Covilhã – Bispo da Guarda destaca heroicidade de “tantos que doam as suas vidas, diariamente, e em situações de risco e emergência”

“A partida do bombeiro Daniel Agrelo nas condições que todos sabemos, evoca-nos a verdadeira heroicidade de tantos que doam as suas vidas, diariamente, e em situações de risco e emergência, para cuidar das vidas de tantos outros”, disse D. José Pereira, na homilia proferida no Salão dos Bombeiros Voluntários da Covilhã, esta manhã, 19 de Agosto, na Missa do funeral.
HOMILIA
«Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; e quem despreza a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna.»
Esta verdade que acabámos de escutar, descobriu-a o bombeiro Daniel Agrelo quando decidiu ser, e permanecer, bombeiro. Não foi um simples sonho de jovem. Foi uma entrega até ao dom de si mesmo, sem reserva, para que a sua vida dada cuidasse e multiplicasse vida em outros à sua volta.
Saberia os riscos que corria. Mas só um coração que descobriu o segredo mais decisivo da vida – a vida destrói-se e perde-se se não é dada; é no doar-se que se entra na, e se oferece eternidade – só esse coração, dizia, não se encolhe perante o risco. Esse risco maior, não só o de poder morrer, mas sobretudo o de poder deixar esposa e filho. Se o faz, é porque muito os ama: porque está mesmo seguro de que esse é o maior valor, o maior tesouro que lhes pode oferecer. Ainda maior que a longevidade perto deles é o tesouro da eternidade.
A eternidade não é a vida para um dia depois da morte. É a vida plena (divina) aberta para nós. É a possibilidade de uma presença e de uma densidade que não ficam impedidas nem diminuídas pelos limites do tempo e do espaço.
Neste momento, esta realidade é profundamente dolorosa. A ausência física, a impossibilidade do toque, do beijo ou do abraço magoarão até que se encontre outra forma de relação e se descubra outro modo de presença. Mas esse será o fruto de uma vida que, lançada à terra, deixou-se renascer. Quem abraça o modo de Cristo se doar sem se deter, deixa ser possível tornar-se redivivo no modo de Cristo ressuscitar e se relacionar com os que ainda peregrinamos na terra.
É assim que podemos entender a palavra escutada: «chegado à perfeição em pouco tempo, o justo completou uma longa carreira. A sua alma era agradável ao Senhor; por isso Ele Se apressou a tirá-lo do meio da iniquidade.» Entenda-se: o Senhor não veio arrancar o bombeiro Daniel Agrelo do meio de nós. Isso foi o acidente que o fez, dada a nossa condição terrena frágil. O Senhor tirou-o da iniquidade que seria a perda de uma ausência não ressuscitada, de uma partida sem possibilidade de um novo modo de relação. Porque a sua doação tornou-o permeável ao Senhor, o Senhor teve espaço para realizar esta obra nele.
Mas a partida do bombeiro Daniel Agrelo nas condições que todos sabemos, evoca-nos a verdadeira heroicidade de tantos que doam as suas vidas, diariamente, e em situações de risco e emergência, para cuidar das vidas de tantos outros. Verdadeiros heróis são todos os homens e mulheres de todos os Corpos de Bombeiros (Voluntários e Sapadores), Sapadores Florestais, Unidades de Emergência, Protecção e Socorro das Forças de Segurança e das Forças Armadas, todos os agentes que Verão após Verão se entregam, muitas vezes até à exaustão, para combater os incêndios.
Verdadeiros heróis são também todos os homens e mulheres, populares das nossas aldeias e lugares que, vendo-se em risco de perder todo o trabalho de uma vida, e sentindo-se abandonados pelas forças de protecção civil que não aparecem pois não chegam para todas as necessidades, defendem as terras, os animais, os negócios e as vidas uns dos outros, num verdadeiro espírito de comunhão e ajuda mútua.
Mas se todos eles são heróis pela entrega e doação, não conseguem ser, nem se lhes pode exigir que sejam super-heróis. Estes são personagens do cinema e da banda desenhada. Aqueles são heróis de carne e osso, pessoas reais que merecem outro tratamento. Por isso, como comunidade nacional – decisores políticos, autoridades instituídas, investigadores académicos, agentes económicos, iniciativa local – é preciso encontrar novas abordagens.
Parece não bastar preparar previamente meios operacionais e realizar acções de combate aos incêndios entre Julho e Setembro. Parece não bastar promover algumas acções de limpeza, por parte de Câmaras e/ou privados, que só alcançam terrenos acessíveis num território de serra e florestas sem acessibilidades. Parece não bastar tratar o fogo numa lógica de protecção civil de pessoas e de casas que, sendo indispensável é insuficiente, como se vê ano após ano. Parece não bastar uma lógica de conservação da Natureza sem gestão da floresta, e do fogo frio e controlado, entre Outubro e Junho, por parte de agentes preparados para o efeito. Parece não bastar o indispensável serviço das Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários, sobrecarregadas por múltiplas áreas humanitárias de socorro, sem complementar com uma robusta rede nacional (e não apenas costeira) de Bombeiros Sapadores profissionalizados.
Não me compete fazer política no sentido estrito do termo. Mas a visão humanista e integral do pensamento social cristão, qua tanto inspirou a coesão social nos países europeus, exige-me que alerte para a necessidade de esforços de todos para políticas que superem as disputas eleitorais e atendam com realismo às situações diversas do nosso território.
Nesta hora e nesta celebração, rezemos pelo bombeiro Daniel Agrelo: se ainda necessitar, que a nossa oração lhe aproveite à purificação dos sentidos sobrenaturais para poder ver a Deus face a face.
Rezemos também pela sua família, pelos Bombeiros da Covilhã, por todos os que se vêem ameaçados pelos incêndios, pelos que combatem os fogos, e por todos os que têm responsabilidades de decisão em favor do bem comum.
Jornal A Guarda