Sua Excelência, o ministro da cultura (da morte)

Ainda a propósito do anúncio promovido pelo empresário Miguel Milhão, o Público de 4-6 deu à estampa o texto “Preocupem-se com Miguel Milhão e não é por causa do aborto”, do cronista Pedro Adão e Silva.
O ex-Ministro da Cultura justifica a sua demora em reagir ao dito vídeo porque dele só agora teve notícia por terceiros. Este intróito é um autoelogio disfarçado: Sua Excelência faz crer que paira tão acima destas mesquinhas realidades que, para delas se dar conta, é preciso que alguém as eleve à sua excelsa presença.
A este panegírico autorreferencial acrescenta depois que a culpa dessa sua indesculpável descida à vulgaridade se deve à insistência do seu filho, com o qual, segundo diz, comunica por mensagens. Esta nova figura de estilo, a ‘reductio ad filium’, já ensaiada pelo Presidente da República na polémica questão das gémeas, expressa uma instrumentalização política da paternidade que é, diga-se de passagem, de gosto duvidoso, porque o que é da intimidade familiar não deve ser exibido nos media. É lamentável que filhos graúdos ajam como meninos-do-papá e que papás, com idade para assumirem as suas responsabilidades, façam públicas queixinhas dos seus miúdos.
Ao não abordar a questão essencial – a de saber se o nascituro tem vida humana e se essa vida deve ser protegida, como exige a Constituição – resta ao ex-Ministro da Cultura achincalhar o corajoso promotor do vídeo em defesa da vida. Dele diz que “faz parte do grupo de gente que se distingue por um culto da personalidade muito próprio, ancorado na diminuição do lugar da mulher na nossa sociedade”. Mas, não será machismo um homem autoatribuir-se a representação e defesa das mulheres?
Não deixa de ser paradoxal, senão mesmo contraditório, que um anúncio que tem por título “Obrigado Mãe” seja acusado de ser anti-feminino. Será que Sua Excelência foi ministro da cultura woke e, por isso, entende que a maternidade não é exclusiva das mulheres, ao contrário do que a ciência afirma e é do mais elementar bom-senso?! Também acusa Miguel Milhão de ter “uma identidade misógina e homofóbica”; no entanto, se considera homofóbico (!) e misógino quem elogia a mãe, como classificaria, então, quem louvasse o pai?
O ex-Ministro tenta conquistar a benevolência das leitoras ao sentenciar, com manifesto autoritarismo: “Que não restem dúvidas, o vídeo sobre o aborto financiado por Milhão é grotesco e corresponde a uma estratégia provocadora e aviltante dos direitos das mulheres.” A abundância de adjectivos supre a ausência de razões substantivas e, optando por um discurso mais emocional do que racional, como é próprio dos demagogos e dos populistas, Sua Excelência oferece um excelente exemplo de discurso de ódio contra os que, segundo ele, pretendem “fazer do corpo das mulheres campo de batalha e pretexto para a afirmação de identidades masculinas tóxicas”.
O ex-Ministro da Cultura entende, e muito bem, que não devemos “cancelar o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, até porque o tema suscita questões morais legítimas e profundas.” Mas, embora reconheça a pertinência do tema, bem como as suas iniludíveis implicações éticas, não é capaz de contribuir construtivamente para esta questão, ao contrário dos quinze autores de “My body, my life”. Esta obra colectiva prefaciada por Pedro Passos Coelho e apresentada na Feira do Livro, no passado dia 5 de Junho, pelo Professor Paulo Otero, sim que é cultura. Se há algo em que Sua Excelência e estes ensaístas estão de acordo é que a questão do aborto, longe de ser pacífica na sociedade portuguesa, é uma das suas mais dilacerantes chagas, como aliás se demonstrou pelo histerismo de certas reações ao vídeo patrocinado por Miguel Milhão.
