudiquem as populações ou que o país pode não ter vagas para todas as crianças com base num impulso de natalidade provocado pela imigração tem toda legitimidade democrática para o defender.

Para provar esse ponto, o presidente do Chega podia optar por utilizar números. Por exemplo, dizer que um terço dos bebés nascidos em 2024 são filhos de mães estrangeiras. Ou que, ainda antes do boom da imigração, um estudo do ISCTE concluía que os alunos estrangeiros no ensino básico e secundário cresceram de 14 para 17% entre 2013 e 2020 (os números que só podem ter subido nos últimos anos). Ou ainda que há uma escola em Arroios (Lisboa) em que a maioria dos alunos são imigrantes.

No limite, Ventura pode até responsabilizar os imigrantes-pais, adultos, por terem filhos sem terem condições para tal num país estrangeiro e terem cometido o pecado original de, imagine-se, procurar uma vida melhor para si e para a família noutro país. Mas não. O presidente do Chega optou por dizer nomes de crianças no plenário da Assembleia da República e terminou com o seguinte remate: “Estes senhores são zero portugueses.” Isso não é a coragem que tanto apregoa, mas uma cobardia de um bully de recreio.

As crianças (caso sejam reais, algo que o Chega não sabe, nem quer saber) não são “senhores”, são crianças. E isso faz toda a diferença. André Ventura decidiu fazer política atacando crianças. E isso não tem nada a ver com ser contra o wokismo, os esquerdalhos, com “arrasar” a Eva do rap ou a Isabel do Livre, é uma intervenção sem ponta de humanidade de Ventura. E sem noção.

O líder do Chega veio depois retocar a intervenção ao dizer que é preocupante olhar para os nomes numa escola e “não encontrar um João, uma Maria, um Pedro”. André Ventura sabe que isso não é verdade. E que os nomes “típicos” portugueses continuam a ser maioritários nas escolas portuguesas. Aliás, em Algueirão-Mem Martins, onde cresceu e fez o ensino básico (há algumas décadas), as turmas estavam longe de ser compostas por Joões e Marias 100%-raça-lusitana e — nesse contexto de multiculturalismo e também necessária integração — Ventura conseguiu tornar-se um reputado jurista e professor universitário e tornar-se líder do terceiro maior partido em Portugal. A vida não lhe correu mal, mesmo rodeado de filhos de retornados das colónias, imigrantes ou filhos de imigrantes.

Para Ventura as crianças não são só crianças. Também existem as de bem e as de mal. As portuguesas e as outras. E isso e isso faz subir mais um patamar de desumanidade que ainda não tínhamos visto ao líder do Chega.

Na praceta onde vivo, há meia-dúzia crianças que todos os dias ali jogam à bola, aproveitando o facto de ser praticamente livre de circulação automóvel. O líder natural do grupo de pequenotes é claramente árabe, o que percebo pela forma como vai lançando uns habibi a meio de um português perfeito. Chamam-lhe o “Benzema”, mesmo não tendo parecenças físicas com o original — e a ele juntam-se crianças brasileiras, portuguesas e indostânicas. O “Benzema” de 10 anos às vezes é mandão, mas quando passamos com o bebé, manda parar o jogo para evitar uma bolada involuntária no carrinho. É o rei do pedaço — e ainda bem.

Da janela, com o bebé ao colo, desejo que um dia cresça e possa também jogar à bola com os irmãos mais novos do Benzema e os outros, que provavelmente terão nomes como Radith, Saahas, Sayma ou Aziz. Não vivo com medo que se repita Alcácer Quibir ou Torre Pacheco à minha porta (deve ser tenebroso e psicótico viver nesse medo constante), vivo com esperança que o meu filho cresça com aqueles vizinhos, aquelas crianças, porque são isso que são: crianças. O que se vive ali na praceta é alegria, esperança, futuro.

Ventura devia procurar atacar alguém do seu tamanho. E acima de tudo lembrar-se que, na sua sala, não havia só um André, Joões e Marias. O assunto já tem dias, mas o líder do Chega teima em mantê-lo atual e em fazer render a intervenção: ainda esta segunda-feira partilhou um vídeo desse momento, desta vez para se orgulhar de meter na linha a deputada do PS Eva Cruzeiro aka Eva Rapdiva — que tem cerca de mês e meio de experiência parlamentar. Também aí, Ventura — que quer ser primeiro-ministro — devia colocar-se noutro patamar, em vez de agir como se estivesse numa sessão do Parlamento dos Jovens na Sala do Senado. Mas regista-se a evolução: já atacou uma caloira parlamentar e não crianças.

observador

observador

Notícias semelhantes

Todas as notícias
Animated ArrowAnimated ArrowAnimated Arrow