Saara Ocidental – a última colónia de Africa

Numa altura em que Portugal recebe ajuda do Estado Marroquino no combate aos incêndios, numa altura em que Portugal se prepara para receber o Mundial de 2030 em conjunto com Espanha e Marrocos; numa altura em que Marrocos é um dos locais de férias de inúmeros portugueses; numa altura em que Marrocos está cada vez mais a ser parceiro da União Europeia, convém relembrar o que representa o Estado de Marrocos na última colónia Africana, a República Árabe Saarauí Democrática (RASD), mais conhecida como Saara Ocidental, ocupada ilegalmente por Marrocos desde 1975.
Saara Ocidental – uma herança colonial inacabada
Em 2025, o Saara Ocidental é, de acordo com a ONU, o último território não autonomamente governado em África, sendo o maior por tamanho e população no mundo. É, portanto, o último caso de colonialismo naquele continente. Numa breve resenha histórica, Espanha tinha tomado posse deste território em 1884, o qual era uma área povoada por diversas tribos Bérber, conhecidos como o povo Saarauí. Mais tarde, em 1934, Espanha tornou este território numa província com o nome Saara Espanhol. Em 1957, Marrocos, recentemente independente, proclamou a sua soberania sobre o território.
Em 1976, Espanha, no âmbito do seu processo de democratização, informou a ONU que tinha terminado a sua presença no território no final de 1975, sem, no entanto, ter criado um plano ou processo de autodeterminação para os povos que tinha subjugado durante quase cem anos. Simplesmente, deixou um vácuo de poder que foi de imediato ocupado por Marrocos e em menor escala, também pela Mauritânia.
A data de 6 de novembro de 1975, ficou conhecida pelo começo da “Marcha Verde”, mito fundador da presença marroquina, em que cerca de 350 mil civis e militares foram ‘voluntariamente’ enviados para atravessar a fronteira com aquele território e reclamar a defesa da integridade nacional. É de notar que a comunidade internacional condenou esta ação, e o Conselho de Segurança da ONU emitiu a resolução 380 pedindo a retirada das tropas marroquinas. Já em 16 de Outubro de 1975, o Tribunal Internacional de Justiça havia rejeitado as pretensões marroquinas e mauritânias, confirmando a não existência de ligações legais ou de soberania territorial de ambos sobre o Saara Ocidental, confirmando a legalidade e a possibilidade da autodeterminação do povo Saarauí.
O certo é que Espanha fugiu, ignorando o que seria o seu dever como colonizador em saída, tendo Marrocos ocupado cerca de 80% do território e a Frente Polisário, o movimento de libertação Saarauí, proclamado a República Árabe Saarauí Democrática (RASD). A consequência foi uma guerra de 16 anos, com grande parte do povo Saarauí a tornar-se refugiado e a viver em campos de refugiados semipermanentes na Argélia, sobrevivendo apenas graças à ajuda do Estado Argelino e da ONU. Em 1991, foi acordado um cessar-fogo, seguido de um acordo para a realização de um referendo, que, no entanto, ainda não foi realizado, devido à oposição constante do governo marroquino.
A realidade da ocupação
O Saara Ocidental tornou-se uma parte importante da política de Estado marroquina, que tem dedicado a este território uma estratégia baseada na militarização, colonização e normalização. Entre 1980 e 1987, foi construído um muro defensivo de 2720km, conhecido como Berm, que separa o território controlado por Marrocos e o controlado pela RASD, e tem por função prevenir a unificação do território e manter a RASD longe dos respetivos recursos naturais localizados na região da capital Laayoune, bem como do acesso à costa. O muro é construído com areia, pedra, e está repleto de minas, cercas e postos militares.
A referida Marcha Verde, com os seus 350 mil colonos ajudou Marrocos a consolidar a composição populacional, nomeadamente em cidades como Laayoune e Dakhla. Hoje o povo indígena Saarauí é uma minoria no seu território. Adicionalmente, Marrocos, tem construído uma infraestrutura enorme, de forma a consolidar a sua presença, a criação de aeroportos com ligações a Espanha, hotéis e resorts na costa, têm levado cada vez mais turistas para este território ocupado, Dakhla está a tornar-se num destino conhecido para quem pratica kitesurf. Marrocos aproveita ainda a larga costa para a pesca, área para a qual existem acordos com a UE, e explora o fosfato em minas na região de Laayoune, que é depois vendido para os EUA e a India, entre outros, exploração esta ilegal face à lei internacional, sendo que o lucro obtido tem como destino principal a ocupação do território e a opressão do povo Saarauí – veja-se a este respeito o artigo do Atlantic.
De acordo com Stephen Zunes, professor de estudos internacionais, o Saara Ocidental é o pior estado policial.
Com efeito, a repressão neste território é sistemática, manifestações pacificas são reprimidas violentamente, ativistas Saarauís são presos e julgados por tribunais militares, jornalistas e observadores independentes são expulsos e ou proibidos de entrar. Em 2025, a Freedom House classificou o Saara Ocidental com 4 pontos em 100. Dando -3 de 40 em relação aos direitos políticos, e 7 de 60 em relação às liberdades civis. O que torna este território num dos menos livres do mundo. A missão da ONU para este território, a MINURSO, criada em 1991, é uma das raras missões da ONU que não tem mandato para monitorizar os direitos humanos, tendo sido só mandatada para organizar um referendo, e sempre que tem sido renovada pelo Conselho de Segurança o mandato nunca é ampliado devido à oposição de Marrocos e dos seus aliados.