Na impossibilidade de argumentar com razões antropológicas, jurídicas ou científicas, ao ex-Ministro da Cultura só lhe resta o escárnio e, por isso, pressupõe “com alguma réstia de otimismo histórico”, que “podemos acreditar que o ridículo acabará por matar”. A troça é a homenagem que o vício presta à virtude, mas é também, graças ao seu efeito boomerang, uma arma perigosa. De facto, se for ridículo o vídeo antiaborto, como se faz crer, não será ainda mais disparatado troçar de uma peça que não se é capaz de contradizer com argumentos válidos?
Se o recurso à publicidade paga para defender a vida humana desde a concepção pode ser questionável, muito mais caricato é achincalhar quem se reconhece ser “um empresário de sucesso”. Milhão, nas palavras de Adão e Silva, “criou em poucos anos um império no ramo dos suplementos alimentares”, mas, como o mérito profissional é coisa de todo alheia a certos políticos, o ex-governante sente-se no direito de o desconsiderar, dizendo que “o ridículo acabará por matar”. Se assim for de facto, Sua Excelência que se cuide, pois pode estar em iminente perigo de vida …
Para o cronista, “este vídeo, contudo, suscita um tema mais preocupante. Se aceitamos que a propaganda política deixa de estar limitada e passa a ser considerada publicidade (…), estamos a abrir a porta a um espaço televisivo enxameado de anúncios políticos.” Ou seja, pelos vistos, para Sua Excelência a liberdade é … “preocupante”!
Teme Adão e Silva que a propaganda política deixe de “estar limitada”, ou seja, que haja liberdade de pensamento e de expressão, e que se abram as portas do espaço televisivo a todas as opiniões políticas. No seu entendimento, pelos vistos, seria preferível que a comunicação social estivesse controlada pelo Estado, à boa maneira socialista …
Curiosamente, o ex-Ministro da Cultura, que escreve num jornal diário financiado por um grande grupo económico e que é generosamente subsidiado pelo erário público, não acha alarmante que o seu artigo de opinião, que faz publicidade ao aborto, seja publicado sem razões científicas que o justifiquem, nem contraditório. Aliás, a comunicação social subsídio-dependente milita contra o direito à vida e defende despudoradamente a “interrupção voluntária da gravidez”, como se prova pela risível manchete da primeira página do Público do passado 1 de Julho: “Grupos extremistas (sic) doam 3,3 milhões a associações portuguesas antiaborto”, ameaçando “décadas de direitos sexuais e reprodutivos”, ou seja, pessoas que são contra o ‘direito’ de matar crianças por nascer, sobretudo em países em vias de desenvolvimento. Como é sabido, não faltam multimilionários que financiam, directa ou indirectamente, o aborto, como o casal Gates, George Soros, Warren Buffett, as fundações Ford e Packard, etc. Pergunta-se: é justo que os impostos dos portugueses sirvam para subvencionar os media que fazem propaganda à agenda ideológica com que não se identifica a maioria dos contribuintes?!
Indisposto com esta liberdade de pensamento e de expressão, que se manifesta numa publicidade não limitada e susceptível de ser transmitida no espaço televisivo, Adão e Silva quer que sejam “regulados e efectivamente impedidos vídeos como os de Miguel Milhão”! “Regulados”?! “Impedidos”?! A linguagem de Sua Excelência lembra a dos regimes autoritários de Stalin e Hitler, que censuravam, isto é, ‘regulavam’ e ‘impediam’, tudo o que era contrário à respectiva ideologia totalitária!
O ex-Ministro da Cultura não é apenas um fiel ministro da cultura da morte, é também, segundo as suas próprias palavras, um inimigo da liberdade de pensamento e de expressão. Ao seu “Preocupem-se com Miguel Milhão e não é por causa do aborto” há que responder: ‘Preocupem-se com Adão e Silva e não é (só) por causa do aborto’, mas sobretudo porque o seu arrogante discurso ameaça a democracia e a liberdade.
observador