Para um manifesto conservador

Em The case against the sexual revolution, Louise Perry recorre à metáfora da cerca de Chesterton (a chamada “Chesterton’s fence”) para fundamentar uma atitude política cuidadosa. De acordo com Chesterton, podemos pensar numa instituição ou numa lei como uma cerca ou um portão que encontramos numa estrada:
«O tipo de reformador mais moderno aproxima-se alegremente e diz: “Não vejo a utilidade disto; vamos eliminá-lo”. Ao que o reformador mais inteligente deverá responder: “Se não vês a utilidade disto, certamente não te vou deixar eliminá-lo. Vai-te embora e pensa. Quando voltares e disseres que vês a sua utilidade, poderei permitir que a destruas.”»
Muitos encontram nesta ideia a essência do pensamento conservador: a questão não estaria na impossibilidade de reformar, mas na ponderação cuidada das reformas políticas a adotar, considerando que as instituições existentes sobreviveram ao teste do tempo.
No livro de José Maria Pimentel, escrito a partir do seu podcast, Francisco Mendes da Silva faz precisamente este argumento na defesa do conservadorismo: “acreditar que há instituições que não são boas por serem antigas; são, sim, antigas (isto é, duraram), porque são boas.” Aqui residiria o ponto crucial do conservadorismo como predisposição conservadora, que, entre nós, é subscrito por outros nomes importantes como Miguel Esteves Cardoso ou João Pereira Coutinho.
Tradicionalmente, o conservadorismo encontra-se próximo do liberalismo, apresentando-se como conservadorismo-liberal e assumindo, desde Burke no século XVIII, uma dimensão económica de defesa de uma economia de mercado livre, que garantiria uma espécie de ordem espontânea com intervenção mínima do estado.
Na última década, porém, a atitude conservadora tem vindo a adotar gradualmente uma componente mais cultural, defendendo a moralidade e as instituições sociais de uma intervenção excessiva do estado, que, de acordo com um princípio de engenharia social, ansiaria por criar um modelo utópico idealizado, visando, designadamente, reformular os alicerces da cultura ocidental.
É neste sentido que as palavras de Miguel Morgado, na introdução a Utopia de Thomas More, levantam a questão de como nos posicionamos quanto ao “horizonte de possibilidades políticas dos homens”:
“Porquanto precisamos de saber se as imperfeições da natureza humana são obstáculo insuperável ao aperfeiçoamento das instituições políticas, ou se, pelo contrário, as instituições podem, uma vez corrigidas racionalmente, limpar as manchas da natureza humana.”
É em reação ao ímpeto que visa reformar as instituições e a cultura ocidentais que o pensamento conservador tem conquistado novo fôlego, a partir de uma reorganização do espaço público que retira relevância à velha dicotomia entre esquerda e direita quando passamos para o domínio das lutas culturais. A grande oposição seria agora entre progressistas e conservadores, transpondo as fronteiras habituais com que pensamos a esquerda e a direita.
A velha dicotomia tinha uma vantagem conceptual óbvia: remetendo para um padrão espacial, garantia que nem a esquerda nem a direita se pudessem pensar sem o seu oposto, numa lógica dialética de interdependência. Mas com a transformação política das últimas décadas, a corrente progressista galgou os limites que separavam esquerda e direita para se assumir como bandeira política de referência – sendo invocada como valor moral supremo, tanto à esquerda como à direita desde que cosmopolitas e moralmente libertárias.
E é precisamente na dimensão conceptual que reside o problema da bandeira progressista. Não se trata já de uma referência espacial, mas traduz uma relação moral com a história, como retiramos das declarações de Rui Tavares em Política a 45 graus: “existe uma espécie de linha da História que aponta no sentido de progresso constante da humanidade e que podemos e devemos seguir.” Os progressistas carregariam, assim, as luzes do progresso, da razão, da liberdade e da igualdade contra aqueles que reivindicam a importância das raízes, das fronteiras, da soberania nacional, dos valores comunitários e dos deveres e compromissos que devem ser anteriores, e condição, dos direitos – e que estariam do lado errado da História.
Se a política é necessariamente plural e conflituante, o problema não estava na existência da esquerda – cujas posições são tão legítimas como as da direita. Mas se a política é necessariamente plural e conflituante, então devemos denunciar os progressistas que recusam posições contrárias e afirmar que quem não concorda com a agenda progressista não é nem chalupa, nem má pessoa, nem está errado. Defende valores diferentes, mas igualmente legítimos. E está na altura de os conservadores em Portugal o fazerem sem vergonha.
3 A questão tecnológicaUm dos tópicos mais pertinentes para a renovação do pensamento conservador reside na questão tecnológica. Os desenvolvimentos tecnológicos provocaram sempre efeitos relevantes nas sociedades, levando à sua transformação e adaptação. Mas é possível que o rápido desenvolvimento tecnológico dos nossos dias represente um desafio novo.
Esses avanços encontram-se na revolução biológica que tem marcado as últimas décadas – e são particularmente assustadores quando as suas promessas parecem estar em harmonia com os desejos políticos mais extremos. É o que acontece com o desenvolvimento dos úteros artificiais, entendido por muitas feministas como a possibilidade de libertação última da mulher, mas também com os desenvolvimentos na área da procriação, que têm conduzido a uma disrupção da condição de parentalidade e a intervenções genéticas como se um bebé correspondesse a um produto de mercado.
A possibilidade técnica de profundas alterações corporais tem também alimentado as ilusões das teorias do género, com muitos registos de transformações físicas para adquirir características de animais não humanos. E o transumanismo – essa ilusão do homo deus – continua a motivar uma elite minoritária, os únicos que conseguirão assegurar a passagem para a última fase das sociedades humanas: aquela que dividirá os meramente humanos dos seres melhorados. Não é difícil perceber onde estará o poder nessa altura.
Sem esquecer o impacto que a tecnologia digital está a ter nas gerações mais novas, importa considerar os efeitos que a inteligência artificial não tardará a ter no mercado laboral, apesar de a inteligência artificial alimentar, paradoxalmente, uma corrente de esquerda que fala hoje na possibilidade de um “socialismo digital”, capaz de superar as limitações epistemológicas do planeamento socialista.
Qual é, neste contexto, o “horizonte de possibilidades políticas dos homens”? Perante uma era tão disruptiva, talvez seja importante recordar que a nossa imperfeição esvazia a noção de progresso, pelo que devemos reagir contra a contínua destruição das cercas que asseguraram o nosso sucesso social e reprodutivo.
É possível que, neste sentido, haja algo de reacionário neste conservadorismo, marcado por uma espécie de reacionarismo difuso. Mas como diz Miguel Esteves Cardoso, “ser reacionário de um modo minimamente decente também é um ofício que se vai tornando raro, como o de jardineiro ou o de amolador. Alguém tem de fazê-lo.” E, nos nossos dias, importa que este ofício se torne cada vez menos raro.
observador