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Israel-Irão, ou a Europa com medo de existir

Israel-Irão, ou a Europa com medo de existir

O mundo está a tornar-se um lugar cada vez mais perigoso. No conflito militar entre Israel, apoiado pelos EUA, e o Irão, mais do que prever o que poderá acontecer interessa, como europeus, perceber qual pode e deve ser o papel da Europa. É claro que os principais atores neste conflito são os governos de Israel, do Irão e Donald Trump. Sem o apoio da “inteligência militar” dos EUA e o seu não veto a esta operação militar, dificilmente Israel teria lançado o ataque inicial. Numa segunda linha, na sombra, mas com mensagens claras, estão a Rússia e a China apoiantes do Irão. Só em terceiro lugar surge a Europa. Porém, à semelhança da modesta reação europeia à matança generalizada em Gaza e aos entraves à ajuda humanitária, a Europa tem primado pela quase ausência na sua posição sobre os conflitos do Médio Oriente sendo preocupante a divisão interna quanto a este conflito.

Tal como todas as guerras, esta iniciou-se com uma narrativa oficial que é veiculada pelo governo de Israel (nunca confundir com o seu povo) e difundida pela administração americana. O Irão tem um programa nuclear de enriquecimento de urânio, muito para além daquilo que seriam as necessidades para a produção de energia. Está prestes a produzir armas nucleares e a ter capacidade para atacar os seus vizinhos, em particular Israel tido como um Estado que, à luz da teocracia iraniana, não deveria existir. Israel tem o direito a defender-se e foi isso que fez ao lançar um ataque “preventivo”. Deste modo não foi violada a Carta das Nações Unidas que afirma que um Estado tem direito a atacar se estiver sob ameaça eminente de um ataque. Acrescentava-se na “narrativa” inicial que justificava o ataque de Israel que os EUA não estavam envolvidos “militarmente”.

Esta narrativa tem uma fraca lógica argumentativa. Ninguém questiona o direito de Israel a defender-se nem que o atual regime do Irão veria com bons olhos a eliminação do Estado de Israel. Aquilo que não parece ser verdade, de acordo com relatórios independentes da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), e outras instituições, é que o Irão esteja prestes a possuir armamento nuclear. Aquilo que a agência refere no seu último relatório é que há motivos de preocupação com o enriquecimento de urânio a 60% e que tem havido falta de transparência e falta de cooperação das entidades iranianas em relação ao seu programa nuclear, tendo em conta as suas obrigações no contexto do tratado de não proliferação das armas nucleares de que o Irão é subscritor. Isto significa que o argumento de “iminente ataque” do Irão cai por terra e consequentemente de que o ataque israelita ao Irão não viola a Carta das Nações Unidas.

Vale a pena citar o último parágrafo do longo relatório da AIEA, aprovado a 31 de maio mas desclassificado e tornado público a 12 de junho, mesmo antes do ataque de Israel ao Irão: “À luz da avaliação acima, o Diretor-Geral reitera o seu apelo urgente ao Irão para que coopere plena e efetivamente com a Agência. A menos que o Irão auxilie a Agência na resolução das questões pendentes, a Agência não estará em condições de garantir que o programa nuclear iraniano seja exclusivamente pacífico.” Ou seja, o que a AIEA refere é a sua preocupação afirmando a necessidade de Teerão cooperar mais com a agência, fornecendo mais informação. Netanyahu treslê esta linha como afirmando que o Irão tem armamento nuclear. Era a linha escrita que faltava para justificar o seu ataque horas depois.

Importa relembrar que Israel não assinou o tratado de não proliferação de armas nucleares, não está vinculado por ele e nunca assumiu, nem negou, ter armas nucleares, embora todos os especialistas estejam convictos que as possui. Desde logo se pode colocar a questão de qual a justificação para se aceitar que um Estado desenvolva um programa nuclear, às escondidas, e outro não. Por um ser uma democracia, e outro uma teocracia? Não parece ser um argumento. De qualquer modo sejamos claros, o Irão nunca deverá ter uma arma nuclear e deverá haver garantias que isso nunca aconteça. Israel, já que as tem, deveria assumi-lo e ser levado a aderir ao tratado de não proliferação de armas nucleares.

Da premissa verdadeira que o Irão constitui uma ameaça não deriva a conclusão que a melhor forma de reduzir essa ameaça é assassinando os seus cientistas nucleares e atacando as suas instalações nucleares. O que é necessário é reduzir o desejo do Irão de ter armas nucleares porque, se esse continuar a ser o seu objetivo, outros cientistas nucleares aparecerão e novas instalações nucleares serão construídas.