A Europa e os EUA: Cumplicidade por interesse
A Europa, que adopta a postura da guardiã do direito internacional e da ordem à base das regras e leis, suspende esses princípios no seu relacionamento com o Saara Ocidental face à realidade dos interesses económicos e energéticos.
Espanha voltou a “abandonar” o território em 2022 ao apoiar formalmente o plano Marroquino de 2007 que propôs autonomia, mas sob a soberania e controlo marroquino. Esta traição ao povo Saarauí deveu-se ao interesse em cooperar com Marrocos em matérias de migração e energia, e ainda à cooperação com vista ao Mundial de Futebol de 2030.
Também França, que se vê como protetora de Rabat, declarando em 2024 e 2025 que o Saara Ocidental já se encontra sobre soberania marroquina, ignorou por completo o direito à autodeterminação que havia sido confirmado pelo Tribunal Internacional de Justiça. Sendo que durante largos anos, no Conselho de Segurança da ONU, tem sido um dos países que tem bloqueado resoluções críticas a Marrocos.
O Reino Unido, desde o Brexit, tem aprofundado os laços com Marrocos, tanto em matérias comerciais como de segurança. Em 2019, Londres assinou acordos que incluem produtos originários do Saara Ocidental como se se tratassem de produtos marroquinos, prática que legitima a ocupação. A retórica britânica defende que o plano marroquino é sério e credível, tendo-o apoiado formalmente em 2025.
Também em 2025, em julho, Portugal juntou-se aos outros estados europeus classificando o referido plano como sério e credível, ignorando por completo o direito à autodeterminação dos povos, inscrito na Constituição da República, cujo artigo 7.º impõe a defesa da autodeterminação dos povos e aceitando a narrativa marroquina sem hesitação. Mais uma vez, o governo português ignora a sua Constituição.
E a União Europeia, não obstante a sentença do Tribunal de Justiça Europeu em 2024, que afirma que os acordos comerciais e de pesca com Marrocos não podem incluir o Saara Ocidental sem consentimento do povo Saarauí, continua a procurar formas de contornar a lei. O peixe pescado em águas saarauís e o fosfato de Bou Craa continuam a alimentar os mercados europeus, tornando evidente que os recurso Saarauís são muitos mais importantes que o povo Saarauí.
A mensagem é clara: a Europa proclama o direito internacional, mas trata o Saara Ocidental como uma exceção. Quando os interesses económicos, energéticos, e migratórios estão em causa, a autodeterminação do povo Saarauí é reduzida a uma nota de rodapé. O direito internacional é invocado quando convém, mas ignorado quando ameaça os interesses europeus.
Em dezembro de 2020, Trump vendeu o direito de autodeterminação do povo Saarauí, reconhecendo a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental em troca da normalização diplomática entre Marrocos e Israel no âmbito dos Acordos de Abraão. Biden não reverteu a decisão – pelo contrário, vendeu armas ao regime marroquino, armas estas que são usadas para continuar a oprimir o povo Saarauí. Para os EUA, os Saarauí são simplesmente moeda de troca para a defesa dos seus interesses regionais e alianças geopolíticas. O princípio do direito à autodeterminação, consagrado pela Carta fundadora da ONU, está completamente subordinado ao pragmatismo das grandes potências.
Silêncio e cumplicidade
Os mais de 170 mil refugiados saarauís vivem há quase 50 anos em campos no sul da Argélia, sobrevivendo graças à ajuda humanitária. É uma das mais longas crises de refugiados da história contemporânea. E, no entanto, está completamente ausente das prioridades mediáticas e diplomáticas.
A ocupação do Saara Ocidental não se prolonga apenas pelas armas marroquinas, mas pelo silêncio cúmplice de quem devia agir. A ONU que criou uma missão para organizar um referendo e que após 34 anos ainda não conseguiu cumprir essa missão. A União Europeia que proclama direitos, mas continua a lucrar com a ocupação marroquina. Portugal, Espanha, França e o Reino Unido que esquecem a sua história colonial e aceitam a narrativa imposta por Marrocos. Os EUA que transformaram um povo e a sua libertação em moeda de troca para ganhar apoio para um estado genocida.
Marrocos é, para Lisboa e Bruxelas, um vizinho próximo, parceiro comercial, aliado estratégico, é um amigo com o qual se partilham interesses e projetos. Mas para os Saarauís, Marrocos é antes demais um ocupador e colonizador. Um estado que lhes nega a autodeterminação, que reprime, que coloniza, e que destrói direitos.
O Saara Ocidental permanece a última colónia de África, por interesse económico. Em cada silêncio, cada acordo, cada declaração de seriedade e credibilidade à atuação de Marrocos, a comunidade internacional mostra aos saarauís que a sua liberdade não tem valor, que os seus direitos não existem.
O Saara Ocidental é uma ferida aberta no sistema mundial. O silêncio, a cumplicidade e o cinismo da ONU, UE, e EUA transformaram o direito à autodeterminação num conceito negociável.
A questão central não pode ser se o plano de autonomia é credível, mas se a comunidade internacional está disposta a que exista ainda em África um povo colonizado sem o direito à autodeterminação. Mais uma vez fica evidente como os interesses económicos valem mais que os direitos dos povos.
Já passaram 50 anos. E o silêncio e a cumplicidade continuam.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
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