Poderá Juan Carlos voltar a viver em Portugal?

Depois de seis dias em Sanxenxo, na Galiza, onde participou na regata do Troféu Xacobeo de vela, a 22 de junho Juan Carlos I deixou o aeroporto de Vigo num jato privado rumo ao aeroporto de Cascais, uma viagem que fortaleceu os rumores que já circulam na imprensa espanhola de que o rei emérito de Espanha esteja a planear uma mudança definitiva para Portugal, depois de cinco anos a viver em Abu Dhabi. A caminhar com dificuldade, respondeu de forma direta aos questionamentos dos jornalistas sobre a sua saúde: “Estou em perfeito estado. podem dizer todas as mentiras que quiserem, mas estou ótimo. Vejam que não vou em cadeira de rodas”, disse, citado pelo El Mundo.
Juan Carlos já esteve em Sanxenxo três vezes este ano. Já as visitas a Portugal também são frequentes, e uma das mais recentes foi para o funeral de Aga Khan, em fevereiro. Em 2020, ainda antes de ser conhecida a decisão pelos Emirados Árabes, a imprensa espanhola escrevia sobre a chamada “Operação Cascais”, em que Juan Carlos estaria a receber auxílio de nomes como João Manuel Brito e Cunha, a socialite Lili Caneças e até o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que na altura chamou as notícias “um disparate”.

▲ Juan Carlos em Lisboa em fevereiro de 2025, no funeral de Aga Khan
MIGUEL A.LOPES/LUSA
Agora, fala-se que a operação poderá ter sido retomada. O recente interesse por mudar-se para Portugal, de acordo com o tabloide espanhol El Nacional, estaria relacionado com o desgastado estado de saúde do rei emérito e potenciado pela escalada no conflito no Irão, que para Juan Carlos representava um perigo, já que vive num país próximo. O jornal avança ainda que o antigo rei de Espanha terá sido visto com a filha mais velha, a infanta Elena, e outros familiares, a visitar casas no Estoril. Já o Ok Diário diz mesmo que amigos próximos poderão ter disponibilizado palacetes em Cascais ou em Azeitão. Entretanto, nem a Casa Real espanhola nem o rei emérito confirmam a possível mudança.
Juan Carlos poderá estar a procurar casa em Cascais e Estoril, onde a família viveu entre os anos 1940 e 1950, durante o exílio. O rei emérito nasceu em 1938 em Roma, mas mudou-se para a Vila Giralda, no alto do Monte Estoril, quando tinha oito anos. Foi onde conheceu Jorge Arnoso, neto do Conde de Arnoso. “Tínhamos uma vida normal de crianças dessa idade no Estoril e Cascais da época: passeios de barco na canoa do meu pai, jogos de futebol, etc. Quando o príncipe, que nós tratávamos por D Juanito, fez dez anos, houve um acordo entre o Sr. Conde de Barcelona e o Generalíssimo Franco para o Príncipe ir estudar para Espanha. A partir dessa altura nós só o víamos nas férias”, contou ao Observador em 2014.


▲ A princesa Maria das Mercedes com os quatro filhos na casa no Estoril; Juan Carlos quando tinha 16 anos
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“Quando ele vai para Espanha pela primeira vez, que era o sonho do pai, vai no Lusitânia Expresso à noite, cheio de frio, e tem todos os fidalgos e grandes de Espanha à espera e nem lhe deram um copo de água ou uma refeição quente”, diz em entrevista ao Observador em 2024 José Bouza Serrano, autor da biografia O Rei Sem Abrigo. Chegou em Espanha para estudar e terminou o bacharelato no Instituto San Isidro, em Madrid, em 1954. No ano seguinte ingressou na academia militar e depois licenciou-se em Direito Político e Internacional, Economia e Tesouro Público, na Universidade Complutense. Contudo, ao longo da adolescência o então príncipe regressou muitas vezes a Portugal.