As razões que levaram Netanyahu a atacar devem ser procuradas não apenas na ameaça que o Irão representa, mas noutras dimensões. Primeiro, não lhe agradavam as negociações em curso entre os EUA e o Irão e o acordo que daí emergiria. Há a convicção, entre elementos da administração americana e os falcões do governo israelita, de que este ataque e a afirmação da supremacia israelita fortaleceriam a posição negocial americana. Por outro lado, um ataque ao Irão desvia as atenções do que se passa em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano. A França e a Arábia Saudita tinham programado uma conferência sobre a solução dos dois Estados. A UE estava prestes a rever o acordo de associação com Israel num processo algo complexo. Tudo isto fica em segundo plano.

Donald Trump, após desqualificar os esforços da diplomacia europeia (Alemanha, França e Reino Unido) junto do governo iraniano em Genebra, e após há uma semana ter acentuado o não envolvimento militar dos EUA, acaba de decidir unilateralmente bombardear três instalações nucleares no Irão usando as suas famosas bombas destruidoras de bunkers. Trump quis fazer desta operação a demonstração do poderio militar americano. É ainda cedo para saber o seu efeito real. Novamente a narrativa é que se trata apenas de um ataque cirúrgico e que não é a entrada na guerra por parte dos EUA. Essa narrativa serve para que Trump se possa defender de quem já o critica de ser uma decisão inconstitucional dado que só o Congresso tem o poder de declarar a guerra. Acontece que neste momento quem decide se foi ou não a entrada dos EUA na guerra é o Irão em função da resposta que irá dar a este ataque. Trump foi assim não apenas contra a política dos seus predecessores no cargo, que privilegiaram a diplomacia e as sanções, mas também contra a opinião de figuras proeminentes e influentes na sua base de apoio da coligação MAGA, como Steve Bannon que defenderam que seria um grande erro o envolvimento americano, e que não é desejável os EUA envolverem-se num novo Iraque. Aquilo que agora se pode esperar é, para além de ataques diretos iranianos cuja eficácia será limitada, um alastrar do conflito no médio oriente, um crescimento do sentimento anti-americano assim como do terrorismo em vários pontos do mundo levando consigo a subida do preço do petróleo e o agravamento da já frágil economia mundial.

Qualquer que seja a nossa posição sobre esta guerra aquilo que devemos almejar, como Europeus, e mesmo sabendo do nosso papel secundário, é que a Europa tome uma posição e que use a sua influência. Já a usou no passado em 2015 como mediadora quando facilitou (em particular a Inglaterra, França e Alemanha) o acordo nuclear com o Irão (o Joint Comprehensive Plan of Action). Obama era então Presidente. Trump em 2018 retirou os EUA do acordo e hoje a capacidade de influência europeia é menor. Porém, a UE não deveria ter receio de afirmar a sua autonomia estratégica na sua política externa. Mas a posição europeia começou mal com o tweet de Ursula Van der Leyen. Esqueceu-se certamente que não é a Comissão Europeia que tem as competências de política externa, mas o Conselho Europeu. Apoiou a ação de Israel num tweet dizendo que Israel tem o direito de se defender e de proteger o seu povo. Esta verdade de La Palice, dita sem mais e à revelia da posição do Conselho Europeu e da Alta Representante para a Política Externa Kaja Kallas, foi entendida por toda a diplomacia, assim como pela opinião pública, como apoio da Comissão ao ataque de Israel.

Muitos alemães, incluindo Van der Leyen, têm um compreensível sentimento de culpa em relação às atrocidades que alguns dos seus antepassados nazis cometeram sobre os judeus. O holocausto foi certamente a mais pérfida realização da espécie humana, pois foi premeditado, calculado e friamente executado nos campos de concentração. Se é certo que nunca deveremos esquecer o holocausto, também é certo que essa memória não deve apagar o espírito crítico relativamente a governantes como Netanyahu que faz da guerra a sua forma dominante de “diplomacia”, e a via para se manter no poder e não ser julgado.

Infelizmente os países europeus estão divididos em relação a esta nova guerra. Mas há alguns pilares em que parece existir consenso tal como foi afirmado por quem deve falar no assunto: Kaja Kallas. O Irão não deve possuir armamento nuclear. A via para o garantir é a via diplomática, não a guerra e deve haver um desescalar do conflito. A Europa deve assim afirmar-se e não ter medo de existir fora da sombra dos EUA que, com Donald Trump, sobranceiramente a ignora.

observador

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