Governo Lula quer arrecadar mais subindo imposto que deveria ser regulatório

O recente aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para equilibrar as contas do governo Lula (PT) representa um desvio da finalidade original do tributo, que tem caráter regulatório.
Isso significa dizer que ele deve servir como instrumento de política econômica para corrigir distorções cambiais ou monetárias, e não como ferramenta para abastecer os cofres da União.
No anúncio do decreto que elevou para 3,50% as alíquotas de IOF para transações no exterior, empréstimos para empresas e seguros, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deixou clara a intenção de aumentar a arrecadação para alcançar a meta fiscal prevista no Orçamento deste ano.
O impacto esperado é de R$ 18 bilhões na arrecadação de 2025, já contabilizado o recuo de parte das medidas pelo governo após a reação negativa do mercado financeiro – a Fazenda desistiu de elevar a taxação de aplicações de fundos nacionais no exterior e remessas de pessoas físicas para investimentos fora do país.
Desvio é uma anomalia do sistema brasileiroEspecialistas ouvidos pela Gazeta do Povo classificam essa utilização fiscal do IOF como uma distorção. Marco Antonio Ruzene, da Ruzene Sociedade de Advogados, diz que o uso arrecadatório do IOF é uma “anomalia no sistema tributário brasileiro”.
“O problema é que o governo age de acordo com a casualidade”, afirma. “Precisa de dinheiro hoje, então procura onde pode arrecadar de forma mais rápida. Aumentar o IOF vira uma solução fácil, embora distorcida, já que o aumento não precisa passar pelo Congresso.”
O IOF foi criado ainda no governo militar e incorporado à Constituição de 1988 com função parafiscal – ou seja, sem objetivo predominantemente arrecadatório. Sua função principal é regular o mercado financeiro, incidindo sobre operações de crédito, câmbio, seguros e valores mobiliários.
Foi desenhado para permitir que o governo aja rapidamente diante de choques econômicos, como fuga de capitais, flutuações cambiais ou eventos no mercado de crédito. “O IOF serve para induzir comportamentos”, explica o tributarista Flávio Molinari, do Collavini Borges Molinari Advogados.
“Se há uma fuga de dólares, por exemplo, o governo pode aumentar o imposto sobre operações de câmbio para encarecer essa movimentação e desincentivar a saída de recursos. Mas quando ele usa o IOF para tampar buracos no orçamento, desvirtua completamente sua função constitucional.”
Ruzene destaca também que a medida contraria compromissos internacionais assumidos no governo anterior.
“O Brasil se comprometeu a zerar gradualmente o IOF no processo de adesão à OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o 'clube dos países ricos'], porque é um imposto que praticamente não existe nas economias desenvolvidas. Quando o governo vai na contramão disso e aumenta a alíquota, está não apenas desvirtuando a função do imposto, mas também retrocedendo em termos de liberdade econômica ”, afirma.
Judicialização é possível, mas incertaApesar do consenso sobre o desvirtuamento, os tributaristas divergem quanto às chances de sucesso na judicialização. Para Molinari, o caráter arrecadatório viola a regra constitucional, e o decreto poderá ser questionado por entidades ou associações da indústria, do agronegócio e de investidores.
“Nesse caso, poderia ser arguida a inconstitucionalidade da medida”, admite. “Alinho-me a vários tributaristas que veem essa possibilidade, apesar de a jurisprudência não ser favorável.”
Um caso parecido ocorreu em meados de 2008, após a extinção da CPMF em dezembro de 2007. O governo editou o Decreto nº 6.339/2008, elevando de forma repentina as alíquotas do IOF para compensar a perda de arrecadação.
Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade chegou ao STF, mas, em julho daquele ano, o plenário negou liminar e manteve o aumento ao entender que não havia prova de que a finalidade do reajuste fora exclusivamente arrecadatória ou parafiscal.
Para Molinari, a situação atual é diferente. Uma das evidências do desvirtuamento é a incidência sobre operações de “risco sacado” — cessão de direitos creditórios, como nos FIDCs (Fundos de Investimento em Direitos Creditórios) — agora tributadas como operações de crédito.
“Não se trata de regulação de mercado, porque essa operação não gera volatilidade; é estática e sem impacto no mercado financeiro", argumenta. "Isso demonstra que o governo está buscando nova base de arrecadação.”
Para Ruzene, contudo, mesmo admitindo que o aumento visou “tampar buracos” orçamentários, o questionamento jurídico enfrenta barreiras.
“Todo tributo gera alguma arrecadação, ainda que secundária. Só isso não basta para declarar ilegalidade ou inconstitucionalidade", afirma. "Para isso, o aumento precisaria ter sido feito por instrumento não previsto em lei.” Ele observa que o STF tem mantido o caráter secundário do IOF e não considera tais atos administrativos irregulares.
Crise política já está instaladaApesar das incertezas jurídicas, a crise deflagrada pelo decreto da Fazenda mobilizou o Congresso e o empresariado e está longe do seu fim. Câmara e Senado já receberam Projetos de Decreto Legislativo de autoria do deputado federal Zucco (PL-RS) e do senador Rogério Marinho (PL-RN) para sustar o aumento das alíquotas do IOF.
Nesta segunda-feira (26), sete entidades do setor produtivo publicaram manifesto pedindo que o Congresso anule os decretos do Ministério da Fazenda.
“Esperamos que o Congresso se debruce sobre o tema e avalie com responsabilidade a anulação do decreto do Governo Federal. O Brasil ostenta uma das maiores cargas tributárias do mundo. Precisamos de um ambiente melhor para crescer — e isso se faz com aumento de arrecadação baseado no crescimento da economia, não com mais impostos”, diz o documento.
O documento é assinado pelas confederações nacionais da Indústria (CNI), do agronegócio (CNA), do comércio e serviços (CNC), das instituições financeiras (CNF), das seguradoras (CNseg), além da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) e da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).
Na mesma data, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que levará o PDL à próxima reunião de líderes, na quarta-feira (28). “O projeto foi protocolado na sexta-feira [23]", disse ao jornal O Globo. "Ainda não tive tempo de tratar com os líderes. Vamos debater na próxima reunião.”
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