Bouza Serrano, que desenvolveu atividades diplomáticas em Espanha, conta que conheceu Juan Carlos no golf do Estoril quando ainda era criança.”Estava num grupo de pessoas e às tantas o Rei, que na altura era príncipe, veio e falou a uma série de pessoas e apresentaram-me.” Quem também relata momentos da juventude de Juan Carlos é o príncipe Vittorio Emanuele de Sabóia, que viveu exilado em Cascais na mesma altura. “Tenho muitas coisas para contar, mas não posso. Coisas sobre Juan Carlos”, disse, na série documental O Príncipe Sem Trono, realizada por Beatrice Borromeo em 2023. “Eu estava ali! Estávamos no exílio e costumávamos atirar jarras e garrafas na praia de Cascais”, revela Vittorio Emanuele, que recorda um dos episódios trágicos da família real espanhola. “Juanito fez um grande alarido. Disparou contra o irmão e matou-o. Chamava-se Alfonsito. Não disparou diretamente contra ele, mas sim através de um armário. Eu estava lá. Foi um acidente. A 100% eh? Escondi a minha arma imediatamente. Se não, tinham-me culpado novamente.”

▲ O funeral de Alfonso, a 2 de abril de 1956, em Cascais
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O irmão mais novo de Juan Carlos, Alfonso, morreu quando tinha 14 anos, na Vila Giralda. Também Bouza Serrano fala do episódio na biografia do monarca. “Há uma coisa que é dramática e que creio que em português nunca se tinha escrito, é que foi ele que matou o irmão. Ele tinha a arma e foi um acidente. Também me custou escrever. Lembro-me, era miúdo, lá em casa lia-se O Século, e apareceu naqueles dias, que eram feriados, uma fotografia a preto e branco, os príncipes no Estoril e a família real e tudo muito discreto, [com a informação de que era] um disparo acidental quando estavam a limpar uma arma”, conta o antigo embaixador português. Até hoje há diferentes teorias sobre o que verdadeiramente se passou. O que se sabe é que Alfonso, de 14 anos, participou numa competição no Clube de Golf a 29 de março de 1956, uma quinta-feira santa. Mais tarde, já em casa, com o irmão Juan, de 18, praticava pontaria com um revólver caliber 22 na sala de jogos no primeiro piso quando a arma disparou. O irmão mais novo do rei emérito foi enterrado num cemitério em Cascais e a arma foi lançada ao mar pelo próprio pai.
“Fomos uma vez juntos a Alfama com um grupo de amigos, e lembro-me da princesa estar muito espantada com o à vontade do marido no meio das multidões alfacinhas.”
Jorge Arnoso, amigo de infância de Juan Carlos
Aos 23 anos Juan Carlos ficou noivo da princesa Sofia da Grécia e o casal esteve alguns dias no Estoril, quando apresentou a noiva a Jorge Arnoso. Quando já eram casados, numa nova visita, o amigo do então príncipe recorda: “Fomos uma vez juntos a Alfama com um grupo de amigos, e lembro-me da princesa estar muito espantada com o à vontade do marido no meio das multidões alfacinhas.” Jorge Arnoso lembra que Juan Carlos, “durante a revolução, ainda como Príncipe de Espanha, esteve sempre atento e preocupado com o desenrolar dos acontecimentos, o que demonstra o carinho que sempre teve por Portugal.” Proclamado Rei de Espanha pouco depois, manteve sempre contacto com o seu companheiro de juventude, que o visitava em Madrid, umas duas vezes por anos, para almoçarem ou jantarem.
Aos 87 anos, Juan Carlos continua a praticar vela, desporto que conheceu ainda na infância e que desenvolveu ao longo da juventude no Clube Naval de Cascais, fundado em 1938. Em 1978, quando já era Rei de Espanha, numa visita oficial a Portugal, foi homenageado e eleito sócio comodoro honorário do clube. Em retribuição, Juan Carlos ofereceu um barco da classe olímpica de vela 470 para os treinos da Seleção Nacional de Portugal, que foi batizado pela Rainha Sofia, como mostram as imagens da reportagem da RTP da época. Já na década de 1990 o Rei ofereceu um troféu ao clube, quando foi criado o H.M. King Juan Carlos Trophy, evento da Classe Dragão. Na segunda Gold Cup, em 1998, Juan Carlos voltou a Cascais para assistir à competição, ao lado do príncipe consorte da Dinamarca, Henrik.

