As “Fátimas” antes de Fátima

O amor e a devoção do povo português à Virgem Maria, logo desde o início da nacionalidade, não é novidade para ninguém. Ilustres historiadores publicaram importantes textos sobre a relação do reino de Portugal com a Virgem, e não faria sentido retomar aqui o tema. O que pretendemos abordar é uma das expressões desse amor e devoção, a peregrinação, e referir os santuários marianos que mais se destacaram ao longo da história lusa. É isso que justifica o título desta partilha: as “Fátimas” antes de Fátima.
Como é sabido, uma das finalidades da peregrinação é de pendor penitencial, como testemunham muitos dos compromissos das confrarias medievais: o peregrino dirige-se com frequência a um santuário importante em espírito de expiação e conversão. Durante a Idade Moderna, isso foi também motivo para a insistência na frequência do sacramento da confissão. Mas, mais usual e característico dos santuários de grande afluência, são de destacar o espírito festivo e o culto, não apenas litúrgico (com a celebração dos sacramentos), mas também devoto, envolvendo o cumprimento de promessas, os ex-votos e outros atos da virtude da religião. Afinal, procuram-se nesses lugares especiais a proteção e a ajuda divina para as dificuldades do dia a dia.
Há muitos anos, o padre Avelino de Jesus da Costa referia a intenção do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, ainda como príncipe, de fazer da Sé de Braga um templo nacional em honra de Santa Maria, a quem atribui então o título de “rainha” (e padroeira) de Portugal. É claro que os tempos ainda não eram propícios, e não consta que tenha havido grandes peregrinações à sé de Braga. Na verdade, só no século seguinte surgiriam os santuários capazes de atrair grupos de romeiros, cada vez mais numerosos, dando origem também à elaboração dos famigerados “livros de milagres” estudados pelo padre Mário Martins. Dentre os santuários marianos de então, destacaram-se dois: um a norte, o da Senhora da Oliveira, em Guimarães; e outro a sul, o de Terena. Curiosamente, em meados do século xiv, os dois ficariam muito ligados a um evento importante da história portuguesa: a Batalha do Salado. Para assinalar a vitória dos príncipes cristãos, a 8 de setembro de 1342, Pero Esteves colocou junto à colegiada de Guimarães uma cruz, sob o denominado Padrão do Salado ou Padrão de Nossa Senhora da Vitória. Na Terena, por seu turno, D. Maria, filha do rei D. Afonso IV de Portugal e esposa de D. Afonso XI de Castela – os dois príncipes cristãos vitoriosos –, mandou ali construir uma capela a Nossa Senhora da Boa-Nova, pelo auxílio então recebido da Virgem.
A partir da Batalha do Salado, precisamente, podemos falar do santuário da Senhora da Oliveira como a “Fátima” do séc. XIV. A colegiada vimaranense tornou-se num importante centro nacional de peregrinação, mas também, nas palavras de Maria de Lurdes Rosa, “de proteção divina aos reis de Portugal”. Por essa razão, sem surpresa, o rei D. João I, após a Batalha de Aljubarrota, empreende uma romagem de agradecimento a Guimarães, antes de decidir construir o Mosteiro de Nossa Senhora da Vitória na Batalha.
No século xv, depois da conquista de Ceuta (1415), surge um outro importante centro de peregrinação, apelidado já pelo padre Avelino da Costa como “a Fátima do século xv”: o santuário de Nossa Senhora das Virtudes, em Aveiras de Cima. A ele afluíam romeiros vindos de todo o Portugal por ocasião das festas de Nossa Senhora. Resultou de uma promessa do rei D. Duarte, e o seu filho D. Afonso V dotaria o novo santuário de estalagens, alpendres, hospital e cemitério. Seria neste santuário sob proteção real que, em 1492, D. Leonor viria chorar a morte do filho e, no ano seguinte, fugindo à peste, D. João II, acompanhado de um grupo de cortesãos, se refugiaria por algum tempo, morando no mosteiro franciscano. Nos anos seguintes, porém, a devoção em redor do santuário diminuiu drasticamente.
Nos primeiros séculos da Modernidade, desenvolve-se o fenómeno dos círios estremenhos. Meta destas importantes “peregrinações coletivas” (como lhe chama Pedro Penteado), organizadas por confrarias ou irmandades, estão vários santuários marianos da Estremadura portuguesa, que então ganham grande pujança, muitas vezes com apoio e proteção régia. No século xvi, foi muito importante o santuário de Nossa Senhora da Luz, em Carnide, de cuja irmandade foram membros, ainda no século xv, D. Afonso V e o bispo de Lisboa D. Afonso Nogueira, e, no século xvi, D. Catarina, D. Sebastião e vários infantes, nomeadamente D. Maria, filha do rei D. Manuel, que muito beneficiou o culto local e mandou edificar a Igreja da Luz. Também a ela se deve a iniciativa da construção de um hospital para auxílio dos peregrinos.
No século seguinte, as publicações de Frei Bernardo de Brito popularizaram o Sítio da Nazaré. Embora as obras no local tenham sido muito apoiadas pelos Filipes, a narrativa, no entanto, favorecia motivações nacionalistas e patrióticas, que animavam o fervor popular dos romeiros que tornaram grande o santuário de Nossa Senhora da Nazaré. Recuperada a independência de Portugal, este santuário recebeu regularmente a visita dos monarcas, ou de alguém da casa real.
Favorecido por D. Pedro II e pelo seu filho D. Francisco de Bragança, Senhor do Infantado, foi o santuário de Nossa Senhora do Cabo, em Sesimbra. No século xviii, o santuário conheceu a maior campanha de obras que fizeram dele um dos principais e mais populares círios estremenhos. Verdadeiramente excecionais foram as romarias de 1770 e 1784, que contaram com a presença dos monarcas, D. José e D. Maria I, respetivamente.
Em 1646, o rei português proclamava a Senhora da Conceição, venerada em Vila Viçosa, padroeira de Portugal. Esta escolha seria depois confirmada pelo papa Clemente X, a 8 de maio de 1671. A nova devoção moderna à Imaculada Conceição viria, paulatinamente, a marcar a religiosidade dos portugueses em dois centros principais: primeiro, o de Vila Viçosa (Nossa Senhora da Conceição) e, depois, o do Sameiro (Imaculada Conceição). Ao santuário alentejano foi também associada, por D. João VI, a libertação do reino das forças napoleónicas, criando nessa ocasião – em 1818 – a Real Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição. O santuário minhoto surge na sequência da proclamação, por Pio IX, do dogma da Imaculada Conceição, em 1854, tornando-se de imediato no primeiro centro de peregrinação do país, até Fátima “se impor à Igreja”, como repetia o cardeal Cerejeira.
Depois de autorizado o culto a Nossa Senhora de Fátima pelo bispo local, em 1930, Fátima afirmou-se rapidamente como lugar de devoção individual, de peregrinação coletiva e, mais importante ainda, de referência para o catolicismo universal. É entre maio e outubro – o chamado “tempo de romagem” (Pedro Penteado) –, como já acontecia durante a Idade Moderna, que ocorrem as principais peregrinações a este novo santuário mariano, “altar do mundo”.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam as suas próprias posições.]
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