De estrela rock à tetraplegia: também se pode amar a vida numa cadeira de rodas

Rodrigo vende discos como pães quentes, é adorado pelo público e não rejeita o empenho acrescido de cada nova fã que lhe queira demonstrar a sua devoção. É uma estrela e vive a vida como tal, com todas as loucuras e excessos a que dá direito a ribalta. Não é um tolo nem é à sorte que deve o sucesso — trabalhou para realizar o sonho que trazia de pequeno, compôs e escreveu, passou noites em branco para ensaiar cada acorde até à perfeição e estaria disposto a passar fome e até viver na rua para cumprir o que sabia ser o seu desígnio. A vida recompensou-o com "belas malhas" e o público fiel que as apreciava. Até um dia — há sempre um dia... mas para ele, o destino foi cruel.
Um acidente em palco deixou-o quase totalmente paralisado, "como uma folha seca", recorda a mãe. E como se volta a viver assim? Porque se há de querer viver assim? Para quê?
A premissa de Do Outro Lado do Muro, em cena no Auditório do Casino Estoril de quinta a domingo, até ao fim deste mês, com texto e encenação de Tiago Torres da Silva, pode parecer angustiante. A peça, interpretada por Ricardo Carriço, Rita Ribeiro e Baltasar Marçal, poderia ser uma tragédia crua que indispõe e deprime. Mas é precisamente o contrário: é alegre, leve mesmo quando o que vemos é difícil de digerir e de escutar, positiva até na forma como nos invade a consciência em gestos aparentemente inofensivos mas que podem determinar a impossibilidade para quem tem não tem total independência, como impedir o acesso a uma rampa. E por isso passa tão bem as mensagens que poucos estão disponíveis para absorver — porque nunca queremos pensar que a desdita pode bater-nos à porta.
Baltasar Marçal e Ricardo Carriço representam dois momentos da vida de um mesmo Rodrigo, o jovem na ribalta a viver os seus sonhos e o homem desanimado, que se sente inútil a tentar recuperar, mais do que a vida, a vontade de viver, depois de um acidente o ter deixado totalmente paralisado, de ter sido obrigado a reaprender a falar e que tanto se anima com as mínimas conquistas numa recuperação que sabe nunca o será verdadeiramente como se desespera com as impossíveis perdas. Rita Ribeiro é uma mãe comum: forte e determinada na ajuda ao filho, ora orgulhosa do que ele consegue ora revoltada com o seu destino e com quem o torna mais difícil, angustiada com o desespero do filho e afogada no seu próprio desânimo, condenada a uma prisão só aliviada por ocasionais cuidadores. E enquanto se abre a janela para uma vida que, afinal, não é só escuridão, tem também incontáveis alegrias, vão-nos mostrando, os três, como se pode ganhar uma batalha perdida à partida.
Com apoio da Associação Salvador — criada por Salvador Mendes de Almeida, que ficou tetraplégico aos 16 anos, num acidente de mota, e é hoje apresentador, velejador e pai —, Do Outro Lado do Muro não conta só uma história. Faz um retrato do que é viver com uma limitação, das dificuldades físicas, psicológicas e anímicas de quem se vê dependente de outros para as tarefas mais básicas. Mas também de como essa não é uma sentença de morte em vida; antes pode ser a porta para uma nova vivência, diferente, é certo, mas igualmente plena de possibilidades de realização, de novas pessoas e interesses.
Mostra também que os problemas extravasam quem os vive, contagiam família e amigos — como a vontade de superar limites passa igualmente por quem está à volta. E sobretudo revela a quem não lida diretamente com alguém que esteja de alguma forma limitado que o básico civismo pode fazer muita diferença para quem tem problemas (dificilmente alguém que tenha assistido à peça voltará a estacionar em cima de um passeio...).
Mais do que uma boa peça de teatro com belas interpretações — é notável a interpretação de Ricardo Carriço — e que incrivelmente nos deixa de coração cheio, Do Outro Lado do Muro é, verdadeiramente, serviço público.
sapo