▲ Juan Carlos na regata em Sanxenxo em 2022
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Além da Vila Giralda, há outros monumentos em Cascais a destacar a presença dos Borbón. Em 200o a Câmara Municipal inaugurou uma estátua em homenagem aos condes de Barcelona, pais de Juan Carlos, numa rotunda no Estoril. “Homenagem do Municipio de Cascais aos Condes de Barcelona D. Juan de Borbon e Dª Maria de las Mercedes de Borbon e seus filhos Pilar, Juan Carlos, Marguerita e Alfonso que viveram no Estoril, no período de 1946 a 1977 legando aos cascalenses perene recordação de simpatia, simplicidade e humanismo”, diz a placa que acompanha a estátua.
Já em 2022 uma parte do passeio que circunda o Casino Estoril recebeu a placa em homenagem a Margarita de Borbón. Acompanhada do marido, filhos e netos, a irmã do rei emérito participou na cerimónia de inauguração e, à revista Caras, recordou o tempo em que viveu no exílio, chamando Portugal o seu “país do coração”. “Cheguei cá quando tinha sete anos, em meados do século passado. Nunca deixei de vir a Portugal e sempre que estou cá venho ao meu cantinho, de que tanto gosto. Casei-me na Igreja de Santo António do Estoril e a celebração foi no Hotel Palácio.”
“Agora, guiado pela convicção de prestar o melhor serviço aos espanhóis, às suas instituições e a ti como Rei, comunico-te a minha ponderada decisão de me trasladar, nesta altura, para fora de Espanha.”
Juan Carlos I em carta a Felipe VI em 2020 sobre a decisão de autoexilar-se
Em junho de 2014 Juan Carlos abdicou a favor do filho Felipe, ao fim de 39 anos de reinado. Entretanto, foi só em agosto de 2020 que tomou a decisão de deixar o país, depois de uma onda de escândalos pessoais e fiscais. “Agora, guiado pela convicção de prestar o melhor serviço aos espanhóis, às suas instituições e a ti como Rei, comunico-te a minha ponderada decisão de me trasladar, nesta altura, para fora de Espanha.”, escreveu o rei emérito numa carta ao filho. Alguns dias depois soube-se que o destino do exílio seria Abu Dhabi.
Durante estes últimos cinco anos, o antigo monarca teve de lidar com as polémicas que vieram à tona em diferentes momentos, respescando episódios do passado que continuam a pairar sobre a reputação do antigo soberano. Em 2021 Corinna Larsen, que foi a sua amante durante anos, processou Juan Carlos, no Reino Unido, por assédio e vigilância ilegal, mas um tribunal de Londres pôs fim ao processo em 2023 por considerar que a jurisdição britânica não era adequada para julgar o caso. Já em setembro de 2024, outra amante do passado, Bárbara Rey, voltou a assombrar a vida da família real espanhola. A revista holandesa Privé publicou fotografias comprometedoras tiradas em 1994, onde o rei emérito de Espanha aparecia a beijar a atriz. A 12 de junho a estrela da televisão espanhola lançou a sua autobiografia, com excertos reveladores sobre a relação com Juan Carlos.

▲ Juan Carlos e Corinna num evento em Madrid em 2006
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Já os processos abertos sobre o património no estrangeiro, como os presentes recebidos pelo multimilionário mexicano Allen Sanginés-Krause ou a fortuna ocultada na ilha de Jersey, foram todos arquivados em 2022 devido à condições de inviolabilidade do monarca enquanto chefe de Estado, à prescrição dos alegados crimes e à falta de indícios em outros casos. Em maio do mesmo ano, depois do arquivamento, o antigo rei de Espanha declarou em outra carta ao filho que havia decidido fixar residência nos Emirados Árabes. “Prefiro, neste momento, por razões que são de âmbito privado e só a mim dizem respeito continuar a viver de forma permanente e estável em Abu Dhabi onde encontrei tranquilidade, especialmente neste período da minha vida. Ainda que, como é normal, voltarei com frequência a Espanha, que trago sempre no coração, para visitar a família e amigos”, escreveu. A primeira visita ao país seria alguns dias depois, na ocasião de uma regata na qual pilotou o iate Bribón. Desde então, o rei emérito viaja a Espanha com frequência, mas não fica em residências da realeza — é habitualmente recebido em casa do velejador espanhol Pedro Campos, em Sanxenxo, na Galiza.
Este amigo e outras pessoas próximas do rei, como o dono do restaurante Flanagan, em Maiorca, Miguel Arias; o advogado Jerónimo Páez e o dentista Eduardo Anitua; organizaram juntos em 2024 uma festa de aniversário em Abu Dhabi para comemorar os 86 anos de Juan Carlos. A festa, que foi acompanhada de perto por uma equipa de reportagem da revista espanhola Hola!, teve a presença de membros da família real, como as filhas Cristina e Elena, e os netos Irene, Pablo, Victoria e Felipe. Já em janeiro de 2025 a comemoração repetiu-se, com as mesmas presenças familiares e desta vez com uma videochamada dos Reis Felipe e Letizia e das netas Leonor e Sofia, diretamente do Palácio de Zarzuela, publicou a Vanitatis. Outra surpresa da festa dos 87 foi um espetáculo de drones, que criaram no céu de Abu Dhabi a figura do monarca, o escudo e a bandeira de Espanha e mensagens de felicitações, além dos fogos de artifício.
O rei sem túmulo e a visita secreta ao EscorialEm setembro de 2024 o rei emérito visitou em segredo, junto da sua equipa de segurança, a cidade de San Lorenzo de El Escorial, onde fica a cripta real e estão enterrados os reis e as suas mães desde há quatro séculos. Contudo, o túmulo já está cheio, devido à decisão do próprio Juan Carlos de, nos anos 1990, enterrar no local os pais, os condes de Barcelona. “Se ele morre fora, têm que o trazer para o Escorial, onde não tem túmulo. Portanto, toda a família real, não tem sítio“, diz Bouza Serrano, que explica que “se [Juan Carlos] morrer vai para o “pudridero” 20 anos até que o corpo fique consumido para entrar nos maravilhosos sarcófagos de bronze, mas nem esses tem porque eram só 26.”
"Pergunto-me, será que quando sopram ventos de mudança e de República o património nacional pode arranjar dinheiro para fazer uma nova cripta de reis do Escorial?"
José Bouza Serrano, autor da biografia "O Rei sem Abrigo"
De acordo com a diretora de comunicação do Grupo Escuela Internacional de Protocolo, Marina Fernández, em declarações ao El Español, “mesmo que Juan Carlos não seja reinante, ele mesmo criou um precedente ao aprovar que o seu pai, D. Juan de Borbón, fosse enterrado na cripta sem ter sido formalmente rei de Espanha”. Contudo, com o túmulo cheio, “há que se buscar outro sítio e não há nada definido. Fala-se a possibilidade de ampliar o panteão, fazer uma espécie de cripta adjacente para que caibam Juan Carlos, Sofía, e até Felipe e Letizia”, sugere a especialista. Também José Bouza Serrano questiona: “Pergunto-me, será que quando sopram ventos de mudança e de República o património nacional pode arranjar dinheiro para fazer uma nova cripta de reis do Escorial?”
Certo é que, caso não considere voltar a viver em Espanha, Portugal é um lugar ao qual o rei emérito chama casa desde a infância, além de muito mais próximo da família e dos amigos. Resta saber se, com o avançar da idade, estará mesmo a considerar regressar de vez.
observador